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Essa semana fui procurada para falar sobre a medida do COI de punir a Arábia Saudita caso o Comitê Olímpico local insista em manter sua determinação em impedir que suas mulheres atletas representem oficialmente o país.

Como sempre, Rodrigo Cardoso, repórter da Isto É, me instiga a refletir sobre coisas que parecem banais, mas que têm dimensões muito maiores e duradouras. Foi assim com vários dados da pesquisa sobre os atletas olímpicos brasileiros e agora com essa notícia. Seria mais uma entrevista, não fosse o resgate de uma questão que parece esquecida na história do Movimento Olímpico Internacional: a participação feminina nas competições esportivas olímpicas ou não.

Hoje isso nos parece normal, natural, desejado, mas nem sempre foi assim.

Basta apenas lembrar que Pierre de Coubertin em pessoa proibiu as mulheres de participarem dos Jogos Olímpicos de 1896 e só reviu essa posição porque os Jogos de 1900 ocorrem em uma Paris mobilizada pelo movimento feminista que reivindicava não apenas o direito ao voto, mas a igualdade de direitos em geral. Embora não se falasse que a participação das mulheres na sociedade fosse uma questão de Direitos Humanos era isso que ali se estava a construir. O que de fato impedia e distanciava as mulheres do exercício pleno da cidadania? As respostas são variadas, mas passam inevitavelmente pela disputa de poder não apenas dos homens, mas de homens criados em uma sociedade específica em que viviam seus papéis sociais de forma intocada pelo fato de serem de uma determinada classe social, defensores de valores tomados como universais.

Valores universais… aí reside uma questão para reflexão.

A proibição imposta por Coubertin no final do Século XIX assentava-se em determinantes biológicos que conferiam à mulher a condição de frágil (dos nervos), com disposição para outros fazeres e papéis sociais como ser mãe ou de brilhar nas arquibancadas como as espectadoras do espetáculo masculino que era o esporte. Enfim, sempre coube aos articulados e inteligentes a criação de argumentos para justificar seja lá o que for, inclusive a injustiça. Passado mais de um século o COI se coloca agora do outro lado. Atento aos movimentos de uma sociedade multicultural e multiétnica, que age e se organiza sob a batuta de interesses políticos e econômicos de diferentes matizes e matrizes, o COI coloca-se agora em defesa daquelas que são oprimidas, relegadas à invisibilidade e ao esquecimento, conforme as avaliações realizadas por diferentes fontes do Ocidente. Afinal, esperam que o caso de Arábia Saudita seja exemplar para o mundo muçulmano que impede suas mulheres de circularem livremente!

Ah a liberdade! Que notável essa bandeira de luta!

Encontrei uma matéria no jornal O Estado de São Paulo, de 2008, que já falava sobre isso (http://www.estadao.com.br/noticias/esportes%20pequim2008,cresce-o-numero-de-atletas-muculmanas-com-veus-na-olimpiada,221279,0.htm). E embora já se tenham passado 4 anos o tema volta à baila como se fosse novo, inédito ou inusitado. Fico me perguntando por que o silêncio desses anos e o recente interesse pelo tema. Afinal, a participação da mulher na vida em sociedade é um direito humano básico e não artigo olímpico, como alguns agora fazem supor.

No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, está escrito que o “desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,” e “que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla”. Esse preâmbulo foi escrito para apresentar o texto seguinte que é a declaração propriamente dita. Já no Artigo I encontra-se a justificativa que aponta o exercício da igualdade de direito: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. É fato que Pierre de Coubertin não viveu para ver e ouvir essa declaração e, portanto, ele não teve oportunidade de rever seus conceitos sobre a participação das mulheres nos Jogos Olímpicos. Ou teria achado que isso não se aplicaria a elas? Isso não isenta de responsabilidade todos os demais dirigentes que vieram depois dele e pouco ou nada fizeram para impedir essa injustiça histórica contra as mulheres que teriam todos os argumentos possíveis para justificar sua participação nos Jogos Olímpicos fazendo uso do Artigo II dessa mesma declaração onde se pode ler: “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
Pergunto então: Porque o COI esperou tanto a ponto de somente permitir que as mulheres corressem a Maratona nos Jogos Olímpicos de 1984 ou saltassem com vara apenas nos Jogos de 2000 se a Declaração dos Direitos Humanos, a mesma que agora é usada contra a Arábia Saudita, foi assinada em 1948?

É bom que se lembre que sendo uma declaração universal ela deveria estar acima de uma lei nacional ou regional, mas se assim o fosse outros tantos abusos não teriam sido cometidos após sua promulgação.

