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Palavras iniciais

Em 25 de abril de 1873 foi enviado aos membros da Comissão designada para conduzir o processo de consulta acerca da proposta apresentada à Inspectoria da Instrucção Publica na Côrte pelo Cap. Ataliba Manoel Fernandes, mestre de gymnastica, o oficio que encaminhava sua exposição de motivos e projecto explicativo complementar para a realização "nas Escólas publicas de Instrucção primaria do sexo masculino, o ensino racional, methodico e progressivo da gymnastica elementar, [visando] o desenvolvimento physico dos alumnos, [como] aconselhado pelos preceitos hygienicos e regras da boa educação e Civilidade"(f. 1).2

Essa Comissão, por sua vez, encaminhou em 30 de abril aos Diretores das escolas públicas da Corte cópia da solicitação, pedindo o seu exame e marcando uma reunião para deliberações. Os impossibilitados de comparecer a essa reunião deveriam se manifestar por escrito.

A reunião foi realizada em 13 de maio e teve a presença de quinze diretores mais dois membros da Comissão. Foram também recebidos seis manifestações por escrito. Em 9 de junho a ata foi aprovada e no dia 15 encaminhado ao Inspector Geral da Instrucção Publica o parecer da Comissão, juntamente com demais documentos recebidos.

Desse processo interessa-nos destacar e problematizar algumas das representações construídas e circulantes.

A temática e as representações circulantes

Os argumentos elencados pelo Cap. Ataliba para a criação e regularização do ensino da ginástica são: ela fora "[desde a Grécia Antiga] considerada como parte da hygiene" porque influenciadora "notável" da "economia animal"; nas nações adiantadas da Europa ocupava lugar importante como "parte integrante da educação da mocidade" (f. 3) e, por fim, havia sido seu ensino regulamentado na instrução pública da Corte. Esses argumentos se repetem vez por outra nas vozes dos diretores. Já o parecer final da Comissão busca dar-lhe sustentação, reconhecendo-a "como meio de satisfazer a uma necessidade palpitante da educação physica das crianças" (f. 37).

No que tange ao "método" e aos conteúdos de ensino a discussão se desenrola de forma diversa. O proponente informa que o ensino da ginástica se daria através de exercícios de corpo livre e de exercícios dependentes do aparelho e acessórios. Em ambos, seriam aplicáveis exercícios de flexibilidade, equilíbrios, lutas, forças, saltos e, ainda, exercícios pírricos, de natação, de volteios e militares. Para tanto, precisaria de um aparelho específico, um pórtico, no qual se poderia adaptar barras fixa, argolas, trapézio, escada de cordas, paus e cabos volantes, barras paralelas, escadas de madeiras, graduador de saltos, além de pesos, cordas, cabos tamboretes e um último acessório que não foi possível identificar. O Cap. Ataliba se oferecia para confeccionar e restaurar apparelhos exitentes em alguns colégios particulares.

Os diretores, por sua vez, não gostavam da idéia da construção de pórticos "por duas razões: 1ª porque só adoptamos os 1º e 2º gráos de gymnastica nas escolas primarias, isto é, exercicios preliminares, movimentos parciaes, e de flexões (em geral), marchar, corridas, saltos (simples) exercicios pyrrichos, equilibrios (em terra firme), exercicios com marombas, e com os mils (como parte complementar ás leis de equilibrio). Entendemos que do portico sahem os volants [...]. 2º porque nossas escolas ao menos, por enquanto, não o comportão, mesmo os de 3ª classe, que regula de 3½ a 4 metros de altura; e sendo necessario que taes exercicios sejão especialmente feitos ao ar livre e sobre o chão de areia ou de terra coberta de páo de serra, os quintaes das escolas da cidade, quando os há, são por demais pequenos para as necessidades domesticas do professor" (f. 10b).

Aliás, os diretores davam preferência à introdução da ginástica elementar, sugerindo, inclusive, outras vias que não o systhema do Cap. Ataliba. Duas propostas de "método" são apontadas por eles: 1. que, de fato, se adotasse o Novo guia para o ensino da ginástica nas escolas públicas da Prússia que havia sido traduzido e distribuído pelo Governo às escolas e, 2. que se adotasse o sistema do Dr. Barnetts que, segundo informações, acabara de ser adotado em muitas Escolas dos Estados Unidos.

