Resumo

Este relatório de tese de doutorado versa sobre a relação entre coach (treinador) e pupilo (atleta) de fisiculturismo. De modo mais específico, busco compreender como se constitui, e se reforça, esta relação de autoridade/obediência entre coach e pupilo de fisiculturismo em processos de construção corporal socialmente demarcados pela radicalidade das práticas de hipertrofia muscular. Toda movimentação analítica tem como marco teórico conceitual central as formulações sobre as políticas da própria vida desenvolvidas por Nikolas Rose (2013), em especial os conceitos de expertise e enhancement corporal; o conceito de bioascese tratado aqui sob a ótica de Francisco Ortega (2005; 2008) e Paula Sibília (2008); e o conceito de poder pastoral em Michel Foucault (2003a, 2003b). A opção metodológica foi a etnografia em combinação com entrevistas semiestruturadas e análise documental. A parte empírica do trabalho está sustentada em quatro fontes, sendo três delas provenientes da produção de dados primários próprios da pesquisa de campo no doutorado e outra oriunda de dados secundários produzidos em pesquisa de campo desenvolvida no mestrado. A primeira e principal fonte para a produção de dados primários foi a etnografia realista, tal como proposta por Michael Atkinson (2015). Por meio dessa vertente etnográfica, registrei em diários de campo as minhas rotinas de preparação para competição de fisiculturismo (précontest), incluindo as rotinas de finalização na semana pré-campeonato e os bastidores do backstage; bem como aquelas fora da fase de competição (offseason), enfatizando a relação de autoridade/obediência com o coach contratado. A segunda fonte de produção de dados primários foi a realização de entrevistas com outros dois coaches de destaque no cenário sul brasileiro, nas quais foram abordadas questões que remetiam à temática central do estudo. A terceira fonte de produção de dados primários foi a análise documental de materiais digitais selecionados nas redes sociais dos coaches de fisiculturismo, sobretudo postagens no Instagram e Facebook, que se relacionavam à temática central do estudo. A quarta fonte utilizada foram as entrevistas realizadas com os pupilos de fisiculturismo que participaram do estudo que desenvolvi em minha dissertação de mestrado (MACHADO, 2015), configurando-se no que se convencionou chamar na literatura sobre pesquisa qualitativa de second review (FLICK, 2009). A partir da análise dessa materialidade empírica, pude identificar que a entrega do pupilo ao plano traçado pelo coach decorre, dentre diversos fatores, da demonstração do grau de expertise do coach em dois pontos: nível de conhecimento acadêmico (formação relacionada à área da saúde e/ou biomédica); e, fundamentalmente, desempenho no processo de construção corporal do fisiculturista (shapes de atletas e currículo de títulos obtidos). Contudo, por mais renomado que seja o coach, a relação de autoridade sobre o pupilo não se dá por meio de uma obediência automática, é um processo que se reforça em meio às dúvidas, resistências e crises existenciais do pupilo frente às radicalidades do processo de construção corporal do fisiculturista. Portanto, é uma relação que vai se estabelecendo por meio de graus de adesão, nomeados nessa tese de modulações, que variam da “pouca entrega” à “total entrega” ao plano do coach em conformidade com o nível de conhecimento/formação do pupilo sobre o assunto. De modo mais específico, a obediência do pupilo à autoridade do coach se reforça quando o primeiro vê estampado em seu próprio corpo os resultados do plano ao qual ele se submeteu voluntariamente, alimentando aquilo que identifiquei como sendo um “compromisso moral” com o coach decorrente dessa relação de obediência. Um compromisso que acaba se tornando quase indissolúvel quando o pupilo passa a se preocupar em não “decepcionar o coach”, o que corresponderia à último das quatro modulações construídas na análise: a “entrega total”. Em conclusão, pude compreender que a relação de autoridade/obediência entre coachs e pupilos se dá por meio de diferentes níveis de entrega não só em relação à adesão ao plano de treinamento a ser seguido, mas também em relação à capacidade do coach em orientar os pupilos frente às mudanças no volume muscular. Os coaches de fisiculturismo seriam, então, os responsáveis pelo elo entre o que é afirmado em estudos realizados em laboratórios de fisiologia do exercício e a materialização da construção corporal dentro de uma sala de musculação.

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