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Nosso trabalho consiste numa reflexão feita por nós quando discentes de graduação, quando tentamos analisar as "práticas acadêmicas" de docentes em Educação Física buscando perceber as diferenças de posicionamento destes frente ao discurso que dizem seguir e suas referidas práticas. E dentro destas, observamos "intelectuais" com posicionamentos diferentes nestas mesmas práticas acadêmicas, o que nos remeteu ao título deste trabalho.

Inicialmente, emprestamos o termo "intelectuais orgânicos" de Antônio Gramsci, autor italiano, que em sua obra "Os Intelectuais e a Organização da Cultura" (1995), faz referências à estes como influenciadores da cultura.

Gramsci caracteriza todos os homens como intelectuais, já que todo trabalho manual ou instrumental envolve uma técnica, uma atividade intelectual criadora; pois não "existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens" (ibdem, p. 5).

Os intelectuais originaram-se (sendo técnicos) das especializações surgidas nos meios de produção industrial. Ganharam conotação política por tomar decisões (ou cumpri-las) nos rumos de determinada cultura ou grupo social. O conhecimento técnico advindo das técnicas de produção trouxe uma determinada importância aos intelectuais como agentes de controle das diferentes funções na produção, cuja apropriação desse conhecimento, deu-lhes maior autonomia para a tomada de decisões.

Existem dois tipos de intelectuais: os tradicionais e os orgânicos. Os primeiros se caracterizam por seu apoio incondicional a classe dirigente de uma determinada sociedade. Os mesmos consideram-se independentes, possuidores de características próprias enquanto grupo, pois, como são livres para pensar e tomar decisões, consideram-se totalmente autônomos e, por conseqüência, sem vínculos com as determinadas classes sociais. Já os orgânicos são os que surgem no seio de todo agrupamento próprio da esfera produtiva que criam uma "consciência da própria função, não apenas no campo produtivo, mas também no social e no político" (ibidem, p. 3).

Esta divisão de intelectuais é importante para que se possa esclarecer o tipo de função que estes têm exercido em determinadas culturas.

Tomando os conceitos anteriormente discutidos, podemos considerar os professores, em especial os de Educação Física, como intelectuais, que se diferenciam como tradicionais ou orgânicos de acordo com suas práticas.

É possível afirmarmos que os professores, ao atuarem de acordo com os pressupostos desta ordem político-econômica, são na sua maioria intelectuais tradicionais, pois suas práticas estão voltadas ao aprofundamento dos preceitos capitalistas como: competência técnica, competitividade e individualismo.

Preocupam-se na transmissão de um saber pronto, que não pode ser discutido, ou ainda que não pode ser construído de acordo com o momento histórico e a cultura local onde a escola está inserida. Enfim, não educam o corpo discente para o "conflito" em busca da mudança necessária da sociedade, mas reforçam a aceitação das injustiças como algo natural e imutável.

Isso se dá, talvez, porque estes mesmos professores como intelectuais, surgem ou da classe que direciona a sociedade e apresentam-se como especialistas pertencentes a uma categoria com esta autonomia (NETO, 1998), ou surgem das classes injustiçadas mas perdem seu vínculo com estas (GRAMSCI,1995).

Entendendo a cultura como histórica e desenvolvida através da produção e do trabalho, compreendemos que o que estes professores transmitem na escola é totalmente descontextualizado da história; a cultura é mero detalhe, caracterizando o ensino como acúmulo de saberes e esta "acumulação de informações na cabeça do educando não é suficiente para a produção de um homem novo e sim apenas para a de um homem pedante" (RODRIGUES, 1996 p.04).

Para que essa situação seja modificada, transformada, é preciso educar diante de uma ação pedagógica comprometida, pois "uma filosofia da educação deveria evitar a ilusão de pensar que basta filosofar sobre a educação para consertar os erros, porventura, existentes no quadro educacional no qual vivemos. Uma filosofia da educação deve, antes de mais nada, reconhecer os limites de sua intervenção" (GADOTTI, 1995 p.62).

