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O ano mal começou e já temos um escândalo na bibliosfera. E na mesma Alemanha onde há seis anos um professor de literatura acusou Nabokov de haver plagiado a Lolita que um obscuro Von Lichberg inventara quatro décadas antes. Na primeira semana de fevereiro, um blogueiro berlinense dedurou a escritora Helene Hegemann como plagiária de outro blogueiro. Para o seu romance de estreia, Axolotl Roadkill, sarabanda de sexo e drogas nos clubes noturnos de Berlim, Hegemann contrabandeou trechos de Strobo, versão impressa de um diário criado na web por um internauta que se assina Airen.

O diário de Airen encalhou nas livrarias; o remix de Hegemann virou best seller e ainda ficou entre os finalistas do prêmio literário da Feira de Livros de Leipzig, cujos jurados se curvaram à racionalização da autora: "Não me considero ladra. O que fiz foi pôr o material extraído de outro contexto em nova perspectiva, estabelecer um diálogo."

Se pretendia estabelecer um diálogo com Airen, por que disfarçou tanto sua intenção sob a forma de monólogo?, cobrou um comentarista alemão. Por que ela não divide parte dos direitos autorais com o autor pirateado?, sugeriu outro. O que é mais grave, pergunto eu, roubar ou enfeitar o furto com um laçarote teórico?

Nos anos 1980, um repórter da área de cultura de um jornal brasileiro de grande circulação apropriou-se da resenha de um livro sobre David Bowie, editado pela Rolling Stone, e, flagrado o delito, amparou-se numa presuntiva jurisprudência pós-moderna: como nada é original, pois tudo deriva de criações anteriores, num processo de contaminação tautológica sem fim, o plágio não existe. Alguém sugeriu que o jornalista fosse demitido do jornal, não pelo plágio em si mas por sua justificativa, de um cinismo comparável ao "chutzpah" (expressão iídiche, sinônimo de caradurismo), tal como a definiu Jerry Lewis: "Chutzpah é aquele sujeito que mata os pais e pede clemência ao juiz por ter ficado órfão."

Por não se sentir culpada de nada, Hegemann não pediu clemência. Por considerar normal o que fez, não se escudou na hipótese de criptomnésia ou qualquer outra modalidade de copiagem inconsciente. Foi-se o tempo em que a cleptomania artística era a forma mais elevada de elogio; agora, em certos círculos, é a forma mais elevada de originalidade, a criatividade em estado puro.

De uma geração catequizada pelo relativismo cultural e mimada pela gratuidade online, para ela, nascida em 1993, o remix é um direito natural e samplear, um verbo transitivo. "Não existe originalidade, só autenticidade", eximiu-se, sem tampouco identificar a fonte desse aforismo, que, apesar do timbre sartriano, tem a assinatura de um cineasta, Jim Jarmusch. E é outro remix.

Antes de ser reprocessada por Jarmusch, a ideia de que a criação original não passa de um devaneio viajou pelo menos 23 séculos. De Terêncio ("Não há nada a ser dito que não tenha sido dito antes") a David Shields, passando por Nietzsche, Picasso ("Arte é roubo"), Eliot ("Os poetas imaturos imitam, os maduros roubam"), Joyce (que se autoproclamou mestre na arte de copiar & colar), Borges (para quem todos os escritores são fiéis amanuenses do espírito, tradutores e anotadores de arquétipos pré-existentes, daí sua tese de que cada autor cria os seus próprios precursores) e outros descrentes da originalidade absoluta.

Por muitos séculos o que se dizia e escrevia foi considerado patrimônio público, palavras literalmente ao vento, barata-voa. Os romanos reescreviam os gregos e vice-versa, sem remorso, sem ameaça de processo judicial. No império romano, chamavam de plagiarus o ladrão de escravos ou crianças, não o de ideias ou textos. Virgilio gatunou Homero, Aristófanes pegou em charco alheio a trama de As Rãs, Shakespeare fez de Plutarco o seu banco de dados biográficos, Chaucer meteu a mão em Boccaccio.

O conceito atual de plágio tem apenas 500 anos de circulação. Consta ter sido inventado pelo dramaturgo inglês Ben Jonson, e só se consolidou como delito depois que as criações artísticas passaram ser tratadas como mercadorias. Não é crime, assegurou um estudioso do assunto, Thomas Mallon, em Stolen Words. Mas é coisa feia, acrescentou. Para em seguida perguntar: "Ou será que não é?"

O grande crítico canadense Northrop Frye tinha lá suas dúvidas. Ele ridicularizou as noções de individualidade defendidas pelos românticos e as leis de direitos autorais que as protegem e perpetuam. Não tem lógica considerar o indivíduo anterior, acima ou à margem da sociedade, argumentou Frye, na segunda metade dos anos 1950. Para ele, a poesia só pode ser feita a partir de outra poesia e o romance a partir de outro romance.

Nesse trem, como era esperado, muitos pilantras também pegaram carona. Condenada ou relevada, quando não estimulada (sob o disfarce de homenagem ou com o fidalgo nome de bricolagem), a pirataria literária desafia nossas maneiras canônicas de distinguir joias de ouropéis, impasse que a universalização da cultura pelo Google e outros demiurgos eletrônicos agravou tremendamente. Por falta de claque ela não irá definhar.

Há duas semanas, saiu em Nova York um manifesto em favor da "apropriação artística", Reality Hunger, escrito por David Shields, ou melhor, compilado, pois o autor valeu-se quase que exclusivamente de centenas de frases e teses alheias favoráveis à pilhagem. Shields inventou a metapirataria. Enfunemos nossas velas.

(Na elaboração deste artigo foram utilizadas informações colhidas em textos de Randy Kennedy, Laura Miller, Tobias Rapp, Morris Friedman e do autor da coluna.)

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