Integra

Já faz um tempo que me detenho a estudar as questões relacionadas com a dor. Motivada pela história de vida de alguns atletas quando escrevi os Heróis Olímpicos Brasileiros passei a observar com mais atenção as narrativas e discursos a respeito desse tema.

Comecei notando que vários dos atletas entrevistados falavam espontaneamente de uma dor que é cotidiana, e, portanto passa a ser normal na vida deles, que eu acabei por nomear como dor de treinamento. Nesse tipo de dor o atleta se sente quase confortável e associa sua intensidade e frequência ao reconhecimento de um dia intenso de trabalho. É uma dor quase prazerosa, diriam os mais sádicos.

Há, por outro lado, uma dor indesejada, dolorida de dar dó, porque impede o treino do dia seguinte, e quem sabe das próximas semanas, até mesmo finaliza o campeonato ou a carreira. Essa é a dor da lesão. Dor perigosa não apenas pelos impedimentos de ordem física, mas porque representa uma grande ameaça do ponto de vista emocional por testar o limite da superação do atleta, e porque do ponto de vista material coloca em risco contratos e a própria carreira.

Ao longo da minha atual pesquisa em que tenho ouvido todos os atletas olímpicos tomei contato com outros tipos de dor. Claro que em se tratando de seres humanos, poderemos ter tantas percepções e qualificações sobre a dor quantos atletas forem entrevistados, principalmente se eles forem alguns tipos particulares que olham a vida com óculos de lentes especiais, aquelas que permitem olhar não para as coisas, mas para além delas.

E assim pude ouvir narrativas a respeito da dor da derrota, por exemplo. E, acredite, ouvi algumas coisas de espantar, e outras, simplesmente de cortar o coração. Há derrotas que marcam a vida de atletas muito mais do que as vitórias. Isso, às vezes, está relacionado com a onipotência que o atleta vive naquele momento da vida e é muito difícil para um deus se ver falível, menor, derrotado. O que há de interessante nessas circunstâncias é que se bem elaboradas, essas situações podem representar verdadeiros pontos de transformação na vida desses atletas. Por outro lado há aqueles que mesmo depois de muitos e muitos anos ainda continuam a remoer aquele resultado, carregando-o como a um trem cheinho de minério de ferro… pesado, pesado. Compreensível essa dor na vida de quem foi educado e preparado apenas para vencer.

Ouvi também sobre a dor do corte entre alguns atletas que posteriormente se tornaram técnicos. E que, curiosamente, após a inversão de papeis passaram a redimensionar a carga que aquela situação carregava. Claro que isso está presente na fala daqueles menos egoístas, endeusados ou ensimesmados com a própria fama e glória. Afinal, ser técnico pode fazer supor coisas imponderáveis. Falo de técnicos que, como bem pesquisou David Alves de Lima em seu mestrado, assemelham-se a mestres. Esse tipo de técnico mais do que ensinar técnicas e boas jogadas a seus atletas tem o cuidado de olhar para o sujeito que executa a ação antevendo os muitos desdobramentos que aquilo provoca tanto em quem assiste, como em quem executa ou ainda no adversário. Não é à toa que a referência de comparação para esse tipo de técnico seja o Centauro Quíron, o preparador dos grandes heróis da mitologia. Uma das características marcantes desse centauro, e, portanto imortal, é que ferido por uma flechada mortal é fadado a sofrer para o resto de seus dias, uma vez que não pode experimentar a morte. E, para poder lidar com a própria dor, passa a cuidar das dores alheias.

O que vejo então dessas muitas manifestações e representações sobre a dor é o quanto há de marcas pessoais, carregadas a partir da própria história de vida dos sujeitos, e também sociais e culturais. Em toda a literatura sobre a dor encontramos essa questão específica da cultura, daí a dificuldade de se construir ou traduzir instrumentos de avaliação sobre o tema. Isso porque, toda avaliação do sujeito sobre a dor é subjetiva, e por mais que se tente objetiva-la a sua construção está referenciada em parâmetros desenvolvidos social e culturalmente.

