Integra

Faz 3 semanas que não consigo publicar nada no blog. Não que falte assunto, ou que nada esteja acontecendo no mundo do esporte ou da psicologia do esporte que não me faça pensar. Mas, é como se eu estivesse vivendo um momento de overwriting – versão acadêmica de overtraining.

Escrevo isso sem vergonha nem pudor, principalmente porque muitos pensam que escrever, para mim, é um gesto tão natural quanto respirar, dormir ou comer. Não. Não é. As palavras que viram texto escrito exigem elaboração, inspiração e certeza de serem colocadas no lugar certo, como as peças em um tabuleiro de xadrez. Cada uma tem sua função específica, locomoção própria (só para frente, de casa em casa, na diagonal, saltando outras peças ou fazendo todas essas funções) e, um deslocamento desastroso e a partida é perdida com um cheque mate monumental.

Penso que essa forma de escrever e de me comprometer com o que escrevo vem desde a minha infância quando eu tomei contato com as primeiras leituras. Longe de mim querer fazer parecer que escrevo “desde criancinha”. A escrita foi um ato da maturidade, depois da faculdade de psicologia, mesmo tendo sido jornalista e redatora publicitária antes.

Os livros são meus parceiros constantes desde há muitos anos. Muito embora meus pais não tenham tido a oportunidade de chegar à universidade, livros em casa sempre foram gênero de primeira necessidade. Aliás, lembro quando criança de acordar mais cedo às terças-feiras porque era dia de ir à feira com minha mãe. Mais do que puxar o carrinho e experimentar tudo o que me era oferecido (de frutas a salsichas) gostava também de ajudar minha mãe na escolha dos livros da semana. Isso porque havia um sebo em nossa feira e de lá vieram os livros que formaram a biblioteca da família com obras de José de Alencar, Machado de Assis (muito embora minha mãe nunca tenha gostado muito dele), Aluísio Azevedo, enfim, os clássicos básicos da literatura brasileira assim como Dostoiévski com Crime e Castigo em uma edição que já deveria ter frequentado muitas outras feiras livres, e Guerra e paz de Tolstoi que me deixou fora de circulação por uma semana. Eu simplesmente não conseguia parar e por causa disso faltei até nos treinos de vôlei da escola para ler aquela narrativa mágica sobre a Rússia dos tempos da invasão napoleônica. Isso se repetiu muitos anos depois com alguns outros livros como as biografias do Led Zeppelin e do André Agassi, de autores não tão renomados, mas capazes de contar histórias não menos interessantes para minha vida presente. Além disso, meu pai trazia uma vez por semana o Pasquim enrolado dentro do seu jornal diário, a Ultima Hora, com o saquinho com amendoim na casca que ele comprava no ponto de ônibus.

Toda essa paixão pelos livros me faz ter uma relação curiosa com a leitura e com a escrita. Durante o processo de leitura eu não apenas leio, mas discuto com o que leio… literalmente. Entre um “que maravilha!” ou “isso é um absurdo”, em voz alta, durante o processo de leitura faço meus comentários também por escrito ao longo das margens e também rabisco trechos como se pudesse ter com eles um encontro futuro para resgatar o assunto pendente daquele parágrafo. Ou seja, minha leitura é tão dinâmica quanto requer o próprio pensamento.

Com a escrita se passa o mesmo. Longe da pressa de antanho, quando o texto parecia uma batata quente e o prazer maior não era construí-lo, elabora-lo, mas sim livrar-me dele o mais rápido possível. E assim, eu cumpria o dever de escrevê-lo, mas quase não tinha qualquer relação afetiva com o que fazia. Hoje a escrita é para mim um ato produtivo, de compromisso, e também de prazer. Penso que isso ocorreu quando pude começar a escrever aquilo que efetivamente eu pensava, sentia e de alguma forma colaborava para a reflexão sobre as dúvidas, dilemas e concordância de outros.

Por isso creio que fiquei essas semanas sem escrever. Talvez porque as ideias estivessem embaralhadas, como as peças de um jogo de xadrez indefinido, onde peão foi comido por outro peão sem que a partida tivesse um objetivo claro. Não gosto de iniciar uma partida sem ter minimamente claro qual a estratégia adotarei. E assim, preferi o silêncio, o recolhimento, rompido pela necessidade de escrever sobre o momento de parar. Sim, parar mesmo quando tudo e todos dizem que é preciso, é necessário, ir adiante… O “você tem que”… de novo.

Estamos a poucas semanas dos Jogos Olímpicos. Isso sugere que atletas, comissões técnicas, dirigentes e o público que acompanha o esporte estão prestes a assistir a mais um espetáculo grandioso que ocorre apenas de 4 em 4 anos. E uma vez mais acompanho de perto a preparação de alguns atletas que já estão com seus passaportes carimbados para Londres. E seguindo a periodização do treinamento estamos muito perto daquele ponto quase ideal da preparação. Alimentação em cima, treinamento seguido à risco, acompanhamento psicológico focado, fisioterapia e acupuntura segurando o corpo para que a dor não seja maior que o medo de senti-la, nada pode dar errado. Mas, às vezes, esquecemo-nos de dizer para a vida que o plano é esse e ela então, desavisadamente, coloca em nosso caminho as pedras de Drummond. E premidos pelo planejamento, pela periodização, pelos compromissos ou então pelo sonho, passamos por cima das pedras sem parar, ao menos, para tentar entender porque elas apareceram ali naquele momento, e não em outro. E munidos de pás, carrinhos e vassouras saímos a limpa-las, recolhe-las ou joga-las para o canto, sem tentar entender de onde elas vieram, se aquilo não é um sinal ou sintoma de que algum abalo está ocorrendo ali ao lado, bem no meio do caminho. E essa falta de atenção aos sinais leva àquelas situações indesejadas nesse momento: uma lesão, um descontrole temporário ou a perda do foco. E uma vez mais repetimos aquela velha conhecida questão: porque não paramos antes? E a resposta inevitável nesses casos é: porque não podemos.

Mas, diante dos casos que tenho acompanhado, eu arrisco dizer que podemos sim. Ou melhor, não podemos, mas devemos.

O exercício permanente e constante de uma atividade, seja ela física ou intelectual, permite que tenhamos uma poupança de inteligência acumulada que pode ser acionada no momento de nossa necessidade. É por isso que conseguimos ir bem em uma prova mesmo sem ter estudado no dia anterior, escrever um texto quando parece não haver assunto ou inspiração ou ainda se sair bem em uma competição mesmo tendo parado um tempo por causa de uma lesão. Lembro ter estudado isso há muitos anos atrás em uma aula sobre treinamento mental, que assimilada burocraticamente, fazia entender que era possível se chegar a bons resultados efetuando apenas o treinamento mental, sem o treinamento físico, quase como um milagre. Arrisco dizer que os milagres também podem ser construídos. Isso porque participamos deles efetivamente, ativamente. Os milagres não ocorrem para os passivos, melancólicos, acomodados. Toda realização é um ato milagroso, surpreendente, dado pelo esforço do trabalho acumulado em muitos anos, mesmo quando pedras do caminho se interpõe entre o realizador e seu objetivo.

E, nessa perspectiva, parar não significa desistir, mas resistir. Não representa se entregar, mas enfrentar.

E aos incautos, ou arautos do apocalipse, toda a atenção: respeitem o silêncio e a necessidade de recolhimento daqueles que estão em franco exercício mental, mesmo que seja para a realização de uma atividade física ou de um textinho.

25/2/12

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