Integra

Quem me conhece sabe que não sou muito dada a cuidar de futebol. Há muitas, inúmeras pessoas e profissionais que dão conta disso. As razões do meu desamor são várias e não vem ao caso aqui falar sobre elas. Sendo assim, com uma boa mesóclise digo que ater-me-ei a um fato (que encerra em si mesmo outros tantos) ocorrido no primeiro e único jogo da seleção canarinho da Copa do Catar até aqui, que é o instantâneo capturado por um fotógrafo, cuja identidade não me foi revelada, e segue abaixo.



Óbvio que quem nomeou a foto conhece de perto a obra do francês Pierre Weil, um dos pais da Psicologia Transpessoal, que adotou o Brasil logo depois da II Guerra Mundial e por aqui ficou até 2008, quando veio a falecer. Foi aluno dos maiores psicólogos de seu tempo e talvez essa seja a razão do impacto produzido pelos seus estudos. É dele, juntamente com Roland Tampakow, o livro “O corpo fala”, cujo sub-título é “a linguagem silenciosa da comunicação não-verbal”.

Neste livro os autores discutem a comunicação não-verbal, ou seja, os gestos e posturas corporais que denunciam aquilo que não é explicitado pela fala. Gestos e atitudes são sinais, estilizados ou não, de sentimentos, percepções e sensações que envolvem as pessoas em relacionamentos com outras pessoas e o mundo. Em um planeta midiático como o que vivemos, onde equipamentos são capazes de capturar mínimos detalhes de nossa gestualidade, a teoria de Weil é por demais atual e oferece as condições para interpretar uma cena como essa.

Os meses que antecederam o mundial do Catar foram particularmente intensos para brasileiras e brasileiros, como aliás foram os últimos 4 anos, quando a discussão das questões sociais e políticas invadiram a intimidade dos pequenos grupos, deixando de ser tema dos doutos e letrados. Seria maravilhoso se isso tivesse acontecido com critério, com fundamento tão caro às ciências humanas e não com o fel que brota do fígado daqueles que fomentam o ódio.

E o esporte mais uma vez vem provar o quando anda de mãos dadas com essas questões maiores da sociedade. Sim, fenômeno de grande alcance social ganhou placa de patrimônio secular com a máxima “esporte e política não se misturam”, afirmação que serve aos interesses daqueles que durante décadas dominaram as instituições esportivas e consequentemente determinaram a vida de quem faz o esporte de fato acontecer, os atletas. Tratados como joguetes nas mãos daqueles que definiam times, seleções e escalações esses seres habilidosos, protagonistas daquilo que se acostumou chamar de espetáculo esportivo, aprenderam junto com as técnicas e táticas do esporte, ouvir e praticar as normas, sem necessariamente assimilar seu conteúdo latente.

Como 10 mandamentos da lei esportiva, cedo a cartilha deve ser rezada por uma juventude habituada a obedecer às regras, com ou sem fair play, e a crer que isso levará aos lugares sagrados e consagrados do esporte mundial. Fossem mandamentos como amar ao próximo, não matarás, não roubarás seria até compreensível, dado a força da cultura judaico cristã no nosso meio. Mas, não. Entre os 10 mandamentos esportivos estão obedecerás às normas sem questionar, calarás sempre que o controverso favorecer ao outro, buscarás resguardar os próprios interesses ainda que isso desfavoreça a maioria, não olharás para o próximo que não estiver em campo. Sim, esporte é uma espécie que envolve uma espécie de fé.

Por isso, aqueles que questionam e quebram essas normas ganham espaço. Ah, como é bom fugir da mérdia. E se o subversivo esportivo ainda for habilidoso há uma soma de boas atitudes com bons resultados o que torna qualquer tipo de retaliação uma tarefa difícil para algozes prometeicos.

Richarlison é um desses personagens raros em um mundo dominado pelos detentores do poder da força da grana que ergue e destrói coisas belas. Não gosto de solo de violinos para acompanhar a descrição de uma infância sofrida, que normalmente ganha audiência sobre histórias de vida dramáticas. Prefiro ressaltar os feitos já na fase seguinte quando superada essas dificuldades um cidadão/atleta decide optar pelo caminho da defesa das grandes causas ciente da força de sua imagem. E Richarlison é um desses. Um bravo. Um gigante. Um ídolo de causas que transcendem as linhas de um gramado onde rola da bola do esporte bretão. Sem negar suas origens, e sem precisar usar do seu passado de precariedade para ganhar o reconhecimento da superação de dificuldades, usa a força da sua imagem para transformar o mundo. Afirma a ciência com ações que vão da defesa da vacina ao apoio material à pesquisa no combate à pandemia. Coisa que muitos letrados poderiam ter feito, mas preferiram o silêncio. Dono de um patrimônio digno dos grandes craques da bola doou oxigênio para a cidade de Manaus quando inúmeras pessoas morriam asfixiadas pela falta desse recurso no auge da pandemia. Quanta gente mais rica que ele poderia ter feito o mesmo? E a virtude maior: se expressa de forma clara, objetiva e contundente quando tem diante de si microfones de todo o mundo para falar não apenas sobre o jogo que aconteceu ou acontecerá e não se cala diante dos temas que não necessariamente estão vinculados à competição.

Isso sim é um craque.

E não bastasse isso joga muito, mas muito mesmo, sem precisar dizer que faz isso ou aquilo. Simplesmente entra em campo, assume sua posição e usa sua habilidade, profissionalmente.

Ah, Richarlison. Que prazer gritar gol quando a bola alcança a rede pelos seus pés. Como nós precisávamos disso depois de tanta falta de oxigênio sentida nesses últimos anos.

E se uma boa equipe esportiva é a relação entre os valores do grupo e não apenas a soma de craques, é tempo de se entender que líder não se decreta. Se impõe. E não apenas pela vontade, mas por atitude. E a foto que ilustra esse texto diz isso. Os corpos que nela aparecem, falam.

Espero pelos próximos jogos para soltar a voz novamente. Que Richarlison continue a nos encantar pelo que faz com os pés, com a cabeça e com sua voz.

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