Sobre os limites da representação. E sobre suas potencialidades.
Integra
Rebeca Andrade acaba de ganhar a medalha de ouro na competição individual de
ginástica artística de solo dos Jogos Olímpicos de Paris/2024. Acaba de se
tornar a maior medalhista olímpica do Brasil. Não a maior mulher medalhista.
A maior medalhista mesmo, considerando homens e mulheres.
Sem diminuir em nada, nadinha mesmo, as importantes conquistas de Torben
Grael e Robert Scheidt, notáveis que seguirão ocupando com mérito um lugar
de honra em nosso panteão nacional, acho no mínimo alentador e
representativo que tenha os superado uma mulher negra que veio de uma
experiência periférica, uma mulher que tem como sobrenome Andrade. Eu que
sou homem branco, mas que também sou Andrade, e vim de uma experiência
suburbana, não tenho como não confessar o quanto me sinto nela representado.
Seguramente não sou o único.
Mas a representação tem limites. Essa conquista não tem a capacidade de
interromper, de imediato, a violência policial que todo dia mata centenas
(milhares?) de jovens negro(a)s nas periferias das grandes cidades. Não tem
a capacidade de estancar de pronto os feminicídios que lamentavelmente
seguem a ocorrer por todo o Brasil. Não tem a capacidade de extinguir de vez
as desigualdades de oportunidades que fazem com que a trajetória dos pobres
seja sempre muito mais árdua.
Representação não faz milagres, mas tem muitas potencialidades, até porque a
representação não surge do nada, tendo uma materialidade que a antecede e
nela se desdobra. O Brasil é um país cruel. Uma máquina de triturar gente
que procura se disfarçar por baixo de um equivocado discurso de
autorrepresentação não violenta e gentil. Logicamente, há muita gente que é
assim mesmo, mas a experiência histórica desse país é marcada pela
violência, agressividade e negativa de acesso generalizado aos direitos
sociais básicos, posturas que se explicitaram com a polarização política
recente.
Representação tem limites, mas pensemos bem. Vejamos o pódio da competição
na qual Rebeca se sagrou campeã. Antes ginástica era esporte de brancas
europeias. Hoje tivemos um pódio com três mulheres negras. Não é magnífico
ver a França, que quase elegeu a extrema direita, se derramar de amores pelo
monumental tricampeão olímpico Teddy Rinner, um negro oriundo da caribenha
Guadalupe? Não é espetacular ver várias mulheres brasileiras negras
esfregando suas conquistas na cara de fascistas que vivem vociferando o ódio
pelas redes sociais?
Sim, representação tem limites, mas não é coisa pouca. Lembremos, não
vivemos sem ela. A própria ideia de nação só existe porque são mobilizados
signos e sinais. Não surpreende que esses artefatos sejam disputados
politicamente. No dia de hoje, ao assistir ao pódio de Rebeca, voltei a ter
orgulho de nossa bandeira e hino nacional, coisa que abandonei pelo
sequestro promovido pelos conservadores nos últimos anos. É hora mesmo de os
retomarmos, como fizeram recentemente muitos que compareceram à 28° Parada
do Orgulho LGBT+ de São Paulo, atendendo a um pedido da Pablo Vitar.
A verdade é que celebro (com muito choro) a conquista de Rebeca não pelo
país, mas sim a despeito do país. Sou oriundo do subúrbio carioca. Sei bem
das dificuldades encaradas por quem de lá é oriundo. As estradas são sempre
mais longas, os obstáculos mais árduos. Então também por isso comemoro a
vitória da ginasta. Mas isso não me faz reificar os indivíduos e fechar os
olhos para a importância que podem e devem ter as ações governamentais.
