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Primeiras palavras

A discussão acerca da formação de docentes em nosso contexto demanda considerar diversos aspectos que certamente interferem nesse processo. Desde as políticas governamentais para o Ensino superior- lócus privilegiado, mas não único, de formação de docentes-, passando pela questão dos saberes necessários à prática pedagógica crítica e criativa, bem como a consideração acerca do próprio papel do professor em nossos tempos.

No caso da Educação Física (EF) não é diferente. A formação de docentes desta área acaba por propiciar um rico e profícuo debate envolvendo diversas tendências, bem como a diversos interesses nessa formação. Nesse sentido, também identificamos uma perversa tendência de uma formação voltada unicamente para os interesses do mercado(1), em detrimento de uma formação pensada a partir dos interesses da sociedade. Neste caso, percebemos uma formação quase técnica, deficitária de reflexões e discussões acerca da inserção da EF em nosso mundo, bem como acerca da própria contextualização deste próprio mundo onde acontece esta formação.

A partir destas considerações, o presente trabalho pretende promover uma reflexão coletiva de questões para subsidiar um melhor aproveitamento das disciplinas desportivas na formação do docente de EF. Nossa proposta vem levantar um debate acerca da predominância dos aspectos técnicos e táticos dos esportes nesse processo de formação, o que acaba por não contemplar toda a abrangência deste rico fenômeno social em nosso tempo, assim representando uma barreira (ainda bem que transponível) para atuação do professor na Escola.

Para discutirmos o problema principal deste texto- as disciplinas esportivas na formação profissional em EF-, faz-se necessário considerarmos aspectos inerentes a pelo menos três temas: esporte, formação de docentes e Escola, compreendendo que todos perpassam a temática central deste artigo.

Aprofundando relações

Pensar o papel que esporte tem desempenhado no interior da Escola demanda uma compreensão ampla de diversas questões. Por exemplo, não podemos deixar de considerar as diversas tentativas de tornar um esporte, enquanto conteúdo escolar, um braço do esporte de rendimento ou da Instituição esportiva (clubes, Federações, Comitês Olímpicos)(2).

Se pensarmos que durante algum tempo, grande parte dos responsáveis pela disciplina Educação Física, a priori responsável por tal conteúdo na Escola, atuavam convictos de que sua função principal era identificar os alunos mais hábeis para comporem as equipes esportivas desta instituição nos jogos escolares, perceberemos que tal paradigma de atuação restringia e muito o potencial pedagógico de tal fenômeno.

Com o início de um debate fundamentado nas teorias críticas de Educação, começou-se a questionar alguns valores intrínsecos ao esporte escolar. Um desses valores, sem dúvida, é sua aproximação com o esporte de alto rendimento, seja como celeiro de atletas, ou até como outro momento de treinamento para os alunos-atletas. Registrando as contribuições de Elenor Kunz (2000), temos que, tendo o esporte de alto rendimento como princípios básicos à sobrepujança e as comparações objetivas, e que em decorrência destes princípios temos os processos de seleção, de especialização e da instrumentalização nessa concepção de esporte, sua relevância como conteúdo da disciplina Educação Física torna-se algo muito discutível. Daí a necessidade de pensarmos em outro esporte para a escola.

Ainda neste ponto, registramos os apontamentos do Coletivo de Autores (1992), que afirmam ser importante perspectivarmos a possibilidade de se trabalhar no conteúdo da Educação Física escolar um esporte com finalidades diferentes dos que são transmitidos pela mídia e Instituição esportiva. Com isso, chegam a pensar no "esporte da escola", que seria aquele praticado a partir dos interesses da Escola, em detrimento do "esporte na escola", que seria aquele esporte proposto pela Instituição esportiva que entraria pelos porões da Escola sem receber nenhum tratamento didático pedagógico, com os mesmos sentidos e significados do esporte de rendimento.

Após essa breve discussão acerca das relações entre esporte e Escola, procedermos alguns comentários gerais sobre a formação de docentes.