Por isso a dificuldade de se entender a exata dimensão do quanto dói uma dor, seja ela de que tipo for. De uma pancada na quina da mesa, ou o acúmulo de ácido láctico na panturrilha, ou o erro na execução do último ponto do jogo, ou a dispensa do 13º jogador nas vésperas do embarque para os Jogos Olímpicos, enfim, não há muito a dizer se isso foi pior ou melhor daquilo que eu senti, assim como é trágica a frase: “eu sei exatamente o que você está sentindo…”. É trágico porque embora pareça reconfortante uma frase dessas, como canta Marisa Monte, “a dor é minha só, não é de mais ninguém”. Sei que é duro dizer isso e nem quero ser injusta com todos aqueles que se solidarizam com quem precisa de algum tipo de apoio ou conforto nas piores horas da vida. Falo isso por conta das muitas situações já vividas como psicóloga em que sou procurada justamente pela necessidade de se elaborar uma perda. Por mais que eu me prepare para oferecer uma boa resposta ou acolhida, não está escrito em nenhum manual qual a melhor maneira de fazê-lo. E então novas respostas, novos entendimentos vão surgindo à medida que posso ouvir mais, entender aonde dói a dor e porque ela dói tanto, quais os desencadeantes e porque ela gera sofrimento.

E então chegamos ao ponto. Como bem escreveu o poeta Drummond

A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional.

E voilá. Por que será que às vezes optamos por sofrer, por arrastar nossa dor como o paninho do Linus do Snoopy aonde quer que a gente vá?

Lembro de ter lido essa construção do Drummond exatamente há um ano, na sala de espera de uma clínica em que meu pai foi atendido quando ele teve um problema cardíaco. E embora ela tenha reverberado em mim a ponto de eu adotá-la como uma de minhas citações preferidas, eu não tinha a menor ideia que estaria fazendo seu uso justamente para falar de uma dor, que é a dor da perda de alguém que se ama. E que, embora nenhum dos atletas tenha falado sobre ela posso afirmar que diferente da dor do treinamento eu não espero encontra-la no dia seguinte indicando que tive um bom dia de trabalho. Que ela não é a dor da lesão, porque não haverá cirurgia que a faça recrudescer. Que ela não se parece com a dor da derrota, muito embora guarde semelhanças com algumas reflexões como: o que será que eu fiz de errado, que ponto fundamental eu deixei de fazer para esse resultado ou pior ainda, será que eu estava no time certo para esse campeonato? Mas, como o tempo não volta, já não vale mais a pena gastar tempo pensando nisso. Talvez ela se aproxime da dor do corte, afinal embora aquele que se perdeu possa ser representado pela camiseta que ele usaria ou pela foto montagem para suprir a falta física, mas a ausência está lá, profunda, aguda, dolorida pela impossibilidade de se substituir quem falta. E então sobram os vestígios: músicas, situações, palavras e a constatação de que o dia em que isso vai passar também é uma variante pessoal, porque se para alguns bastam semanas, para outros talvez seja necessária uma nova vida.

DAVID ALVES DE LIMA. Técnico-Mestre e Atleta-Herói. Leitura Simbólica dos Mitos de Quíron e do Herói entre técnicos de voleibol. Dissertação de mestrado. Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. A ser defendida em 23/03/2012.
RUBIO, K., GODOY MOREIRA, F., RABELO, I. Percepção do esforço e da dor pelos atletas de multiathlon. Revista Dor. v.11, p.37 – 44, 2010.
GODOY MOREIRA, F., RUBIO, K. A dor em corredores com fascite plantar: o uso da acupuntura. Revista Dor , v.9, p.1290 – 1296, 2008.
RUBIO, K., GODOY MOREIRA, F. A representação de dor em atletas olímpicos brasileiros. Revista Dor , v.8, p.926 – 935, 2007.

Acessar