Integra

 A questão


 Podemos perceber que, desde a década de 80, sob a égide das teorias críticas, a área de educação física vem operando importantes modificações tanto quantitativas como qualitativas, e não é difícil achar falas que o confirmem.


 "A multiplicidade de discursos ocorrida no período mostrou-se extremamente relevante, tanto em termos de qualidade de proposições quanto na sua qualidade. A conseqüência, como será apresentada, foi o surgimento de várias formas de pensar a educação física, levando ao intenso debate entre os representantes de cada uma delas." (DAOLIO, 1998:43)


 "Muitas mudanças importantes ocorreram na Educação Física nesse período. A implantação dos cursos de preparação profissional com a implantação do bacharelado e a proposição de múltiplas abordagens para a Educação Física escolar podem ser identificadas como principais mudanças ocorridas" (TANI,1998:22)


 Hoje, podemos constatar uma ampliação dos recursos científicos, representada pelo aumento de instituições científicas, de revistas especializadas, de congressos, de seminários, de encontros, enfim, da maior possibilidade de produção e distribuição do conhecimento da área. Simultaneamente, verifica-se a consolidação do campo de conhecimento desde a década de 80, marcada pela abertura de pós-graduações, principalmente as de stricto senso (de mestrado e doutorado), o que possibilitou uma maior auto-reflexão sobre sua produção, além de sua maior organização institucional. Temos aqui a configuração de um quadro que as teorias críticas ocuparam espaços institucionais significativos, conseguindo hegemonia em boa parte da produção do conhecimento e sendo as responsáveis diretas pela maior diversificação de análises que caminham para um rompimento com o paradigma biomédico de aptidão física. Seria de se esperar, portanto, que esta vasta produção, associada às teorias críticas, estivesse identificada com as práticas pedagógicas da educação física escolar. Porém, não são poucos os pesquisadores da área que chegaram à conclusão de que o conhecimento produzido não vem materializando-se em práticas pedagógicas efetivas. Também não faltam falas neste sentido:


 "Entretanto, há também uma percepção generalizada de que as mudanças ocorreram, fundamentalmente, no mundo acadêmico, e que o ambiente profissional, onde a intervenção social ocorre de fato, continua imune a essas mudanças. Com razão, o distanciamento entre ambiente acadêmico e o profissional tem sido denunciado como sendo um dos maiores problemas enfrentados pela área." (TANI,1998:21)


 Uma vez observada a problemática, poderíamos, de forma quase automática, suscitar várias questões, no intuito de buscar indícios das possíveis causas desta descontextualização do conhecimento na realidade escolar. Assim, podemos questionar: por que o conhecimento produzido pelas teorias críticas não se materializou em práticas pedagógicas efetivas, uma vez que já tem quase 20 anos de existência? Será que o pensamento crítico ainda não faz parte dos currículos universitários, não se configurando uma realidade na formação dos professores? Haveria, ainda, uma falta de proposições pedagógicas concretas, pautadas na realidade sócio-cultural? No caso da existência de proposições, seria o caso de uma inadequação metodológica? Seria porque estas idéias ainda não fazem parte de recomendações pedagógicas oficiais? Será que não houve tempo suficiente para que estas teorias pudessem materializar-se em práticas concretas e, sendo assim, ainda estariam por vir?


 Sentido utilitarista de educação


 Provavelmente seria um trabalho exaustivo buscar respostas fundamentadas para todas as questões suscitadas, conduzindo a uma multiplicidade de campos de análise, o que não vem a ser aqui, definitivamente, o meu caso. Aliás, caminhando em sentido oposto, pretendo refletir sobre o que há de comum a todas questões levantadas, ou melhor, pretendo mostrar o que existe de revelador na própria existência da diversidade de questões, diante da problemática da constatação de não materialização das teorias em práticas efetivas. Sendo assim, o que me parece estar em jogo é como se concebe esta relação da produção de conhecimento com a prática pedagógica da educação física, e, por conseguinte, qual o sentido de educação que estamos imprimindo. Não é difícil notar que as questões apresentadas são acatadas como legítimas, e, em geral, interrogam sempre na direção de falhas, deficiências ou equívocos da produção do conhecimento, ou mesmo de sua subsequente aplicação. Trata-se de uma espécie de relação de causa e efeito, apoiada numa concepção de educação como um campo de aplicação dos conhecimentos produzidos pela ciência de referência. Em suma, a educação, assim caracterizada, significaria a seleção e organização dos conhecimentos científicos, para serem transmitidos, através da escola, às futuras gerações. Por conseguinte, a função da escola de "transmissão do conhecimento elaborado" confere à educação um sentido instrumental de caráter pragmático e utilitarista. Este sentido instrumental de educação, e, por conseguinte, de educação física, em geral, ditado por algumas das correntes das pedagogias críticas, que consideraram o homem determinado por seu contexto, evacuava os atores sociais do objeto de análise ao reduzi-los a determinismos que lhes escapam à consciência. Desta forma, institui-se a compreensão de que a instituição escolar é um mero depositário de métodos e conteúdos, destinado a adaptar (ou simplificar) os conhecimentos produzidos pela área de conhecimento matriz.


