Integra

 1. Prática de ensino e educação pública


 Como todos sabemos, já há muito tempo a escola sofre uma contínua campanha que procura desmoralizá-la, desmobilizando a rede de apoios que ainda a sustenta, que a valoriza como espaço privilegiado de socialização do conhecimento. Esse processo diz respeito sobretudo a escola pública, cuja legitimidade é fortemente questionada, quase sempre em favor do ensino privado, por sua vez cada vez mais parecido, estruturalmente, com os shoppings centers. As recentes pressões para que o governo disponibilize créditos para o pagamento de mensalidades de alunos "inadiplentes", ao invés de aumentar o número de vagas em instituições públicas, são apenas mais um capítulo dessa longa história nacional de privatização daquilo que, a duras penas, foi conquistado como (ao menos parcialmente) público.


 Vivemos numa sociedade de mercado, perversa em suas relações sociais. O que mantém a estrutura universitária pública não são, no entanto, os lucros do mercado, mas seu subproduto mais residual, o imposto pago pelos trabalhadores. Se esse é um valor residual para o "sacrossanto mercado", certamente não o é para os deixam nele parte significativa de suas próprias vidas. Não é possível deixar de lado esse dado quando pensamos nosso papel, quando elaboramos nosso projetos pedagógicos, nos campos do ensino, da pesquisa e da extensão.


 Lembre-se que desde a Revolução Francesa - uma revolução burguesa no século XVIII - a educação pública, laica e de qualidade é considerada um direito, um pressuposto para o exercício da cidadania. Nos dias de hoje esse direito social é transformado em serviço oferecido no mercado, já que o exercício da cidadania está restrito àqueles que são consumidores, a vida pública àqueles que podem comprá-la.


 As Práticas de Ensino na UFSC, que englobam todas as licenciaturas, debatem-se diariamente com as questões que emergem justamente de mal-entendidos quanto a relação entre público e privado na educação, e muitas vezes parece-nos difícil responder de forma segura a todas as demandas acadêmicas, entre outros motivos porque o caráter público da universidade está sempre a perigo.
No meio desse conjunto de coisas difíceis de ordenar, mas cuja compreensão se torna uma exigência, deparamo-nos também com questões do ensino de Educação Física. Conhecidas de todos - ou talvez, nem tanto - essas questões guardam forte relação com o debate do público x privado, uma vez que as partes de um todo só se reconhecem quando são encaradas em seus movimentos de mútua determinação.


 As licenciaturas podem realizar seus estágios curriculares em escolas privadas? Que ênfase os cursos de formação de professores devem dar ao "mercado alternativo", à vida profissional fora da escola? Qual é a medida do trabalho de consultoria, da extensão pagas? O que significa relevância social na organização curricular, em um projeto de pesquisa ou extensão? Como garantir o espaço público e democrático em um modelo de sociedade cruelmente privatista?


 Os compromissos da Educação Física para com a educação escolar têm constituído um grande foco de atenção da Prática de Ensino. Particularmente, entendo que o Estágio Supervisionado não se realiza propriamente na turma na qual as aulas são ministradas. Pensando em um processo de escolarização integral, para qual a contribuição da Educação Física pode ser significativa, defendo um outro conceito, de que o estágio é na escola.


 A escola ensina formal e informalmente, elabora discursos e práticas que freqüentemente se contradizem, é espaço, ao mesmo tempo, de angústia e gratificação. Compreendê-la em suas múltiplas expressões e determinações, em sua localização histórico-social, como um entrecruzar de diferentes valores e normas, de idéias e sentimentos que potencializam (ou não) uma série de demandas e vetores de nossa sociedade, muitos deles contraditórios, é o primeiro passo. Em outras palavras, é preciso entender a escola como um lugar onde se realiza a vida humana, em todas as suas contradições.


 Desse processo participa a Educação Física escolar, o conjunto mais visível de várias técnicas corporais aplicadas na escola. Não é possível uma atuação pedagogicamente responsável sem que se tenha um conhecimento mais amplo no universo escolar, e isso vale também para a Educação Física. Por isso ganham importância a observação sistemática e rigorosa do universo escolar, a reflexão que possa vislumbrar suas relações com a conjuntura mais ampla, mais complexa, mais emaranhada nas redes da interdependência. Afinal, como sabemos, cada educador, inclusive para reconhecer-se como tal, deve ser um pesquisador de sua prática pedagógica (VAZ, 1999).


 É nesse contexto que se alinham duas situações ora em andamento na Prática de Ensino de Educação Física na UFSC. A primeiro diz respeito às alterações nos programas e ementas das disciplinas, a segundo refere-se aos Projetos Especiais, destacadamente aquele realizado em escolas rurais de Fraiburgo, no interior de Santa Catarina, que atende crianças que fazem parte do Movimento dos Trabalhares Rurais Sem Terra, o MST.


 Pela exiguidade do espaço, vou me ater, nesse momento, apenas a primeira situação.


