Integra
Cá estou na Kent State University, em Ohio, quase divisa com o Canadá, em uma daquelas atividades que tenho o privilégio de usufruir porque estou em uma universidade que incentiva não só o ensino, mas o desenvolvimento da pesquisa. Venho como professora visitante e meu objetivo é ampliar a pesquisa que faço hoje sobre os atletas olímpicos brasileiros em colaboração com a Profa. Kim Schimmel.
Diferentemente do que possam pensar alguns não fico o dia inteiro sentada na biblioteca, ou dentro de um laboratório. Também faço isso, aliás, que biblioteca! São 9 andares com quase tudo que se possa querer em língua inglesa e algumas coisas mais em outros idiomas. Mas, o que me parece mais importante nesse momento como pesquisadora é a possibilidade de conhecer outras pessoas. Não falo isso apenas com o sentido pragmático de fazer conexões e redes que me permitam publicar, publicar, publicar. Penso em estar com as minhas antenas ligadas naquilo que me possa colocar em contato com o mundo para tentar entender um pouco melhor esses seres que somos.
Por razões de logística estou convivendo com um grupo de pessoas que são professores de inglês em seus países. E assim tenho convivido, no mesmo apartamento, com uma professora do Senegal, Yacine, uma da Malásia, Sharin, e outra de Brasília, Alessandra,… isso mesmo, o mundo é tão pequeno que tem mais brasileiros por aqui… e olhe que somos apenas um pouco mais que 10% da população chinesa que está quase dominando o mundo!!! E fora do nosso grupo mais restrito de convivência tenho contato cotidiano com pessoas da Nigéria, do Marrocos, da Indonésia, África do Sul, Índia, Japão, Venezuela, China, óbvio, o que me faz apurar sempre e cada vez mais as lentes da cultura para a compreensão dessa nossa espécie.
Todas as terças-feiras 3 ou 4 pessoas do grupo abordam tópicos relacionados aos seus países, trazendo assim um pouco de informação sobre cultura, meio ambiente, política. Hoje fomos contemplados com uma apresentação sobre educação. E por quase uma hora ouvi no Gerald H. Real Center for International and Intercultural Education, Umi falar sobre o sistema educacional na Indonésia, assim como Rougi falou do Senegal e Lawrence apresentou o sistema na Nigéria. Assisti com um misto de curiosidade e emoção esses professores falarem com orgulho sobre seus fazeres pedagógicos mesmo diante da falta de recursos que impera na maioria dos países. Mais do que informações eles trouxeram imagens e sentimentos sobre o que é ser professor de ensino básico em salas com 60 alunos e ainda assim oferecer atenção e suporte a todos.
Entendo que talvez o que mais me tenha sensibilizado foi olhar para aquelas apresentações e ver ali também um pouco do Brasil. Aquele Brasil de não muito tempo atrás onde as estatísticas sobre a desigualdade eram diferentes das que temos hoje. Não sou nenhuma Poliana para achar que não temos mais problemas! Leio jornais diariamente e tenho formação acadêmica e política suficiente para compreender as mazelas que são tão nossas. Mas ali, naquele momento, pude perceber que ricos ou pobres todos temos problemas e desafios a vencer, e o que nos diferencia é o grau de dignidade com que lidamos com nossos problemas.
Isso ficou claro, quando ao final das apresentações, durante as discussões, Agneta, uma combativa professora da Nigéria, pediu a palavra para complementar uma resposta que seu colega tinha dado sobre a precariedade das condições de ensino em seu país. Disse que embora as salas sejam super povoadas e que o número de alunos por professor seja elevado, em seu país ensina-se na escola de dois a três idiomas, além da língua natal e que há outros componentes na educação que fazem os cidadãos de seu país serem quem são.
Fui ao encontro dela depois dessa discussão porque na semana anterior ela havia feito uma exposição sobre questões ambientais e me chamou a atenção como ela apresentou os programas de economia de água que são feitos nas escolas em um país onde o stress hídrico é crônico. Lembro de ter ficado atenta não apenas à forma como apresentou as informações, mas principalmente porque buscou apontar saídas, alternativas mesmo diante da escassez não apenas da água, mas de diferentes tipos de recursos. Para mim estava claro que mesmo com tanta falta, sobrava esperança. Depois de cumprimenta-la por mais uma intervenção digna de nota perguntei sobre os corredores de longa distância da Nigéria, reconhecidos como os melhores do mundo, afinal, tudo o que se relaciona com esporte me interessa diretamente.
