Semanário da Pandemia 4: O Que Fazer Quando Não Estamos Preparados Para (re)agir?
Por Rafael Moreno Castellani (Autor), João Batista Freire (Autor).
Integra
Observando os aspectos de uma árvore, um extraterrestre muito inteligente deduziria que ela não se locomove, não foi feita para isso. E mais, que não tem outros movimentos próprios aos humanos, como os de manipulação ou os de manutenção da postura, posto que não tem braços, pernas ou qualquer outro segmento móvel. Por outras palavras, o ET inteligente concluiria que, se ela está viva, mesmo sem ter movimentos autônomos, é porque consegue o provimento necessário à vida sem sair do lugar. Onde nasceu, se não for transplantada, se alimentará, se abrigará, se reproduzirá e morrerá.
O mesmo ET, olhando um exemplar da espécie humana, e observando o quanto ele se mexe, vendo braços e pernas, cabeça e tronco, diria que se trata de uma criatura que tem que se deslocar e fazer outros movimentos para satisfazer suas necessidades básicas. A criatura humana, diria o ET, para se abrigar, se alimentar e se reproduzir, precisa sair do lugar, manipular e se equilibrar. Ou isso ou a morte.
Somos assim e não há qualquer hipótese de mudarmos nas próximas centenas de milhares de anos. Se guardamos, em nosso arsenal genético, mutações que tornem possível a inatividade, elas não se manifestarão em tempo menor que esse. E, como qualquer criatura, não exercer as funções para as quais fomos criados resultará em atrofia, doença, sofrimento e morte precoce. Os sinais estão por toda parte: obesidade, diabetes, hipertensão, infartos, doenças respiratórias, câncer... do ponto de vista emocional, o estresse, ansiedade, medo, angústia etc. Se não precisamos mobilizar nossas funções motoras no trabalho, podemos fazê-lo no jogo. Se a Educação Física percebesse isso, teria um vasto arsenal de argumentos para justificar-se e para investir.
Somos assim, essa é a nossa natureza. Muito do que chamamos de saúde depende do adequado funcionamento de nosso aparato orgânico. A energia que consumimos é investida, parte no trabalho e em outras atividades de manutenção da vida, parte no jogo, isto é, nas atividades livres, desprovidas de interesse, de compromisso, de recompensas externas. Portanto, uma vez que a Educação Física acolha o jogo e a manutenção e desenvolvimento das funções do organismo humano como conteúdos preferenciais, o conjunto de movimentos, ou de coordenações motoras, isto é, a motricidade, constitui seu principal aspecto identificador.
É quando somos surpreendidos por uma pandemia. Um vírus avassalador, com enorme poder de propagação nas populações humanas, obriga-nos a nos isolar, a ficar distantes uns dos outros, sob risco de nos contaminarmos e, até, de morrer. O cotidiano de movimentações fora de nossa casa, ou é interrompido radicalmente, ou parcialmente. Nos vemos, subitamente, obrigados a parar. Aqueles que trabalham em serviços essenciais ou que precisam sair de casa para ganhar o suficiente para sobreviver, mantêm parcialmente sua atividade corporal. Porém, tanto esses, quanto os que se recolhem à quarentena, não sabem o que fazer para manter as atividades de tempo livre, o lazer, o jogo. Não possuem conhecimento e, consequentemente, independência, para lidar sozinhos com suas necessidades de atividade corporal. Começam a engordar, a ver a ansiedade aumentar, alguns tornam-se irritadiços, outros caem em depressão. E o risco de aumento de doenças e sofrimento aumenta.
A sociedade, envolvida na pandemia, consulta os governos, os serviços de saúde, e, alguns, a Educação Física. Que resposta tem a Educação Física para pessoas tolhidas em seus movimentos habituais, ao menos parcialmente, no trabalho e no tempo livre?
Pouco nos consultamos. Raras vezes nos voltamos para nossa própria natureza. Se nós, da Educação Física, queremos entender o ser humano, observá-lo a partir de sua natureza não seria um procedimento razoável? Talvez, parte da angústia que acomete as pessoas nesta pandemia derive do fato de ser o homem, por natureza, móvel. A motricidade, esse complexo de coordenações motoras, está no ser humano para realizar suas intenções, disse o Prof. Manuel Sérgio. Não mover-se é causa de sofrimento, de doença, de morte. Há, em nossa natureza, a mensagem de que devemos nos manter em movimento, mesmo que não tenhamos consciência disso. Mesmo quando estamos confinados, isolados em nossas casas, esse estar parados é angustiante e gerador de sofrimento, embora não percebamos isso com relação às crianças que ficam anos e anos de escolaridade confinadas em suas carteiras escolares, impedidas de exercer aquilo que sua natureza solicita.
Entendemos que já há na Educação Física repertório e arcabouço teórico vastos e diversos, que nos permitem tomar o jogo como uma saída privilegiada à inatividade corporal imposta pela quarentena. E o jogo joga-se sozinho, em duplas, com toda a família... joga-se na casa, no apartamento, na sala, quarto, garagem ou quintal; joga-se um jogo antigo ou cria-se outro. Por que não, inclusive, dar às atividades físicas habituais do lar (varrer a casa, lavar a louça, subir ou descer uma escada, dentre outras) significado distinto, atribuindo a elas um caráter lúdico, típico dos jogos?
A resposta à questão título deste artigo não é fácil de ser formulada. Isso se deve, em parte, ao fato de a Educação Física também ter sido pega de surpresa, como de resto, toda a sociedade. Agimos como esperássemos nunca ser atacados por agentes nocivos. Inúmeras vezes a sociedade foi atacada por guerras, epidemias ou desastres naturais, no entanto, age como se isso nunca tivesse acontecido. A Educação Física, salvo exceções, não sabe o que fazer diante desta Pandemia. Nossa formação é para agir em tempos, digamos, normais. Como se o mundo navegasse em mar calmo e céu de brigadeiro eternamente.
Mover-se não é condição de vida para todas as criaturas, mas para o ser humano é. A sociedade como um todo – e a Educação Física, particularmente - deveria ter consciência disso. Não deveríamos esperar por uma pandemia para tomar providências quanto à educação humana, no que diz respeito à motricidade. A angústia por termos que ficar parados nas quarentenas é gritante. Portanto, ao ir às escolas, às academias, as pessoas deveriam, entre outras coisas, aprender o que fazer quando necessitarem se exercitar sozinhas. Exercitar-se deveria ser um hábito como o de escovar os dentes, considerando a coerência que deveriam ter nossos hábitos de vida com nossa estrutura corporal. Ser contra a natureza não gera somente pandemias, gera também o desconforto de nos sentirmos mal com nós mesmos, por não termos sido educados para lidar com a criatura motora que somos.