Integra

Sou recorrente e enfadonho, bem o sei. Também sei, por recurso a pensadores eméritos e experiência própria, que a ‘instrução’ e as ‘competências’, hoje tão apregoadas como mantras do sucesso, conduzem menos à humanização e mais à domesticação do sujeito como besta de trabalho e agente do conformismo aos parâmetros produtivistas. Não, a educação não deve privilegiar a preparação de quadros orientados exclusivamente para o desempenho profissional; deve ter igualmente como metas a qualificação da pessoa e a melhoria da sociedade e dos pilares em que assenta o edifício da comunidade. Venho, pois, reafirmar, contra a corrente, que a instrução em vigor, na escola e na universidade, não assume como objetivo prioritário a ´formação’ dos alunos. Não pretendo convencer ninguém, mas apenas participar numa discussão destinada a equacionar e alumiar o complexo problema e a separar as águas da confusão concetual.

O teor da ‘formação’ pode ser concebido à luz da proposição de Platão: “O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê.” A mestria instrumental e técnica, valorada pelos tenores desta hora como garante da ‘excelência’, não encaixa na visão do filósofo grego, nem basta e habilita o sujeito para a realização da tarefa primeira, a da exaltação da vida e das suas diversas dimensões.

Goethe postulou: a coisa mais digna de que se ocupam os humanos é a sua formação.  E Wilhelm von Humboldt, na esteira do seu amigo, elaborou o conceito. Qual é o destino do Homem? É ‘formar-se’. Consiste isto em quê? Em revestir-se de formas e forças novas, para substituir as que se gastam e vão ficando pelo caminho. Que formas e forças são essas? As que perfazem o EU, as que conferem identidade, elevação e dignidade ao Ser. Quais merecem a primazia? Todas devem ser formadas em igual medida e em harmonia; todas são imprescindíveis para agir condignamente no cenário existencial. 

Ora, a ‘instrução funcionalizante’, inscrita no figurino da moda, não capacita e encoraja a:
. Questionar o que deve ser questionado, alargar o olhar, enxergar o distante e o estranho, almejar a amplitude, a diversificação e imensidão do espaço;
. Perceber o perdurável, o intangível, o simbólico, o não revelado, os ‘a priori’ iluminadores e avaliadores dos ‘a posteriori’;
. Atribuir significados, admirar e cultivar o belo e bom, a amabilidade, amenidade e convivialidade, a suavidade e moderação, a empatia e simpatia, a compaixão, partilha e identificação com o outro, com o seu lugar e vivência. 

Sim, chama-se ‘formação’ à aspiração de buscar a verdade; é avessa ao fingir, mentir e omitir. Ela associa meios e fins, avalia as ações e as respetivas consequências, estimula a escolher as boas e a rejeitar as más. Confere ‘amplidão ao Ser’ e caracteriza o sujeito de saber experimentado, o ente propenso a compreender e entender, explicar e integrar o que se lhe opõe, o antagónico, o diverso, o inesperado, a valorizar o que até aí não tinha valor dentro dele. 

A ‘formação’ pressupõe contemplação, concentração, cultura, demora, estudo e leitura, autoexame, reflexão, serenidade, escuta e silêncio. Sem estes ingredientes, a existência enreda-se no frenesim estapafúrdio e na hiperagitação letal. Os indivíduos afogam-se em assuntos pequenos e ‘particulares’, caem no desvão do ‘imbecil especializado’, como alertou Ortega y Gasset. 

Nesta conjuntura é o tempo que comanda e amesquinha o pensar, reduzindo-o a cálculo, e tornando-o efémero, frágil, volátil, sem contacto com o sólido e o duradoiro. O alarido e o espalhafato generalizados e a falta de tranquilidade acarretam repulsa e até ódio às posições divergentes, inviabilizam o aprofundar da laboração mental, impedem-na de sobrepujar e influenciar a realidade com algo genuinamente diferente, novo e ‘outro’.

Ao pensamento pertencem a asa da liberdade e o luxo de se distanciar da necessidade e da unicidade, de fugir e despir o hábito da quadratura. Ao invés, a hodierna ‘fábrica escolar e universitária’ favorece a aversão à inquietação e promove o feitiço que induz a criatura a afazer-se ao cabresto de ‘animal laborans e eficiens’, escravo de imposições voluntariamente aceites. 

Somente os cegos, mudos e surdos, por opção, não percebem estes sinais na atualidade:
. Inaptidão para imaginar o diferente, o utópico, o lugar e a realidade inexistentes, porém possíveis;
. Regozijo por ter chegado a lugar nenhum, e decidir não mais sonhar.

Esta é uma era de peste: os loucos guiam os cegos. Desapegados da meditação, imersos nos números e estatísticas que funcionam como os postes para os bêbados, viciados nos índices e rankings, deitamos fora a utopia. Estamos reféns de coisas sem altura. Ainda haverá vontade de parar para pensar?!

03.10.2024
Jorge Bento