Editora José Olympio. None 1981. 66 páginas.

Sobre


RESENHA - Os Jogos de Junho
Luiz Carlos R. Borges

Existe uma tradição do romance no Brasil, que remonta a Machado de Assis, passando por Lima Barreto, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, que é a do romance intimista, quase sempre narrado na primeira pessoa e focalizando o tema do indivíduo solitário, incomunicável ou pouco comunicativo, sufocado pelo meio social em que sobrevive. O microcosmo contra o qual se debate, sempre inocuamente, esse personagem, e que termina por vencê-lo, esmagá-lo, tanto pode ser uma cidade provinciana como a Maceió de "Angústia", com a redação de um jornal como o "Isaías Caminha" de Lima Barreto, ou, enfim, o. próprio jogo de interesses incipientemente capitalista, mas já devorador de individualidades, dos que não se prestam à competição, à chamada livre-concorrência, como o "Quincas Borba" de Machado; mas o desfecho final invariavelmente consiste no esmagamento do indivíduo, em seu aviltamento, na exacerbação de sua miséria existencial.

Talvez quem superiormente, e compactamente, tenha traduzido essa condição humana tenha sido o poeta Cruz e Souza, em seu belo e catártico soneto, "Vidas Obscuras": "ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, oh ser humilde entre os humildes seres..."

Mas é no contexto dessa tradição que se pode, sem dúvida, incluir o romance de Eustáquio Gomes, "Os Jogos de Junho", recentemente lançado pela José Olímpio.

Aqui também o personagem narrador "atravessa a vida presa a trágicos deveres", no dizer exato do poeta, cumpre sem a menor volúpia o seu ofício de revisor de um jornal, e sem o menor empenho os seus ônus familiares, dos quais antes se omite, sequer cuidando de pagar os aluguéis dos cômodos onde transcorre sua obscura vida doméstica, somente experimentando algum prazer mais sólido em cumprir suas funções vitais: dormir, beber suas cervejinhas e copular.

Certamente o traço que melhor distingue o personagem de Eustáquio, dentre os seus confrades literários, é a sua quase absoluta inércia. Se Isaías Caminha ao menos traduz ao longo do romance toda a sua surda mas acre revolta, sua irresignação com as mazelas do meio em que vive; se Luís da Silva, o personagem de "Angústia", de Graciliano, assume uma atitude de desespero  ainda que no final das contas se revele inócua a sua vingança de decadente senhor feudal contra o ocioso filho da família burguesa em ascensão; se o personagem de "Os Ratos", de Dyonélio Machado, esgota todos os meios ao seu alcance em busca do dinheiro que o salvará ao menos momentaneamente; Juabre, o anti-heróí de Eustáquio, tão obscuro que seu próprio e estranho nome só é enunciado uma ou duas vezes durante todo o transcorrer do livro, nada faz para procurar mudar o seu destino. E um ser humano conformista, apático, desinteressado, amoral, alienado, tão alienado que não o comove ou envolve sequer o entusiasmo geral provocado pelos jogos de junho de 1970, certamente a mais santa e justificável das alienações, porque fundada na paixão.

Nem por isso o livro deixa de ser exemplar e político. Político, não no sentido, usual e sectário de engajado. Político, na medida em que revela a outra faceta do serpolítico, o seu avesso, o apolítico, o indivíduo alienado,  mas que não pode todavia deixar de ser considerado por quem se propõe a pensar seriamente e globalmente o problema.

E se dissemos que o personagem é inerte, alienado, cumpre porém acrescentar que é um personagem que escreve, que anota os pequenos episódios de sua existência e, assim, se redime, se resgata de sua obscuridade e pequenez.

De acrescer, também, os contrapontos irônicos fornecidos pelos textos jornalísticos épico-eufóricos característicos daquele período da Copa de 70, inseridos ao longo do livro ao mesmo tempo em que se acentua cada vez mais a trajetória do personagem rumo à mais completa miséria e solidão: desemprego, abandonado pela mulher e desprezado pelos amigos, o que o conduzirá, talvez é a possibilidade com que acena a frase final do romance  a finalmente tomar plena consciência de sua condição miserável, ao sentir ao lado de sua cama a ausência acusadora do berço de seu menino.

Trata-se, enfim, de um romance de Campinas, que tem a cidade como cenário e por onde desfilam lugares familiares, como o Faca's, a Rua Onze de Agosto, as imediações da estação ferroviária, o "prédio mal afamado da Rua Conceição". O que não é um dado irrelevante, pois, ao que se saiba, só recentemente Campinas se revelou capaz de abrigar escritores que pudessem iniciar uma saga do romance da cidade, do que talvez seja pioneiro "Solidão", de Sebastião Roberto de Campos, que traça um retrato nostálgico da Campinas dos anos 40 e 50.

Correio Popular - 16/6/1982