A indicação da Comissão era que se adotasse o sistema do Dr. Barnetts para o ensino da ginástica elementar, enquanto o Governo tomasse providências para a resolução do problema de espaço e construção de pórticos nas escolas. Para a Comissão uma outra preocupação era central para a adoção e realização do ensino da ginástica nas escolas: era que ela fosse dividida "em gráos, de sorte que só se ensine nas escolas a parte propriamente hygienica, deixando tudo o quanto é applicavel a profissões especiaes, para um ensino technico também especial, como o que soe dar nas escolas de Marinha, e de applicação do exercito"(f. 40). Nesse sentido, a Comissão estava convicta sobre a desmilitarizada a ginástica para pudesse "satisfazer ao pensamento fundamental de uma educação completa" (f. 41).

Aliás, a preocupação em discutir tempos, espaço e materialidade dessa prática na escola também se faz presente. No que tange ao tempo, a discussão é encaminhada tanto no sentido de os professores já terem coisas mais importantes para fazer do que se dedicar ao ensino da ginástica - isto é, discriminando curricularmente a ginástica -, como no sentido de fundamentar um melhor horário para o seu enquadramento: no "meio das aulas", como um recreio? Após as mesmas?

A Comissão propõe uma alteração de grande envergadura no funcionamento das escolas a partir dessa questão. Reconhecendo como vexatória a organização do tempo escolar em dois turnos, sugere que todas as escolas da Corte passem a funcionar "em uma só sessão; divida-se o trabalho diário em duas secções, separadas por um intervallo de uma hora, e faça-se nessa hora funccionar a aula de Gymnastica" (f. 39). O argumento é que além de sanar o vexame, poderia ela servir como diversão e recreio, concorrendo "para amenisar os outros exercicios da vida escolar" (f. 40).

O debate sobre o espaço aparece intimamente ligado a questão da materialidade das práticas escolares no processo em discussão. Por um lado, os diretores se queixam das inadequações higiênicas das casas que dirigem e, como já dito, não vislumbram a construção de pórticos. Por outro, a exeqüibilidade do ensino da ginástica parece se concretizar nos exercícios a mão livre ou com pequenos aparelhos, como as borrachas3 do sistema Barnetts.

A materialidade dos acessórios é importante também na medida em que desemboca na questão da habilidade e da habilitação para o ensino da ginástica. Já se colocava toda uma discussão sobre a competência para esse ensino e sua remuneração.

O Cap. Ataliba é taxativo caracterizando que ao mestre de ginástica cabem atribuições que dependem de "processo, methodo, linguagem concisa e clara, dedicação ao trabalho reunindo certo gráo de energia e tenacidade" (f. 4). Alguns diretores entendem que a ginástica elementar pode ser dada por qualquer pessoa, cabendo aos entendidos "na arte" seu ensino em níveis mais elevados. Essas representações tem como pano de fundo a questão da especialização e formação profissional. A Comissão busca equacionar o problema da seguinte forma: as primeiras dificuldades seriam removidas com a adoção do sistema Barnetts. Caberia, então, ao governo, investir na formação de professores criando aulas de ginástica a serem ministradas por "professor idôneo". Isso obrigaria "os ditos adjuntos e adjuntas a aprender o que depois deverão ensinar"(f. 44). Além disso, recomendam que os futuros candidatos ao professorado público prestassem exame de ginástica.

Por fim, neste texto, destacamos que a proposta do Cap Ataliba era para escolas do sexo masculino. Na reunião com os diretores, ao discutir-se quem teria direito a que tipo de ginástica, sugere-se uma primeira graduação: o sistema de Barnetts poderia ser adotado "para exercícios diários nas escolas de ambos os sexos" (f. 18b), ao passo que os propostos pelo Cap. Ataliba formariam uma ‘segunda parte da matéria’ consagrada, uma vez por semana, e dirigida pelo próprio Capitão, aos "meninos que já souberem a parte elementar" e que seriam os únicos a freqüentar tais aulas. Os diretores rechaçam essa divisão opinando que "todos os alumnos devem ir ás lições" (f. 18b). Mas a tese da prática da ginástica por meninas é sustentada mesmo no parecer da Comissão. O argumento: faltam às mulheres as devidas condições de robustez para ser mãe.