Volto novamente à possível exclusão da Arábia Saudita que mantém o veto a suas mulheres de participar dos Jogos Olímpicos, possível argumento para uma medida de sansão do COI. Seria mesmo o impedimento das mulheres o argumento para sua exclusão? Isso porque em um mundo onde essas mesmas mulheres não podem exercer o direito de usar seus véus em escolas e outros espaços públicos (como na França de Nicolas Sarkozy), mas já o fazem no esporte após muita discussão e controvérsia, o que de fato estaria ocorrendo agora?

É bom que não se esqueça que em breve teremos uma Copa do Mundo no Qatar, país que agora não impede suas mulheres de irem aos Jogos Olímpicos (embora isso tenha acontecido apenas em 2012 com a nadadora Nada Arkaji e à velocista Noor al-Malkia), mas que não tem qualquer tradição nessa questão, e que Doha é uma das cidades postulantes aos Jogos Olímpicos de 2020. Não tenho dúvidas que a disposição do Qatar em permitir que duas de suas milhões de mulheres apareçam para o mundo em uma disputa olímpica seja para “provar” que não há impedimentos para que elas pratiquem esporte. Isso nem de longe significa a universalização da prática esportiva pelas mulheres.

Durante um tempo chegou-se a alegar que um dos motivos para a restrição à prática seria a obrigatoriedade do véu (hijab, em alguns países, burka em outros). Porém, em Pequim, atletas como a esgrimista egípcia Shaimaa El Gammal e a velocista Al Ghasara, do Bahrain, provaram não ser esse o impedimento. Orgulhosas de sua cultura e tradições essas atletas declararam em diferentes veículos de comunicação a felicidade de poder representar seus países levando consigo as marcas de suas origens, tão diferentes das tradições Ocidentais, declaradas universais no terreno olímpico por mais de um século.

Talvez estejamos observando uma nova virada no Movimento Olímpico. Impedido de impor mais uma de suas tradições inventadas curva-se à força do poder de nações colocadas à margem desse Movimento por tanto tempo. Pena que para isso tenha que se utilizar do mesmo argumento que marca a trajetória dos excluídos: não o direito universal, mas a força.

Por katiarubio
em 15-04-2012, às 13:36

2 comentários. Deixe o seu.

Comentários

O impedimento por alguns países de não permitir mulheres nos Jogos Olímpicos deve ter muitas causas. Entre elas está, sem dúvida, tudo o que você citou. O assunto sobre os direitos humanos em relação às mulheres “desapareceram” desde a publicação do Estadão até hoje porque ninguém dá muita atenção para isso, inclusive as próprias mulheres envolvidas na questão.
Aquelas que tiveram a oportunidade de pisarem numa pista, quadra ou piscina e que são de países muçulmanos, deveriam servir como “vozes” para o resto do mundo, mostrando todas as mazelas que são obrigadas a passar e viver.
O problema é que muitas delas dizem sentir orgulho de poderem participar carregando seus traços culturais, e isso não ajuda em nada as outras oprimidas. Ideal seria que elas esculhambassem o regime muçulmano que servem para alguns espertalhões manterem os poderes.
Esportes, de um modo geral, requerem força, agilidade, destreza, e portanto músculos, que é um dos símbolos do sexo masculino. Portanto, não é bonito, mas é compreensível que Coubertin tivesse pensando somente nos homens e deixassem as mulheres apenas como enfeites. Acho, inclusive, que muitas mulheres daquele tempo preferiam ser vistas apenas como “embelezadoras” dos jogos.
O que não deve, são as mulheres se pemitirem serem usadas para reforçar a idéia de que viver com véu é normal, de que expor partes do corpo é pecado. Isso não é cultura, é ignorância.
As mulheres nunca foram culpadas por nada, pois foram forçadas ou apenas seguiram os caminhos pré-estabelecidos, mas são elas é irão mudar tudo isso, porque se dependerem dos homens da Arábia Saudita ou do Irã, elas estão perdidas.
Por isso, acho extremamente danoso à sociedade feminina, quando aparece uma mulher em plena Olimpíadas reforçando traços culturais danosos à elas próprias.

Por Edison Yamazaki
em 17-04-2012, às 1:48.

Gostaria de compartilhar esse artigo com colegas. Achei muito interessante.
Mariza Vilela

Fique a vontade Mariza. Será um prazer

Por Mariza Vilela
em 17-04-2012, às 15:19.

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