 Outros sentidos


 Ao contrário desta visão pessimista e imobilista da função da escola, agora entende-se que ela seja uma construção histórica, com dinâmica própria, e relativamente autônoma, pois reproduz e produz a cultura na qual se insere, guardando consigo todas contradições políticas, sociais, e pedagógicas inerentes à sociedade em questão. Neste contexto, o conhecimento escolar não se relaciona de forma instrumental com a produção científica, pois "...os conteúdos de ensino são impostos como tais à escola pela sociedade que a rodeia e pela cultura na qual se banha.". (CHERVEL, 1990:180) Portanto, a finalidade do empreendimento educativo, assim como seus conteúdos disciplinares, está associada à responsabilidade de transmitir, perpetuar e produzir a experiência humana, considerada como cultura. Por consequência, os conteúdos de ensino não seriam identificados como adaptações de uma ciência matriz, mas seriam a própria dinâmica de ensino na realidade sócio-cultural, numa relação produção/reprodução, uma vez que representam os conhecimentos, competências, crenças, hábitos, habilidades e valores, no constante movimento de uma sociedade.


 Sob este novo ângulo, a escola pública torna-se um importante órgão de socialização popular, com a tarefa de assegurar uma cultura pública comum, além de constituir-se como um espaço privilegiado de permanente instituição de valores e idéias, num constante debate público da significação do que almejamos para a nossa sociedade. Nesta concepção de educação, que tem na cultura o seu sentido primeiro, as práticas pedagógicas, diferente de serem consideradas como receituários, são consequências de princípios filosóficos, podendo conter elementos das mais diversas abordagens, desde que transmitam e produzam cultura, fornecendo a possibilidade humana de criar seu "próprio modo de existência" .


 Conclusão


 É de fundamental importância, ao meu ver, eventos acadêmicos como este, destinado à reflexão e troca de experiências de práticas pedagógicas que discutam efetivamente a intervenção do conhecimento, neste espaço privilegiado de análise que é a escola. No entanto, torna-se importante discutir algumas questões que se encontram em evidência e intimamente relacionadas com o debate atual.


 Ao nos reunirmos em torno destas questões sobre o campo de conhecimento da educação física, estamos, necessariamente, tratando de relações objetivas entre os agentes e instituições deste campo, as quais concorrem para obter mais autoridade científica. São estes agentes da produção do conhecimento que pretendem conseguir a legitimidade do que, de como e de quem pode produzir e distribuir o conhecimento. No interior do campo, existem hierarquias de autoridade científica, nas quais idéias, conteúdos e concepções concorrem para conseguir hegemonia e, assim, fornecer prestígio e reconhecimento acadêmico aos agentes. Como ocorreu um alargamento de análises, e uma melhoria qualitativa e quantitativa no campo de conhecimento da educação física, a autoridade científica tornou-se mais difícil. Assim, alguns grupos buscam o expediente de gerar novas entidades científicas, e pregam a abertura de novos campos de conhecimento, alegando a existência de vários objetos de estudo e, principalmente, utilizando-se do argumento de estar atendendo a demandas específicas, e conseguindo interagir melhor com a realidade concreta de seu campo de atuação. Ao criarem uma campo de conhecimento especializado, alguns grupos já nascem com o monopólio da autoridade científica. Caso determinado grupo de pensamento se torne hegemônico a ponto de romper com a importante tensão e conflito com as demais concepções, corre-se o risco de eleger uma abordagem específica, cuja proposta pedagógica, pensada previamente, seja elevada a categoria de receituário de "boa educação física", imune às críticas e debates de outras formas de pensamento.


 Creio ser imprescindível a consolidação de um estatuto epistemológico, não por estar convicto da existência de um único objeto de estudo, mas por acreditar na necessidade de se criar uma instância reguladora para o campo de conhecimento, que estruture e organize as disputas de autoridade científica, de concepções, de conceitos. E, desta forma, que se mantenha a necessária tensão e conflito de idéias que hoje tornam tão peculiar nossa área de conhecimento.


 Darrido (1997), observando aulas de educação física, demonstrou, de forma indireta, que as práticas pedagógicas não seguem uma abordagem específica em sua totalidade, envolvendo-se com elementos de diversas abordagens. Em suma, se o ensino prescinde de legitimidade da coisa ensinada, vista como um reconhecimento por parte daqueles a quem o ensino é dirigido, acho pouco provável que um professor consiga implementar uma proposta pedagógica "pura", em sua integridade, sendo pensada a priori sem conhecer e "negociar" com a realidade escolar na qual se insere. Assim, vejo a questão da diversidade de abordagens como subsídios importantes à formação do professor, recurso indispensável para permitir que este usufrua de sua criatividade e do poder de deliberação que lhe compete, desde que guarde a devida coerência, e compromisso com princípios filosóficos, pedagógicos e políticos, anunciados previamente aos agentes envolvidos e aos pares profissionais.


 Obs. O autor é mestrando em educação- UERJ


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