Semanário da Pandemia 2: Não, Um Aplicativo Não Pode Substituir Professores
Por Rafael Moreno Castellani (Autor), João Batista Freire (Autor).
Resumo
Integra
Estar junto faz bem. Encostar, mais ainda. Nada substitui a presença, o olhar, o toque, a relação próxima. É o que nos faz humanos. Adoecemos na ausência do contato. Até animais como cachorros e macacos guardam o hábito de se tocar, coçando-se, ou de tocar seus semelhantes, e isso aumenta-lhes a saúde. Poucas coisas favorecem mais a saúde dos bebês que o contato corporal com a mãe e outras pessoas. Os primeiros ensinamentos se dão através da relação direta com os outros, o corpo a corpo. Vai-se à escola não apenas para receber lições de português, matemática ou história; vai-se à escola para, pela primeira vez, sair de casa de verdade. Não por outros motivos a Educação Infantil é uma escola que guarda semelhanças com a casa, a família, porque a criança ainda não está madura para empreender a primeira viagem fora de casa. A escola, a partir do Ensino Fundamental, é aquela viagem de uma margem a outra do rio, ou de um oceano; de um lado a casa, de outro, o mundo. Lá na outra margem, no mundo, há pessoas de todos os tipos, hábitos diversos, objetos, acontecimentos, nada familiares. E lá há uma pessoa esperando pela criança, professor ou professora, que a conduzirá por esse passeio pelo mundo fora da casa dela, esse passeio com outras pessoas. Na escola ela conhecerá outras mãos, outros olhares, outros risos e outros choros. E nada, mas nada mesmo, substituirá o contato direto com essa professora e com essas outras pessoas, assim como nada substitui o contato com a mãe, o pai e os outros da família. Esse contato direto, sem intermediários, sem telas ou microfones na frente. Porque, repetimos, ir à escola tem muito mais do que aprender as matérias declaradas no currículo escolar. O que, de fato, aprende-se, é o que não está declarado. O que, de fato, aprende-se, é a se desprender da família, mesmo que seja sem deixar de amá-la. A escola é a primeira estação de uma estrada chamada mundo, que poderá ser de muitos tamanhos, dependendo do quanto se aventurar cada pessoa.
Estamos em pandemia, e com a necessidade do isolamento social para desacelerar a curva de contágio, o tema do ensino remoto ou da educação à distância (EaD) ganha força. E os recursos didáticos que ganham destaque não são mais os cadernos e livros, mas os aplicativos, ambientes virtuais, em telas de smartphones e computadores. Está bem... a situação é emergencial e, portanto, justifica-se buscar soluções para escolas fechadas e alunos em quarentena. Mas a pandemia não durará para sempre, no máximo, até que se encontre uma vacina para neutralizar a ação do Covid 19; ou até antes, se aprendermos a neutralizar o contágio com práticas corretas de distanciamento.
Quando estamos na escola, todos os nossos sentidos são mobilizados pelas pessoas e coisas que nos rodeiam; o diferente predomina, é a novidade. Exploramos o mundo com todos os sentidos. Para aprender, expomo-nos ao mundo, recebendo as impressões que nos chegam pelos olhos, ouvidos, nariz, boca, por toda a pele. Tudo será perscrutado pelos sentidos. Não há comparação possível entre uma relação de corpo inteiro com o mundo todo e com um aplicativo acionado em uma tela de computador. Especialmente quando se trata de crianças. Não pensem que uma aula sobre qualquer matéria, por mais insípida que seja, deixará de ser tratada, primeiro pelos sentidos, depois pela percepção, em seguida pela imaginação. Qualquer que seja a disciplina, de forma alguma somente o pensamento lidará com ela. Pensamos com todos os sentidos, ouvimos com os sentidos, tanto quanto com o pensamento. O contato é rico, pele com pele, olho com olho, ouvido com ouvido. Entre nós e o mundo há um revestimento que corresponde a uma fronteira entre nós e o mundo. Sim, na aula à distância aquilo que nos transmite a tela do aparelho também será sentida por todos os sentidos, mas, o que é aquilo? Que pessoa é aquela? Poderão os feixes luminosos do smartphone substituir a humanidade do contato direto?
No cerne desta questão, nos deparamos, dias atrás, com uma notícia para lá de lamentável e desanimadora: Uma empresa americana, Magic Fitness, chega ao Brasil oferecendo duas mil vagas para profissionais de Educação Física que trabalham no mercado das academias. Aproveitando-se da atual conjuntura, e favorecida pelo fato de grande parte dos municípios do Brasil ainda manter a decisão acertada de proibirem a abertura das academias, a Magic Fitness acelera o processo de “Uberização da educação”, ou “Uberização do trabalho”, como afirma o sociólogo Ricardo Antunes que, aliás, antes mesmo do início da pandemia, já afirmava que estávamos vivendo uma era de escravidão digital. Neste contexto, a Magic Fitness, em parceria com a Gympass, oferece uma plataforma de aulas personalizadas à distância. Não bastassem as questões da precarização do trabalho (direitos trabalhistas e baixa remuneração), não podemos deixar de destacar o quanto perderemos (professores e alunos ou instrutores e clientes, como preferirem) no âmbito das relações humanas, como já apresentado no início deste texto.
Uma das virtudes reconhecidas das academias é o contato entre as pessoas. Trata-se de um ambiente de convivência. A proximidade entre os frequentadores de academias não é menos importante que os exercícios nos modernos aparelhos de exercitação. A “uberização” dos serviços de preparação física sugere substituir academias por telas de computadores. Mais um passo no empobrecimento de nossa já degradada relação humana.