Apontamentos de estudo

A localização desse documento traz novas informações para discutirmos antigas questões, ao que parece, tão antigas quanto o próprio documento. Questões especificamente escolares, tais como tempo, espaço, materialidade das práticas escolares, "métodos’ e conteúdos de ensino, educação generificada. A hipótese de trabalho que construímos é que a educação física, como parte integrante da tríade spenceriana, foi pilar importante na própria conformação da forma escolar e do campo pedagógico. A ginástica, parte integrante dessa educação física, não como conteúdo, mas como forma de ensino (o que aqui não equivale a idéia de "método" para ensino de exercícios), era apenas uma de suas manifestações, perfilada a outros preceitos higienicos como, por exemplo, a organização, na totalidade, dos tempos e espaços escolares.

Outro ponto importante, extensamente debatido, diz respeito a construção de uma especialidade e a formação profissional. Neste momento, visualizamos que o que ganha força é a formação do professor propriamente dita. Aquele que atuaria no ensino das primeiras letras e que deveria ser formado e capacitado para ministrar - também - o ensino da ginástica. O parecer da Comissão extrapola sua temática original sugerindo que, para aquela uma hora de diversão e recreio, além da disciplina4 de ginástica devam ser incorporados o ensino da música e do desenho linear. A questão nos anos 70 dos oitocentos ainda está colocada nos termos que os professores "normalistas" deveriam possuir uma melhor formação. Entretanto, ela construia condições de possibilidade para sua recolocação: num futuro próximo seria possível perguntar, afinal, quem são os "professores idoneos"? Aqueles professores que deveriam formar os novos professores. Além do que, superada a ginástica elementar, quem continuaria cuidando "da arte"?

Por fim, a questão da legitimação está colocada desde o início do processo pelo proponente. Os argumentos já são nossos conhecidos: advinham em boa parte dos ganhos na "economia animal". Mas chamamos atenção para o fato de uma preocupação com a educação integral já se fazer presente, tal qual era possível ser colocada naquela mentalidade. De certo, o projeto da educação integral guarda intimidade com aquilo que convencionamos chamar de educação higienista. Essa intimidade merece ser melhor conhecida. Isso porque, ao que parece, uma estranha permanência perdura até nossos dias... Todos "sabemos" intuitiva, mas talvez hoje de forma nem tão incontestável, que a educação física é importante e merece ter seu lugar na escola. Mas, como alertara um diretor nos idos 1873, falta aos seus proponentes "talento e illustração sufficientes para elucidar questões como a de que se tracta em toda a sua plenitude, desenvolvendo a these que d’ella resulta em toda a sua amplidão" (f. 7b)...

Obs.
As autoras, Profa Fernanda Simone Lopes de Paiva é professora do DG/CEFD/UFES e doutoranda (linha de pesquisa história social e educação) na FaE/UFMG, e a Profa. Patricia Regina Lopes de Paiva é licenciada em Educação Física pela Universidade Gama Filho e assistente da pesquisa.

Notas:

  1. Esse artigo deriva de um estudo de maior fôlego, em andamento - a tese de doutorado de uma das autoras.
  2. Os trechos citados em nosso texto pertencem a diferente documentos ajuntados, tais como ofícios, pareceres, atas em processo que pode ser localizado no Arquivo Geral da Cidade do Rio de janeiro, códice 11.4.14. Fazemos referência as folhas posteriormente numeradas no processo. Quando se tratar de um verso de folha, para efeito desse texto, já que as mesmas não se encontram numerados no manuscrito, referenciaremos, por exemplo, (f. 1b).
  3. Eram quatro tiras de borracha que se diferenciavam no grau de dificuldade de seu tensionamento. Nas extremidades tinham peças de madeira para evitar acidentes no manuseio.
  4. O termo é corrente no processo.