Para Além das Quatro Linhas
Por Manuel Alves Filho (Autor), Carlos Orsi (Autor), Paulo César Montagner (Entrevistado).
Integra
Enquanto esta entrevista com o professor Paulo Cesar Montagner, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, estava sendo planejada e executada, alguns acontecimentos relacionados direta ou indiretamente à Copa do Mundo, que está sendo organizada pelo Brasil e que terá início no dia 12 de junho, alimentaram o acalorado debate em torno das possíveis consequências do evento. Num curto período, um torcedor morreu após ser atingido por um vaso sanitário atirado por um adversário, grupos foram às ruas em diferentes estados para protestar contra os gastos com o Mundial e a imprensa noticiou que os sistemas de energia e de telefonia móvel (4G) dos estádios dificilmente funcionarão a contento durante a competição. Diante desses e de outros episódios, o Jornal da Unicamp recorreu ao docente, que soma 34 anos de dedicação ao estudo do esporte, para pedir que ele refletisse sobre os legados e sequelas que a Copa poderá proporcionar ao país. Na opinião de Montagner, é provável que ocorram tanto perdas quanto ganhos. “O tempo é que vai permitir uma avaliação mais precisa sobre o saldo dessa empreitada”, afirma.
De acordo com Montagner, que também ocupa o cargo de chefe de gabinete da Reitoria, o Brasil cometeu um grave erro político ao dizer que a Copa deixará, assim como os Jogos Olímpicos, que ocorrerão no Rio de Janeiro em 2016, um enorme legado ao país. “O governo se comprometeu com algo que não sabia muito bem se poderia dar conta. Decorrido o período entre o anúncio do país como sede do Mundial e a véspera do início da competição, pouca coisa mudou no plano da infraestrutura. Melhoramos um pouco alguns aeroportos, fizemos alguma coisa em termos de mobilidade urbana e reformamos e construímos estádios. Entretanto, foram iniciativas insuficientes para satisfazer a sociedade”, pondera.
Quanto ao âmbito esportivo, Montagner também considera que os legados apregoados pelo governo federal dificilmente serão alcançados, pelo menos na dimensão anunciada. “Esse legado esportivo somente virá se de fato o Brasil aproveitar a Copa e as Olimpíadas para criar uma estrutura voltada à prática de diferentes modalidades. É importante que os meninos e meninas que assistirem às apresentações da ginástica olímpica, por exemplo, encontrem centros esportivos em variados pontos do país onde possam praticar seu esporte preferido”, entende. Outro equívoco cometido pelo Brasil em relação especificamente ao Mundial de futebol, acrescenta o docente, foi ter dito à população que não haveria investimento público na reforma ou construção de estádios.
Conforme Montagner, desde o início não houve qualquer movimentação da iniciativa privada em assumir integralmente esses gastos. “Eu penso o seguinte: o problema não é construir uma arena de R$ 1 bilhão. O problema é o destino que será dado a ela. Se o estádio servir aos jogos da Copa, aos campeonatos regionais e nacionais e ao desenvolvimento do esporte em geral e da saúde da população, o investimento estará justificado. Entretanto, não há garantias de que isso virá a acontecer. Olhando em retrospectiva, nada indica que esses equipamentos cumprirão de fato essas missões”.
“Chute” errado
Ainda no âmbito dos tropeços, continua o professor da Unicamp, o Estado brasileiro “errou o chute” ao associar um evento de amplitude mundial a uma possível política nacional do esporte. “Não era preciso fazer isso. Esse e outros equívocos têm servido de argumento aos grupos contrários à Copa. Uma das consequências dessas críticas é a vinculação do esporte à corrupção, o que evidentemente não é bom para o segmento. Não é correto culpabilizar o esporte, visto que a corrupção não é algo exclusivo dele; trata-se de uma prática que infelizmente está presente em várias atividades humanas. Essa associação entre esporte e corrupção talvez seja uma das sequelas com as quais teremos que lidar”, lamenta Montagner.
Quanto aos legados, Montagner considera que eles também ocorrerão, mas a extensão que alguns deles alcançarão dependerá das iniciativas governamentais que serão adotadas após o Mundial e, mais adiante, após as Olimpíadas. “A Copa trará alguns ganhos ao país, como está registrado no livro do professor Marcelo Proni [leia texto na página 7], do Instituto de Economia, do qual fui o autor do prefácio. Obviamente, o turismo interno será movimentado e as obras de infraestrutura efetivamente realizadas ficarão”, elenca.
