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A Educação Física estuda o homem em movimento (OLIVEIRA, 1983) e é vista, de acordo com a ótica do senso comum, como uma disciplina que trabalha, exclusivamente, a cultura física e as práticas esportivas, em detrimento das questões relacionadas às demais instâncias cognitivas superiores. Quem nunca ouviu dizer que o professor de Educação Física trabalha os músculos e o de matemática, a inteligência?

MEDINA (2001) afirma que "... toda manifestação humana é movida por valores que determinam certos ideais, certas finalidades e certos objetivos" (p.59). Ao longo dos anos, os valores que permearam a prática pedagógica em Educação Física ressaltaram a importância desta disciplina como um contributo ao desenvolvimento do bem-estar-físico dos alunos ou a formação de atletas, sem levar em conta sua importância na formação do homem integral (idem).

De acordo com esta visão, o professor deve enfatizar o esforço individual na prática dos exercícios e o alto rendimento na prática dos esportes, sendo a avaliação um instrumento que classifica os alunos como aptos ou inaptos, através da observação sistemática, da mensuração e da comparação dos "... desempenhos predominantemente motores e fisiológicos" (cOLETIVO DE AUTORES, 1992, p.99) apresentados pelos atletas em potencial e por todas as demais pessoas. Quando se fala ou se pensa em desempenhos fisiológicos, impossível se torna não pensar na emoção (o sentir) que, também, apresenta aspectos e sinais fisiológicos.

Se há algumas décadas atrás isso era um fato, as novas tendências em Educação Física apontam para uma prática motivadora, dinâmica, mas, acima de tudo, consciente e compromissada com as questões sociais, ampliando a gama de conteúdos abordados e considerando o contexto histórico-cultural e a cultura corporal de movimento, definida aqui como o conjunto de conhecimentos, intencionalidades, expressões e representações acerca do corpo e do movimento, ao longo da história humana e da cultura (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), como o primeiro documento oficial que explicita os conteúdos da Educação Física nos diferentes níveis de ensino, contribuiu de forma significativa para o estabelecimento de novos objetivos que vão além do desenvolvimento de qualidades físicas treináveis e dirigem-se para o reconhecimento e valorização do próprio espaço e do espaço do outro nas relações sociais, respeito à cultura e à diversidade, e, também, o desenvolvimento habilidades cognitivas. Não basta, ao aluno, simplesmente executar o movimento de forma correta, mas refletir sobre o mesmo, criá-lo, recriá-lo e entendê-lo como uma das formas de interação consigo e com os outros.

Os conteúdos a serem trabalhados pela disciplina Educação Física, até a década de 90 sem uma definição clara e precisa, foram definidos e, além das práticas esportivas sistematizadas, a dança, as lutas, os jogos pré-desportivos, os jogos populares e as brincadeiras presentes na cultura brasileira passaram a constar no rol de conteúdos a serem trabalhados (PCN’s, 1998). O reconhecimento destas práticas culturais, aliado a possibilidade de trabalhá-las em termos conceituais, atitudinais e procedimentais foram essenciais para que o processo avaliativo pudesse ser revisto como assumindo uma forma diferenciada pelos profissionais da área e pelos demais profissionais também.

De acordo com os PCN’s, cabe ao professor adequar os instrumentos utilizados, durante o processo avaliativo, aos objetivos e aos conteúdos, bem como ao contexto em que se insere o grupo avaliado podendo levantar "... além de valores mensuráveis, os aspectos motivacionais e subjetivos relacionados ao resultado, suas relações com diferentes contextos de aplicação e o significado ... para a construção do conhecimento pessoal do aluno" (idem). O referido documento admite que os alunos devem atuar como sujeitos de sua própria aprendizagem optando, sugerindo e refletindo criticamente sobre os conteúdos aprendidos.

Sendo assim, a Educação Física, enquanto componente curricular obrigatório, deixou de ser um espaço destinado a reprodução mecânica e sistemática de movimentos e, a partir da década de 90, está passando por um processo de ressignificação fazendo, então, esta nova relação com a inteligência em que os estudos atuais sobre a inteligência humana podem contribuir para este movimento ampliado.

O termo inteligência suscita, no imaginário popular, algo grandioso em termos de status social. O ser inteligente, remete à idealização de alguém perfeito, que não comete erros e é sempre reconhecido pelos seus pares nas suas realizações. Este conceito é freqüentemente relacionado, nos discursos dos professores, à inteligência lógico-matemática e valorizado no interior da escola quando se trata das disciplinas relacionadas às ciências exatas. (METTRAU, 1996, 2000a)

Se, no início do século XX, a inteligência humana era vista como algo que pudesse ser verificado somente no meio acadêmico e medido única e exclusivamente através dos testes de Q.I. isso não contribuiu e nem significou muito para a Educação Física, afinal os testes de Q.I. não priorizavam os conteúdos da área. A Educação Física, neste período, preocupava-se em "... disciplinar o hábito das pessoas no sentido de levá-las a se afastarem de práticas capazes de provocar a deterioração da saúde e da moral" (GHIRALDELLI, 1992, p.17).