Buscando realizar alguns apontamentos acerca da formação de docentes, Anna Maria Caldeira (2001) nos faz uma alerta que o processo de formação deve, portanto, ser entendido como um processo inacabado, ou seja, é inconcebível pensar que professor vá estar "formado", ou pronto, ao fim da graduação. Esta formação, sendo um processo, se inicia antes da entrada na Universidade, pois o futuro professor também será influenciado pelo seu tempo de aluno, ou seja, a partir das referências que teve enquanto estudante.
Por outro lado, também sabemos que este processo não deve terminar com a graduação, e sim a curiosidade epistemológica, como bem nos lembrou Paulo Freire (1996), deve acompanhar o professor por toda a sua trajetória docente.

Discutindo esta questão Marcelo Melo (2002), afirmou ser preciso que esta formação se dê pautada em princípios claros que envolvam alguns saberes indispensáveis à prática docente. Diante disso, é mister que o professor/a tenha claro desde o início o que pretende de sua aula, e o lamentável é que a formação de docentes de EF não tem destinado atenção a prover meios para os alunos- futuros docentes- responderem à questão "para quê ensinar"?

Ainda com este autor temos:

"No que tange ao ensino dos esportes, essa pergunta nos remete a pensarmos nos propósitos da atuação de um professor de escolinhas ou turmas de iniciação. Quanto a resposta a questão acerca do que ensinaremos, a graduação nos dá algumas respostas: os famosos fundamentos ou elementos do esporte que tivermos lecionando. Já em relação a intenção, ou seja, as finalidades de estar ensinado determinados esporte não temos observado uma clareza por parte da formação em EF para enfrentar tal problemática" (MELO, 2002, p.09).

Jocimar Daólio (1998) ainda nos aponta que a ênfase dada na formação aos aspectos técnicos/táticos dos esportes, bem como as regras dos esportes -muitas vezes entendida como algo pronto e acabado, incapaz de ser reinventado-, acaba por promover uma visão restrita por parte do professor das possibilidades de se trabalhar com o esporte enquanto conteúdo da Educação Física escolar (EFE). Assim, evidenciamos que, diferente de uma construção do conhecimento, as disciplinas desportivas privam por um saber já construído, "como fazer", reproduzindo o saber alheio (educativos, regras, etc.) limitando o conhecimento do docente no que aprendera em sua formação. Assim, está claro que um curso que privilegie somente as dimensões técnicas do esporte, de certa forma não estará contribuindo para formação de um docente capaz de considerar o esporte como parte da cultura humana.

Parece que o este curso de formação tem privilegiado o "como fazer" como se este pudesse se dar deslocado do "por que fazer?". Por que será? Seria apenas pelo fato da maioria desses professores serem ex-atletas? Pela ainda marcante presença das tendências tecnicistas de ensino, que teimam em não nos deixar em paz? Ou o fato das disciplinas desportivas não serem constituídas de uma linha pedagógica no uso da educação formal e não formal?

Entendemos que mais do que ficar buscando culpados e algozes, urge discutirmos possíveis pontos para superarmos isso. Aceitamos que, conforme nos apontou Jocimar Daólio (1998), a falta de uma base pedagógica no ensinamento dos esportes, gera uma urgente necessidade do repensar sobre o papel das disciplinas desportivas na formação do professor de EF.

Com isso, afirmamos que começar a discutir sobre os sentidos e significados dos esportes escolares pode ser um bom começo. Responder a algumas questões poderia clarear um pouco a caminho. Por exemplo, qual deve ser o papel do esporte enquanto conteúdo escolar? Quais saberes os alunos devem adquirir a partir da vivência com este conteúdo na Escola? Deve o professor objetivar ensinar somente os gestos técnicos do esportes?

Acreditamos que estas são questões a serem debatidas durante qualquer disciplina esportiva durante a graduação. Responder a essas questões é tão ou mais importante para o futuro professor do que saber executar o gesto motor do esporte que ele trabalhará. Não estamos propondo trocar o fazer pelo refletir. Acreditamos que estas questões não se opõe de forma maniqueísta, como se uma excluísse a outra. Ou seja, não pensamos ser possível um fazer sem reflexão, um fazer por fazer, é preciso que este gesto tenha um sentido cultural e não seja apenas motor.