 2. Novos conceitos, outras disciplinas


 A Prática de Ensino de Educação Física tem acompanhado as demandas e desafios impostos pela Educação Física escolar, ao mesmo tempo que identifica novas questões que podem levar a área como um todo a refazer algumas de suas reflexões. O contato constante com os ambientes escolares é um dos vetores principais desse processo.
O estágio supervisionado vem sendo realizado em duas disciplinas, oferecidas às sextas e sétimas fases do curso, chamadas Prática de Ensino de I Grau e Prática de Ensino de II Grau. Da forma como estão institucionalmente estruturadas, elas reproduzem a divisão já ultrapassada pela última Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Esta não é, no entanto, a questão fundamental que se nos coloca no presente.


 Trata-se de, no momento presente, consolidar a Prática de Ensino como um conceito, um eixo pelo qual os professores em formação possam reconhecer-se, integralizando os conteúdos da Licenciatura em Educação Física. Isso comporta pelo menos dois passos fundamentais. O primeiro deles é o reconhecimento de que o ensino e sua prática devem ser um eixo fundamental da formação profissional, de modo que ele se desdobrem ao longo de toda a formação. Já que a Educação Física é essencialmente uma prática de intervenção pedagógica (BRACHT, 1997), é preciso exercitar o ensino desde cedo, ganhando também maior familiaridade - adensada, mediada e reflexiva - sobretudo com a escola.


 O segundo, como já foi colocado, aponta-nos que é decisivo nesse processo a consolidação de um Estágio Supervisionado que não se limite à turma escolhida para as aulas, mas que se integre a todo o ambiente escolar. Para que isso aconteça é necessário que os alunos cheguem até o Estágio Supervisionado com um conhecimento mais amplo das questões escolares. Isso deve ser um propósito do curso que pretende formar professores para a escola. Por outro lado, o Estágio Supervisionado na escola deve contar com dois momentos, não mais divididos em graus de ensino diferentes (que seriam hoje o Fundamental e o Médio), mas, em cada um dos dois semestres, com uma proposta de intervenção diferenciada. Vejamos como isso pode acontecer.


 (Lembres-se ainda que as necessidades de mudança emergem da própria prática concreta, das relações que com ela estabelecemos, o que não significa, evidentemente, aderir ao universo do "novidadeiro", infelizmente tão presente em nossa pobre vida universitária.)
Ao considerar que o estágio deve ser exercido na escola como totalidade, uma vez que essa se expressa na singularidade da turma escolhida para a ministração de aulas, defendo que esta intervenção aconteça em dois momentos entre si articulados.


 O primeiro deles, a Prática de Ensino de Educação Física Escolar I, deve dedicar-se prioritariamente à aproximação da totalidade escolar e à elaboração de um projeto de trabalho consistente. É preciso conhecer a escola em suas várias expressões e representações, e qual é, final das contas, o papel que a Educação Física nela desempenha. É necessário perguntar sobre o projeto pedagógico dessa escola, sua especificidade, e qual o lugar que nele ocupam os diversos cuidados com o corpo. Já na Prática de Ensino de Educação Física Escolar I deve haver intervenção pedagógica direta, mas subordinada ao processo de reconhecimento do contexto escolar e ao cuidadoso planejamento das atividades.


 A Prática de Ensino de Educação Física Escolar II deve ser realizada preferencialmente na mesma instituição de ensino que a prática anterior, para que haja continuidade no trabalho por parte da dupla de estagiários. Destaque-se que o Estágio Supervisionado deve, na medida do possível, permanecer nas mesmas instituições ao longo de vários semestres, a fim de que o trabalho pedagógico possa ser melhor avaliado e reconduzido junto com todos os sujeitos envolvidos no processo. Na Prática de Ensino de Educação Física Escolar II os estagiários teriam a oportunidade de ministrar mais aulas, tomando em conta, de forma ampla, o conhecimento produzido no semestre anterior, bem como aquele já acumulado por outros estagiários.


 Da forma como se colocam as coisas, os estudantes não necessariamente precisariam realizar seu estágio em graus diferentes de ensino, uma vez que o que está em jogo não é apenas a variabilidade das vivências de ensino junto às turmas escolares, mas uma ampla e tão densa quanto possível experiência de investigação/intervenção no universo escolar.


 Considero, portanto, que um amplo e denso conhecimento sobre a realidade escolar, que inclua uma intervenção responsável, alicerçada em um projeto pedagógico claro, é mais importante e frutífero que um conjunto disperso e desarticulado de vivências em diferentes graus de ensino.
Obs. O autor é membro do MEN/CED/UFSC - Universidade de Hannover/CAPES


 Referências bibliográficas


 Bracht, Valter. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre, Magister, 1997.
Chaui, Marilena. Nova barbárie: o ’aluno inadipliente’. Folha de São Paulo, p. 1-3, 12/12/1999.
Vaz, Alexandre Fernandez. Uma resposta à pergunta: pesquisa em educação física: para quê e para quem. Motrivivência. n. 5,6,7(4), 1994.
____________ Aprender a produzir e mediar conhecimentos: um olhar sobre a prática de ensino de educação física. Motrivivência. n. 14, 1999. (No prelo)