E então ela me respondeu que correr é uma forma de se manifestar aquilo que cada um tem de melhor. Que as crianças na Nigéria percorrem longas distâncias para chegar à escola e o fazem correndo, porque aquilo lhes dá prazer. Não é apenas uma obrigação, pelo contrário, elas vão ao encontro da escola, correndo. E com um sorriso estampado no rosto foi me contando que esse prazer é um misto de orgulho e dedicação àquilo que está dentro de cada um, que é intrínseco àquelas pessoas. E com a mesma intensidade com que fez sua apresentação me falou sobre o que significa correr na Nigéria.
Esse diálogo me valeu por muitos semestres das Dimensões Antropológicas da Educação Física disciplina que lecionei durante muitos anos. Isso porque sempre evitei as discussões estéreis sobre os embates natureza x cultura que tanto ainda se tenta fazer nos estudos sobre o esporte. Sem contar que durante muito tempo os argumentos produzidos nessas discussões serviram para justificar muitas coisas, inclusive o preconceito e a discriminação contra as mulheres, os negros, os baixos, os magros, os fora de padrão de maneira geral. Teorizar sobre a diversidade e a cultura é fundamental para se entender o que se passa no esporte na atualidade. Isso porque mais do que justificar os resultados incomuns que ocorrem em diferentes modalidades é preciso entender que o mundo se ampliou para além das nações que historicamente determinaram o “quadro de medalhas”.
Isso representa uma transformação na geopolítica esportiva que vem ocorrendo a passos largos desde que o continente africano, a América Latina e a Ásia de forma mais ampla deixaram de ser os países “café-com-leite” do movimento olímpico, ou como diriam os colegas do atletismo “aqueles que vêm para preencher raias”, para buscarem o protagonismo que os europeus e norte-americanos tiveram ao longo do século XX. Se a falta de acesso às condições materiais eram as grandes responsáveis por esse distanciamento no passado o que se assiste hoje é que, com maior ou menor frequência, o acesso a essas condições e às teorias do treinamento está levando a uma maior participação na repartição das premiações. O bolo começa a ser dividido em mais pedaços. E quem está com o prato e o garfo nas mãos são aqueles, que como Agneta me falou, trazem em si o desejo da conquista. E esse desejo não está a venda nem em lojas especializadas, nem nos melhores sites de material esportivo. Isso está na cultura, na transmissão de valores, na educação que se recebe de professores como ela e alguns outros que tenho encontrado por esse mundo. Pessoas que têm a ousadia de pensar que podem mudar o mundo e trabalham para isso.
Vejo o esporte cada vez mais mobilizado pelo dinheiro. Nunca se pagou tanto para que alguns nos maravilhassem com suas performances sobre humanas. Nunca se mobilizaram tantos recursos para que cidades e nações recebessem em seu território competições capazes de receber público de todo o mundo. E por outro lado, nunca se falou tanto sobre a preocupação com as novas gerações que perderam o encanto pela competição em si, pela prática esportiva que forma esse sujeito que olha para os desafios com a satisfação em supera-los.
E a resposta talvez esteja nessa ausência de alma, nesse desânimo, nessa perda de orgulho que está vinculado a um valor… valor esse que não tem preço.
Por katiarubio
em 21-02-2012, às 21:20
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Comentários
Belo texto!
Por Felipe Futada
em 21-02-2012, às 23:03.
Inspirador, prof. Katia Rubio!
Por Moema
em 22-02-2012, às 7:32.
emocionante mesmo!!! conhecer outras culturas nos mostra que existe algo mais além de nosso quadrado… muito bom, Kátia
Por cristianne carvalho
em 23-02-2012, às 19:59.
Estudando, convivendo e aprendendo. Para se formar um homem/atleta é necessário, primeiro que tudo, uma visão preciosa de sí mesmo. E olhando “para dentro” é que encontramos razões para superar os obstáculos.
Por Edison Yamazaki
em 7-03-2012, às 2:52.
Excelente blog! Só a título de curiosidade há um agregador de conteúdos chamado Agrega Pais, que é voltado para pais e mães (mas é tão versátil que acaba tendo audiência da família toda, pois, vai dos blogs de mães até blogs geeks ou sobre mma) uma ótima forma de divulgar seu site para um público bem específico que no geral está adentrando a internet e uma forma de virar referência para este público.
http://agregapais.com.br/
Por Sandra
em 10-03-2012, às 11:12.