No que se refere ao esporte propriamente dito, o docente da Unicamp entende que a transmissão de benefícios não será tão direta assim, notadamente em relação à Copa. Segundo Montagner, os brasileiros já gostam de futebol e não passarão a apreciá-lo ou a praticá-lo mais somente porque o país sediará a competição. “O mesmo vale para os Jogos Olímpicos. Como disse anteriormente, os legados serão efetivos e permanentes se esses eventos de alcance mundial servirem para criar uma consciência nacional sobre a importância da prática do esporte. Ao mesmo tempo, eles também precisam servir para que definamos políticas públicas que instituam programas sérios de esporte na escola. Se isso for feito, não tenho dúvidas de que em 20 anos nós poderemos nos transformar em um país olímpico”, infere.
Nesse ponto, Montagner abre parênteses para explicar que um país olímpico não é necessariamente aquele que ocupa as primeiras colocações no quadro de medalha das Olimpíadas. “O Canadá e a Austrália são países olímpicos, mas não estão entre os maiores ganhadores de medalhas. Entretanto, ambos difundiram a prática de diversas modalidades esportivas entre a população. No caso do Brasil, nós poderemos até nos transformar numa nação ganhadora de medalhas. Nós temos muito talentos esportivos adormecidos, que esperam por algo que os desperte. Se tivermos uma base forte de praticantes, certamente chegaremos aos atletas de alto rendimento. Em termos de comparação, num conjunto de milhares de pintores é muito provável que encontremos alguns artistas geniais entre eles”.
Ao falar sobre o estímulo à prática do esporte na escola, o docente da Unicamp revela que este é o seu maior sonho. “Penso que seria importante aproveitarmos a Copa e as Olimpíadas para sensibilizar as instâncias governamentais nesse sentido. A escola também é lugar do esporte, principalmente quando ele está voltado à promoção do bem-estar das pessoas, tanto das que têm quanto das que não têm talento. Não é na escola que o jovem se desenvolverá como atleta, mas certamente ela é um local privilegiado para despertar nele o interesse por esta ou aquela modalidade. Precisamos ter uma nova visão pedagógica sobre a finalidade do esporte”, defende.
Questionado se o resultado da Copa – derrota ou vitória da seleção brasileira – poderá interferir na análise dos legados ou sequelas que poderão ser deixados pela competição, Montagner diz que o brasileiro tem consciência política para saber que se trata somente de futebol. “Não creio que a sociedade vá se deixar levar por esta ou aquela análise ideológica”. Acerca do papel da academia no desenvolvimento de pesquisas que contribuam para uma análise mais profundada das problemáticas relacionadas ao esporte, o professor da FEF diz que as universidades talvez precisem dedicar mais tempo aos estudos dos fenômenos sociais e antropológicos ligados ao segmento. “Nós avançamos muito em áreas como a biodinâmica e a bioquímica. Penso que devemos continuar investindo nessas áreas, mas também nos dedicar ao viés social do esporte, de modo a compreender as suas variadas e complexas dimensões”, conclui.
O legado e os benefícios econômicos reais de megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, geralmente ficam muito aquém do prometido por seus promotores, disse ao Jornal da Unicamp Marcelo Proni, diretor associado do Instituto de Economia (IE) da Universidade e coautor, com Raphael Britto Faustino e Leonardo Oliveira da Silva, do livro “Impactos Econômicos de Megaeventos Esportivos”, a ser lançado no dia 29, às 10h, no auditório do Instituto de Economia, numa parceria entre o IE, Casa da Educação Física e Penses – Fórum Pensamento Estratégico da Unicamp.
“O que a literatura internacional mostra é que, pegando essas últimas edições, tanto da Copa quanto dos Jogos Olímpicos, sempre tem uma propaganda muito forte em termos de legados, mas as projeções feitas antes dos eventos são sempre muito otimistas, e depois as avaliações feitas a posteriori mostram que ficou muito aquém. Não quer dizer que não haja legado, mas geralmente ele fica muito longe projetado inicialmente”, disse o pesquisador.