Conclusão ou apenas um convite à novas discussões

Nestas palavras finais vamos tentar sinalizar com algumas questões inerentes ao trabalho do professor na Escola. Todas as críticas dirigidas neste trabalho ao processo de formação de formação de professores de EF buscam na verdade pensar que este profissional ao se graduar, ou seja, terminar apenas umas das etapas de sua formação, precisa ter claro qual será o seu papel dentro da Escola. Este profissional deverá ter claro qual a sua responsabilidade política no trato com os conteúdos. Precisará ter claro que o esporte escolar não podem ser os mesmos sentidos, significados e códigos do esporte de rendimento. Por conta disso, é que traçamos estas críticas a este processo de formação de professores.

Por fim, gostaríamos de ressaltar a importância de não se conceber a Escola como simples receptáculo das políticas oficiais, ou como se os professores fossem apenas reprodutores. Diante disso, temos a certeza que nos espaços educativos, nos momentos da intervenção, a teoria ganha outros contornos, sendo confirmada algumas vezes, e outras não, gerando a imperiosa necessidade da:
"busca e criação de novas explicações teóricas e de novas soluções para o que acontece entre sujeitos empenhados em ensinar e aprender. Não há teoria que possa dar conta da totalidade desta processo, por sua complexidade. Explica alguma coisa, mas não explica outras, exatamente pelo que afirmamos acima- cada um é um, único, diferente de todos os demais, cada situação é uma, inédita, diferente de qualquer outra situação já vivida, teorizada, explicada" (ALVES; GARCIA, 2000, p.11).

É justamente aí que reside nossa esperança, pois sabemos que, a despeito da formação inicial, não podemos dizer todos os futuros professores serão apenas reprodutores dessa formação deficitária de forma vítimas. Concluindo este pequeno texto, chamamos a atenção também para o não-dito, mesmo que não tenhamos sido educados para isso. Diante disso, faz-se mister "reconhecer as dobras", bem como aprendermos a desdobrá-las, descobrindo o que está encoberto (ALVES ; GARCIA, 2000). Este não-dito nos esportes também estão presentes, aguardando serem desdobrados.

Notas

  1. Nefasta proposta defendida pelo sistema CONFEF/CREFs. Maiores informações ver TOJAL, J.B.A. G. A Carta Brasileira de Educação Física. IN: RBCE, v.23, n.1, 73-77, set/2001.
  2. No momento temos notado a volta desta investida através do projeto do governo Federal "Esporte na Escola". Apontamos ser importante a realização de estudos no sentido de compreendermos os caminhos que EFE pode assumir com este tremendo retrocesso que será pensar o EFE como lócus para a formação atletas.

Obs. Todos os autores são Bacharéis em EF pela EEFD/UFRJ. Marcelo Melo é mestrando em Educação pela UFF.

Referências bibliográficas

  •  Alves, Nilda; Garcia, Regina Leite. A invenção da Escola a cada dia. In: __________. (orgs.). A invenção da Escola a cada dia. Rio de Janeiro: DP&A; p.07-20, 2000.
  • Caldeira, Anna Maria Salgueiro. A formação de professores de Educação Física: quais saberes e quais habilidades?. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, Vol. 22, n.3, p. 87-103, Maio/01
  • Coletivo de  autores. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
  • Daólio, Jocimar. Fenômeno esportivo na formação profissional em Educação Física. In: Revista da Educação Física/UEM, Maringá, vol. 9, nº1, p. 111-115, 1998.
  • Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 15º Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
  • Kunz, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. 3º Ed. Ijuí, Editora Unijuí, 2000.
  • Melo, Marcelo Paula de. Disciplinas esportivas na formação profissional em Educação Física: questões para o lazer. In: III Seminário O lazer em Debate, Coletânea. Belo Horizonte, CELAR/EEF/UFMG, 2002. ( no prelo).