Sendo assim, a intervenção dos educadores que apontam algumas "saídas", ou melhor, hipóteses para a transformação da educação, passa a ser primordial, desde que esses educadores tenham coragem para praticar a educação nesta perspectiva. É somente dessa maneira que podemos formar indivíduos capazes de assumir a sua autonomia, de se manterem indignados com as injustiças do mundo e de participarem na construção de uma sociedade igualitária.

"Na perspectiva de uma educação visando a transformação, a escola tem um papel estratégico, na medida em que pode ser o lugar onde as forças emergentes da atual sociedade, muitas vezes chamadas de classes populares, podem elaborar a sua cultura, adquirir a consciência necessária à sua organização ".(GADOTTI, 1995 p.24-25).

Mesmo aceitando o que o referido autor nos traz, esta intervenção social não é reconhecida por alguns professores, os intelectuais tradicionais, pois, por não estarem, aparentemente, vinculados a uma determinada classe, não reconhecem a cultura local e suas necessidades, portanto não a representam.

Mas não podemos achar que estes mesmos professores estão livres de culpas, achando que são apenas instrumentos de manipulação da sociedade em que vivemos, atualmente direcionadas pelos preceitos neoliberais. Grande parte dos professores identificados como intelectuais tradicionais, reconhece seu "poder" na formação dos jovens e o fazem, "através de formulações teóricas, autoritárias por não serem consensuais, mas impostas pela falsa erudição de certos ‘PHDeuses’, procuram estabelecer fazeres e pensares como mostras ou vitrines nas quais estão os instrumentos mas erráticos e perversos da ‘carnavalização’ da miséria que desfila insone neste país" (FREITAS, 1999, p.21).

Assim, deduzimos que suas práticas não são voltadas para a superação dos problemas da realidade social, ao contrário, são práticas que camuflam no sentido de escondê-los dos olhos dos alunos, impedindo-os de reconhecê-los, de criticá-los e superá-los, contribuindo, assim, com a construção de uma ordem política-econômica justa e fraterna. Em Educação Física, é o que FREITAS (1999) define como "arcanos do capitalismo, intelectuais que , se utilizando ou não do desporto, nos ‘recônditos da escola’, procuram encobrir, ocultar as raízes da realidade circundante".

Porém, entendendo que as práticas intelectuais em Educação Física não se dão somente na escola mas também nos centros de formação de professores, destacamos que são nestes locais que se dão a essência de nossa discussão.

Partindo do reconhecimento de que a perspectiva de formação conscientizadora, da qual se debate muito, é primordial na perspectiva transformadora, é possível notarmos em professores do ensino superior em Educação Física a presença de intelectuais orgânicos, tradicionais e os pretensamente orgânicos, ou pseudo-orgânico, cujas ações revelam as contradições entre o discurso e a ação. Por esta razão a conscientização não consiste assumir uma posição falsamente orgânica, ela não pode existir fora da práxis, ou melhor, "sem o ato ação*reflexão*reação, fundamentalmente embalada numa epistemologia que ancore o processo radical" (RODRIGUES, 1998 p.50). Esta terceira alternativa é baseada em nossas reflexões, quando percebemos que é possível existir intelectuais tradicionais que se apoiam ou assumem um discurso "orgânico" para atingir seus propósitos ou, talvez, uma "classe intelectual" ainda mais perigosa na reconstrução de nossa sociedade.

A idéia da periculosidade desta alternativa consiste no fato que estes intelectuais, parecendo orgânicos ganham a confiança dos segmentos não-hegemônicos e assumem uma postura teorica na busca da satisfação de seus interesses. Isso garante a eles uma maior proteção pela "camuflagem" que usam, principalmente em função de seu, por vezes, convincente discurso. O resultado disso é que estes mesmos, além de garantir seus interesses, criam "pupilos", ou melhor, criam outros pretensos intelectuais que até onde chegamos no nosso entender, não reconhecem ou podem, por ingenuidade, não reconhecerem essa posição.