Nas últimas duas décadas deste mesmo século, os estudos sobre a inteligência humana foram se intensificando, através das contribuições das neurociências, sendo alvo das mais diversas áreas do conhecimento, entre elas a psicologia, a educação, a medicina, a biologia, a administração e, até mesmo, a engenharia, ampliando, assim, um campo de estudos que somente foi assumido pelos psicólogos durante muito tempo.

Entre os estudos que emergiram neste campo, Howard Gardner (1995), com sua teoria das Inteligências Múltiplas, afirmou que a inteligência humana é dividida em sete tipos: lingüistica, lógico-matemática, espacial, musical, interpessoal, intrapessoal e corporal-cinestésica, podendo o indivíduo apresentar predominância em uma ou em outra área, de acordo com determinantes biológicos que serão favorecidos por fatores culturais. Desta forma, como afirma MEDINA (2001), "ao tentar explicar todas as suas dimensões, o homem se retalha em duas, três, quatro partes e depois se torna incapaz de perceber a totalidade em que elas se realizam" (p.42).

Gardner, ao fazer referência a diferentes tipos de inteligência favoreceu, por um lado, aqueles que, nas aulas de Educação Física, destacam-se por seu evidente desempenho motor, situando-os num quadro de referência que lhes confere o status de sujeito inteligente. Por outro lado, desconsiderou que, para sensibilizar uma platéia durante uma apresentação de dança e para desempenhar bem seu papel numa atividade desportiva, por exemplo, é indispensável que a pessoa disponha de habilidades motoras e, sobretudo, de recursos cognitivos, criativos e afetivos que "... estarão sempre presentes em qualquer produção humana" (METTRAU, 1997, p.338).

Neste sentido, podemos citar um dos jogadores de futebol, mais conhecido como Garrincha, considerado um dos maiores esportistas de todos os tempos e reconhecê-lo como ser inteligente não só pelas performances explicitamente superiores aos demais jogadores mas, também, pela criatividade para movimentar-se de forma que os adversários não conseguissem executar a defesa e pela sua sensibilidade, para reconhecer quais deles estavam distraídos, desatentos ou inseguros durante o ato defensivo. A habilidade motora, portanto, era apenas mais um dos elementos para transpor os adversários e que, por si só, não o levaria ao sucesso. De acordo com esta concepção, suas habilidades não representam uma das inteligências e sim a expressão de uma única inteligência, que pode se manifestar através de três grandes dimensões: o conhecer, o criar e o sentir (idem, 2000a).

Os aspectos cognitivos (conhecer), estão relacionados à capacidade do indivíduo de se apropriar do conhecimento de forma dinâmica, mobilizando os recursos necessários para transformar o aprendido em algo novo; o criar é visto como a capacidade de reorganizar as coisas que já existem, não sendo necessariamente uma criação inteiramente nova pelo indivíduo, mas algo diferente daquilo já conhecido; o sentir, considerado como outra forma de expressão da inteligência humana, está relacionado com a emoção, o desejo e a motivação, entre outros, sem os quais "... o ser humano deixa de ser humano" (METTRAU, 2000b, p.83).

STERNBERG (2000) acredita que a inteligência pode ser expressa através de comportamentos analíticos, criativos e práticos e que o sucesso pessoal depende do desenvolvimento harmonioso destes três aspectos. A inteligência analítica atua no mapeamento do problema e na mobilização de recursos para sua solução, isto é, reconhecendo o problema a ser resolvido, definindo-o, formulando estratégias para solucioná-lo; representando as informações de forma precisa; mobilizando e distribuindo os recursos a serem utilizados, considerando o que vai ser necessário para resolvê-lo e suas conseqüências; monitorando todo o processo e avaliando as soluções encontradas.

A inteligência criativa é definida como a capacidade de ir além do estabelecido para gerar idéias novas e interessantes (idem). O sujeito, ao deparar-se com um problema novo, (re)cria as soluções, fornecendo respostas inovadoras ou adotando caminhos diferentes dos padrões vistos como convencionais, sendo "... a disposição para brincar ..." perceber, e resolver os problemas de uma forma lúdica, características da criatividade (METTRAU, 1995a, p.61).