Em artigo publicado em 2012, escrito em conjunto com um dos coautores do livro, Leonardo Oliveira da Silva, Proni já citava números que mostravam o excesso de otimismo das projeções e promessas que vinham sendo feitas para a Copa, por meio da comparação de dois estudos, um da consultoria Value Partners e outro da Ernst & Young Brasil e FGV Projetos: “Chama atenção a diferença de mais de R$ 40 bilhões entre os dois estudos nas previsões de impacto sobre a circulação monetária, assim como a divergência no volume considerado de investimentos programados (...) Mais difícil é a comparação dos números relacionados à criação de empregos. No primeiro estudo, somando postos de trabalho permanentes e temporários, projeta-se a criação de 710 mil empregos. No segundo estudo, a projeção parece ser muito exagerada (...) uma média de 720 mil postos de trabalho por ano”.
Outros trechos do artigo mostram como, tanto no caso da Copa da Alemanha (2006) quanto da África do Sul (2010), os legados ficaram abaixo do prometido. O impacto da Copa no nível de emprego da economia alemã teria sido pouco significativo, por exemplo, sendo o principal benefício do torneio um aumento na autoestima do povo alemão, uma melhora na imagem da Alemanha perante o resto do mundo.
No caso sul-africano, para uma expectativa prévia de aumento de 0,54% no PIB do país no ano do torneio, constatou-se um ganho de menos de 0,3%. Na questão da geração de empregos, o resultado foi “realmente decepcionante”: “A previsão inicial de 695 mil novos postos de trabalho considerava que mais da metade seria temporária, mas se esperava que 280 mil seriam conservados em 2010”. Mas, também por conta da crise econômica internacional de 2008, “foi registrada uma redução de 4,7% do total de ocupados na África do Sul (627 mil trabalhadores) só no trimestre imediatamente anterior à realização da Copa. Na indústria da construção, os empregos criados desapareceram assim que os projetos foram concluídos”, diz o artigo.
O texto prossegue: “A Copa na África do Sul não contribuiu para reduzir as desigualdades sociais. Por um lado, a grande maioria dos empregos temporários gerados pagava baixos salários e não houve redução significativa na taxa de desemprego no país, mesmo antes da crise. Por outro, as principais melhorias trazidas para a infraestrutura urbana acabaram beneficiando mais a classe média, enquanto os principais estímulos econômicos foram apropriados por segmentos da classe empresarial”.
Maniqueísmo
Proni, no entanto, não entra no coro dos críticos mais ácidos da realização da Copa do Mundo no Brasil. “É difícil ficar numa posição maniqueísta, ou é muito bom ou é muito ruim, ou sou a favor ou sou contra”, disse ele. “A avaliação tem de ser mais ponderada, obviamente há alguns segmentos, alguns setores econômicos, que estão sendo favorecidos, por exemplo, a construção civil, o segmento do turismo, são alguns que ganham bastante com a preparação. E, por outro lado, há alguns segmentos que podem ser prejudicados, porque o governo deixa de investir recursos públicos em outras prioridades”, disse.
Falando das manifestações de rua do ano passado e do movimento “não vai ter Copa”, ele disse que “o problema é que prometeram muito, criaram uma expectativa muito forte, e agora, conforme vai se aproximando, estamos vendo que vai ficar muito aquém daquilo que tinha sido inicialmente projetado, ou prometido”.
O pesquisador pondera que “houve toda uma politização dessa questão da Copa”. Para ele, não faz sentido opor o investimento em estádios ao investimento em hospitais e escolas, já que é legítimo o governo investir em políticas esportivas e que, como o Brasil projeta uma autoimagem de “país do futebol”, seria fácil legitimar a escolha como sede de uma Copa do Mundo sem apelar para um legado econômico. “Mas acho que faz sentido quando as pessoas falam que querem hospitais padrão Fifa, querem escolas padrão Fifa. Afinal, se você vê o empenho grande de autoridades públicas para viabilizar a Copa do Mundo, por que não cobrar empenho nessas outras áreas, que são importantíssimas?”
“Uma coisa importante é que a Copa do Mundo estimulou um aprimoramento dos procedimentos de fiscalização e pôs em discussão uma série de coisas em relação ao gasto público”, disse ele. “Acho que isso é um aprendizado: do ponto de vista da sociedade, é importante aprender a cobrar do Estado uma postura transparente, promover uma discussão sobre as prioridades, explicitar quais são os segmentos econômicos e sociais beneficiados pela política pública”.