Sendo assim, cabe aos educadores realmente comprometidos com a sociedade justa, fraterna, ou seja intelectuais verdadeiramente orgânicos, dirigirem um processo de educação voltado para a "libertação" dos educandos, transformando o processo e a educação vigente para que realmente se possa contribuir para a formação de um mundo novo. Serem "revolucionários teóricos" é insuficiente. É preciso que sua prática reflita essas posições teóricas. Do contrário, os professores estarão tendo as mesmas posturas de alguns intelectuais tradicionais, "como uma pantalha para ocultar seu divórcio do marxismo e o seu intrínseco oportunismo necessário à manutenção de seus privilégios e da condição de classe média" (FREITAS, 1990, p.90), traindo assim, o que teoricamente defende e tornando-se nada mais nada menos que um pseudo*educador, pseudo*compromissado e um pseudo*marxista.

Essas atitudes inicialmente se dão porque a práxis destes intelectuais não se encontra voltada para uma prática social e sim para uma prática pessoal ou pelo menos para uma que cumpra com "determinados interesses". Nas palavras de PALAFOX e col.. (1997, p. 5):
"Se o professor se encontra fora do alcance dos conhecimentos e da prática social necessária para compreender como ele, enquanto profissional e cidadão, se constrói historicamente para situar-se no mundo, dificilmente poderá tomar consciência sobre o porquê determinadas ‘coisas’ ou fenômenos acontecem em sua área de atuação e, muito menos, será capaz de propor alternativas para transformar sua realidade de trabalho com base num projeto de sociedade mais humana e democrática".

A prática da Educação Física, assim pensada, (fora da verdadeira prática social), não poderá constituir-se numa práxis conscientizadora como meio pedagógico, na perspectiva dos intelectuais orgânicos. Para que isso ocorra os profissionais de Educação Física necessitam dar organicidade e unicidade à relação teoria e prática, ao pensar e atuar, superar a espontaneidade e ganhar a consciência crítica, ou seja, rompendo com o sistema vigente, que não representa a grande maioria dos injustiçados, e adquirindo uma postura representativa destas mesmas classes concretamente.

Obs. Os autores, professores Adílson Silvestre Júnior e Danilo Olah estrairam este trabalho do TCC da UNICSUL (concluído em nov./2001) sob orientação do prof. Ms. Antônio Carlos Vaz.


Referências bibliográficas

  •  Farinatti, P. de T. V. Ciência ou cientificísmo? Reflexões Sobre a Transmissão de Conhecimentos nos Cursos de Educação Física. RCBCE, Número Especial - 20 anos CBCE, p. 32-38, setembro/1998.
  • Freitas, F. M. de C. O Livre Atirador. Vitória: UFES/CEFD, 1999.
  • Gadotti, M. Pedagogia da Práxis. São Paulo: Instituto Paulo Freire/Cortez, 1995.
  • Gramsci, Antonio. Os Intelectuais e a organização da Cultura. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
  • Maspero, F. Textos Sobre Educação e Ensino. 2 ed. São Paulo: Editora Moraes, 1992.
  • Neto, V. M. Cultura docente: uma aproximação conceitual para entender o que fazem os professores nas escolas. Revista Perfil, Ano 2, nº2, p.66-74, 1998.
  • Palafox, G. H. e col. Educação Física: Uma abordagem Histórico- Cultural de Educação. Revista de Educação Física/UEM 8 (1), p.3-9, 1997.
  • Rodrigues, D. T. Educação Física: Uma Perspectiva Conscientizadora. In: FRADE, J. C. & col. Educação Física no Espírito Santo: História, Legislação, Teoria e Prática. [Coleção Monografias V. 2]. Vitória: UFES/CEFD, p. 49-67, 1998.
  • Rodrigues, N. Da Mistificação da Escola à Escola necessária. 7 ed. São Paulo: Cortez, 1996.