A capacidade de convencer o outro do valor das novas idéias, ou ainda, a flexibilidade para adaptar-se ou adaptar o meio a fim de um melhor com-viver, são alguns dos aspectos da inteligência prática, dificilmente trabalhada nas escolas, talvez devido ao tradicional hábito de uniformizar idéias e comportamentos.

É a partir deste novo olhar, e de outros mais, que se traduz o ser inteligente, não mais como um arquivo de fórmulas ou enciclopédias prontas para serem consultadas, mas como um ser único, diferente dos outros em sua individualidade e ao mesmo tempo múltiplo, nas suas relações com os outros, que concebemos a inteligência humana (METTRAU, 2000a).

Assim como MEDINA (2001), interpretamos a Educação Física como "... a arte e a ciência do movimento humano que por meio de atividades específicas, auxiliam no desenvolvimento integral dos seres humanos, renovando-os no sentido de sua auto-realização e em conformidade com a própria realização de uma sociedade mais justa e livre" (p.81-82) e acreditamos que a concepção que o professor tem da inteligência vai repercutir diretamente no tipo de avaliação por ele realizada. Se o mesmo considera que a inteligência é determinada, predominantemente, por fatores biológicos tenderá a valorizar apenas os alunos que conseguem sair-se bem nas atividades, através de seu desempenho motor. Por outro lado, ao conceber a inteligência enquanto algo único que pode ser expresso através de dimensões cognitivas, criativas e emocionais, é possível que sejam igualmente valorizados tanto alunos que executam arremessos de forma correta, como outros que não conseguem fazê-lo, mas são capazes de convencer a turma a se organizar coletivamente para atingir um ou vários objetivos comuns.

Gostaríamos, ainda, de ressaltar a importância do jogo como um dos elementos constitutivos da cultura humana e um dos recursos para o desenvolvimento da inteligência, além de uma rica "... fonte de conhecimento dinâmico e mutável, o que contribui de forma fundamental para o enriquecimento do aluno e interpretação da realidade" (LEITE & ESTEVES, 1993, p.20). Durante o jogo o aluno é estimulado a desenvolver e aprimorar a sua capacidade de pensar, tomando decisões, escolhendo estratégias, lidando com a liberdade e com os limites, vivendo plenamente o individual no social e, tornando-se um cidadão (METTRAU, 1995).

A aula de Educação Física é um espaço privilegiado para o desenvolvimento da inteligência, por ser uma disciplina que tem a possibilidade de trabalhá-la em todos os seus aspetos, através de atividades que proporcionam prazer. O brincar, num contexto educacional mais amplo, pode ser utilizado para o desenvolvimento das funções do cérebro - raciocínio lógico, concentração, análise, síntese, etc., e no desenvolvimento de competências cognitivas necessárias tanto à prática desportiva como à prática social.

Tendo em vista que a Educação Física moderna volta-se, cada vez mais, para encerrar o ciclo do ensino por adestramento - repetição, memorização e condicionamento - é imprescindível que o professor utilize os mais variados recursos de forma intencional e consciente, para atingir objetivos tão amplos.

Neste contexto, o brincar pode (e deve) ser trabalhado de forma a desenvolver e ampliar o conhecimento do educando na interação com o próximo. Sendo assim, "... resgatar este brincar como solução viável e desejável é algo a ser feito com muita rapidez, antes que caia no total esquecimento e, conseqüente desconhecimento por parte das gerações mais novas de nossas crianças, tanto em nossas escolas quanto em nossas casas" (METTRAU, 1995b, p.62).

Há um salto qualitativo enorme quando repensamos a inteligência humana pois ela deixa de ser analítica e estática para ser dinâmica, sempre ampliável e, jamais deixando de existir em qualquer pessoa que pertença a nossa espécie: a espécie humana.


 Obs A autora, professora Kátia Regina Xavier da Silva é mestranda em Educação/Altas Habilidades pela UERJ, Especialista em Orientação Educacional pela UCAM, licenciada em Educação Física pela UFRJ e graduada em Pedagogia pela UFRJ (e-mail: katiaxsilva @ bol.com.br) e é professora do ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Belfort Roxo, e a autora , professora Marsyl Bulkool Mettrau é doutora em educação e psicologia da educação pela Universidade do Minho (Portugal) e UFF, Mestra em educação pela UERJ e é professora adjunda e pesquisadora da Faculdade de Educação da UERJ (e-mail: marsyl @ uerj.br; a professora Simone da Silva Salgado é especialista em Avaliação Educacional pela UERJ e aluna do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Altas Habilidades da UERJ, licenciada em Educação Física (UFRJ), graduanda do Curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é professora do ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Belford Roxo (e-mail: sissal @ bol.com.br)


 Referências bibliográficas

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