Perigos
O Brasil, diz Proni, não corre o risco de sofrer problemas como os que atingiram a África do Sul, por conta da Copa do Mundo de 2010, ou a Grécia, onde os gastos com os Jogos Olímpicos de Atenas-2004 ajudaram a empurrar o país para uma grave crise econômica. “Não é que a crise atual na Grécia tenha sido causada pelo prejuízo dos Jogos, pois houve outros problemas que se somaram, mas de qualquer forma é um exemplo de um legado negativo, que o legado que ficou foi muito mais negativo que positivo”, disse ele. Já na África do Sul, “os investimentos feitos em função da Copa do Mundo não ajudaram a reduzir as desigualdades sociais ou a reduzir problemas mais fundamentais, mas certamente beneficiaram uma parcela pequena daquela população e alguns ramos daquela economia”.
“O Brasil tem um porte muito maior que o da Grécia ou da África do Sul. A Copa não vai representar um prejuízo como foi no caso desses dois”, afirmou ele, acrescentando que o gasto do governo federal com a Copa é pequeno em relação ao montante de recursos de que o setor público dispõe para investir. “Para ter uma ideia, o PAC 2 previa um gasto de R$ 1 bilhão entre 2011-2014. Os investimentos para a Copa representam menos de 3% desse valor. Os recursos que o BNDES emprestou para a construção de estádios também pesam muito pouco no volume de dinheiro que o banco oferece todo ano. Assim, do ponto de vista do governo federal, não há problema de endividamento. O que desvia recursos que deixam de ser investidos em outras áreas é o pagamento de juros”.
O pesquisador nota, no entanto, que governos estaduais e prefeituras podem vir a enfrentar dificuldades financeiras, e encarar escolhas realmente controversas sobre a destinação de recursos públicos, desviados do atendimento de carências locais, para a Copa. O artigo de 2012 lembra que algumas cidades têm parte importante de seu PIB comprometido com obras para o evento, como Cuiabá (21%) e Natal (16%). “O risco é deixar como legado um elefante branco, uma arena moderníssima que vai ficar ociosa a maior parte do tempo, mas acontece que será o governo estadual quem terá de pagar os R$ 500 milhões ou mais”, disse ele.
“Algumas cidades vão se beneficiar mais, porque vão receber, por causa da Copa do Mundo, um público que, do ponto de vista do turismo, vai trazer mais vantagens. E tem algumas cidades que, pela questão do sorteio dos jogos, vão receber só quatro jogos e não necessariamente de seleções que atraem um público grande. Então, há diferenças aí entre as sedes: a relação custo-benefício não é a mesma para todas”.
Proni aponta, ainda, um risco de elitização das novas arenas esportivas: “A Copa afeta o futebol brasileiro. A construção dessas arenas mexe com a relação existente entre os clubes e as torcidas. Logo surgirá a questão de definir quem é que vai frequentar essas arenas. Acho que tende a haver uma elitização”.
Balanço
“A Copa é um bom negócio para a Fifa, que vai ganhar muito dinheiro com a Copa. Acho que a Copa vai beneficiar alguns segmentos, como o turismo, a construção civil, alguns adjacentes. E acho que em algumas cidades a população pode ter ganhos em termos de mobilidade urbana, uma melhoria localizada, mas não necessariamente são projetos que necessitavam da Copa para se justificar. O país poderia ter investimentos na modernização de aeroportos sem que houvesse a Copa do Mundo”, disse o pesquisador.
Proni disse que já existem algumas metodologias para mensurar o efeito, se positivo ou negativo, de um megaevento para o país ou cidade que o recebe, mas que “ainda é difícil fazer uma avaliação completa, chegar a um quadro completo dos impactos”.
“Aqui no Brasil há pessoas que tendem a enfatizar os prejuízos, há aqueles que enfatizam mais os ganhos, mas o que acho importante é que os megaeventos chamam a atenção da população, da sociedade organizada, para essa discussão a respeito de qual o dever do Estado, como você legitima os gastos públicos, como são decididas as prioridades, como se faz a prestação de contas. Isso está sendo um aprendizado importante. E espero que a universidade não fique alheia a isso”.