Comecei a dar aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de
1999. De lá para cá, muita coisa mudou. Está longe de ser o que desejamos,
mas é inegável que temos maior número de negras e negros como docentes e
discentes. Há também mais gente que vem dos subúrbios e favelas. Da mesma
forma, maior número de mulheres ocupando cargos de poder. Há em curso
políticas contra os preconceitos contra homossexuais e transexuais. Isso
tudo tem tido grande impacto. Todos nós estamos sendo conclamados a
aprender, inclusive ao escaramuçar dentro de nós os problemas que
denunciamos. O momento é multiplamente tenso, e de uma riqueza imensurável.
Tudo está em debate, é fundamental que mantenhamos abertas essas linhas de
discussão.
Essas mudanças ocorreram graças às reivindicações desses grupos sociais. Mas
também se devem a uma série de decisões acertadas do poder público, algo que
se observa em vários âmbitos. A presença de maior número de negras e negros
em esportes antes restritos se deve à ação desses coletivos sociais, mas
também a iniciativas governamentais e não-governamentais que buscam criar
alternativas para consubstanciar a possibilidade de maior participação. E
tudo isso pressiona o mercado, que teve que reagir ao novo conjunto de
reivindicações. Esporte não é só alta performance, é direito social,
lembremos.
Mesmo que tais desdobramentos estejam longe de ser plenamente adequados
(todo atleta sabe o quanto é difícil se manter na profissão), como resultado
surge o óbvio: quando há possibilidades para maior participação, mulheres,
negros e jovens das camadas populares podem brilhar, e quando brilham - no
esporte, na universidade e em todas esferas - se tornam inspiração para que
o processo de mudança siga em curso. E essas mudanças em curso fazem bem
para todos, também para homens, brancos, gente de todas as faixas etárias.
Então que fique claro: é representação. E representação tem limites. Mas
representação é muito. Até porque também tem sua materialidade. E por tudo
isso as conquistas de Rebeca e das atletas brasileiras devem ser muito
celebradas, mesmo porque o quadro está brabo. A extrema direita tenta a todo
custo avançar. No momento em que escrevo, há uma série de crises na
Inglaterra fomentada pelo ódio. É mais um exemplo de muitos conflitos que
estão a ocorrer pelo mundo, e obviamente também no Brasil.
"É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte", em plena
ditadura registraram Gil e Caetano na canção maravilhosamente eternizada por
Gal Costa, a mesma na qual bradam: "Atenção, tudo é perigoso, tudo é divino
maravilhoso".
Maravilhoso é ver a vitória de Rebeca e sentir-me extasiado de esperança.
"Não passarão". Mais do que nunca é hora de luta. Cada um na sua seara, cada
um na sua esfera, todos de mãos dadas. Sempre celebrando as coisas belas da
vida, como consagra a frase equivocamente atribuída a Che Guevara: "É
preciso endurecer, mas sem jamais perder a ternura".
Não conheço e não sei as opções políticas e de vida de Rebeca, as duas
Beatriz (do judô e do boxe), Larissa, Rafaela, Rayssa, Flávia, Jade, Julia,
Lorrane, Ketleyn, bem como dos meninos do judô e da marcha atlética. Nem
acho que são seres superiores imaculados. Apenas agradeço pelos símbolos.
Pela representação. Pela materialidade. Pela emoção. Pela esperança. E isso
é muito.
Elas explicitam o que é no fundo a grande beleza dos Jogos Olímpicos: a
imensa potencialidade de representação. E explicitação da materialidade da
representação. Não, Jogos Olímpicos não resolvem os problemas do mundo.
Muito pelo contrário, explicitam ainda mais os problemas do mundo. Mas na
mesma medida instituem a utopia e a esperança. Talvez isso explique porque
são tão poderosos.
Afinal, como disse o personagem Mário Ruopollo no debate fictício com Pablo
Nuruda (O carteiro e o poeta): "A poesia não pertence a quem a escreve mais
do que àqueles que dela precisam".
PS: ao concluir este texto, recebo a notícia da morte de Adílio, jogador do
Flamengo. Obrigado, craque! Você não pode imaginar o quanto ao lado de meu
pai fui feliz com seus feitos!