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Cogumelos, plantas e mistura de vinho e ervas. Não se trata de uma receita culinária, mas sim a fórmula utilizada por atletas olímpicos gregos e gladiadores romanos que competiam no Circus Maximus há mais de 2700 anos. No século XIX a lista ainda incluía cafeína, álcool e cocaína. Em 1904, a vitória de Thomas Hicks na maratona dos jogos olímpicos, em Saint Louis, Estados Unidos, foi creditada ao auxílio de ovos crus, injeções de estricnina e doses de conhaque. E toda essa miscelânea sendo, inclusive, administrada durante a corrida!

Até onde deve-se ir na busca pela superação? No caso do futebol, para a grande maioria dos clubes, a fisiologia é secundária ao talento. No esporte, os objetivos são mais velocidade, mais resistência e menos dor, e, independente dos meios e métodos, a superação dos limites sempre foi o sonho do ser humano.

Crime e castigo

A palavra doping é provavelmente derivada da holandesa dop, nome dado a uma bebida alcóolica feita com cascas de árvores e utilizada pelos guerreiros africanos zulus. Segundo Martha Maria Dallari, educadora física e doutora em educação pela USP, “para esses guerreiros, a bebida garantia o aumento de força e resistência antes das batalhas. No começo do século XX o termo doping passou a ser usado por ingleses para descrever a prescrição de substâncias que alterassem (para melhor ou para pior) a performance de cavalos de corrida”.

Sabino Vieira Loguercio defende em seu livro Doping e as muitas faces da injustiça (Editora Age) que “o doping, perfeitamente configurado como artifício para melhorar o rendimento pessoal – ou o rendimento de um grupo – em detrimento do desempenho dos concorrentes, não pode receber aprovação de nenhum segmento organizado de gente intelectualmente sã”.

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva incorpora o Código Mundial Antidoping, elaborado pela Agência Mundial Antidoping (World Anti-Doping Agency – Wada), e durante a 33ª Convenção Geral da Unesco estabeleceu-se que todos os esportistas dos países signatários ou competindo em um desses países deveriam seguir as normas mundiais.

No Brasil, em 2011, o Decreto nº 7630 possibilitou a criação da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), dentro da estrutura do Ministério do Esporte, que, além das atribuições relativas ao controle de substâncias, centraliza ações de prevenção e educação. A ABCD segue a lista de proibições divulgada anualmente pela Wada, que apresenta substâncias e métodos proibidos a atletas dentro e fora de competições, e é parte do Código Mundial. A listagem se altera ano a ano, e, por exemplo, até 2004 a cafeína figurava na lista.

Entretanto, a questão é mais complexa. Os códigos e leis existentes representam um repertório amplo de normas e punições, mas “a dopagem é uma questão legal e também moral”, ressalta Dallari. “Do ponto de vista moral, o competidor que atua sob efeito de doping está usando algo diferente do seu adversário. O esforço do atleta limpo será derrotado pelo competidor que usar métodos proibidos”, aponta.

Atletas geneticamente modificados?

Em 2012 a nadadora chinesa Ye Shiwen, ganhadora de duas medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Londres, estampou noticiários internacionais como possível evidência de que a ficção científica havia se tornado realidade. A espantosa quebra de recordes da atleta de apenas 16 anos e os resultados negativos do exame antidoping suscitaram uma questão ainda mais interessante. Os atletas poderiam ser modificados geneticamente? Seria essa a explicação para espantoso desempenho?

No mundo dos laboratórios e seus tubos de ensaio, inserir e remover partes de genes em cobaias já é realidade. Em 1997, um grupo de cientistas da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, utilizando técnicas de genética e de biologia molecular, produziu camundongos mutantes com ausência do gene miostatina. Eles adquiriam uma aparência musculosa (hipertrofia muscular) resultante da ausência de miostatina, um inibidor natural do crescimento muscular. Anos depois foi relatada a ausência natural desse gene em um garoto alemão. O efeito observado foi o mesmo, hipertrofia muscular.

Do ponto de vista terapêutico, medicamentos que inibem a miostatina podem ser muito úteis para o tratamento de distrofia muscular, doença que enfraquece progressivamente os músculos. Enquanto essa solução ainda não é possível, o mesmo não pode ser dito da eritropoietina, ou EPO, já sintetizada e encontrada em farmácias.

A EPO é produzida naturalmente pelo organismo e controla a produção de células vermelhas no sangue. Genericamente, em situações de anemia observa-se um baixo número de células vermelhas e, em situações mais graves, como em anemias por insuficiência renal crônica, o medicamento é recomendado.

Subvertendo sua utilização como medicamento, a EPO foi o centro do escândalo envolvendo o ciclista americano Lance Armstrong. O doping produziu um super atleta às expensas do fair play. O ciclista utilizou a substância para aumentar a quantidade de células vermelhas do sangue e, consequentemente, a oxigenação dos tecidos. A EPO sintética também minimiza a quantidade de lactato acumulada no músculo, diminuindo os sintomas de fadiga muscular.

Para o farmacêutico-bioquímico Lázaro Alessandro Soares Nunes, professor do curso de ciências biomédicas da Faculdade Metrocamp, “células vermelhas são alvo quando se pensa em aumento de performance, quando aumentam em número e, em algumas situações, quando também aumenta a quantidade de plasma. Essa é a ideia por trás do doping sanguíneo, realizado via transfusão de sangue, ou medicamentos utilizados com essa finalidade, como o hormônio eritropoietina”. O doping sanguíneo consiste em retirar, guardar e reinjetar o próprio sangue antes de competições para aumentar o número e glóbulos vermelhos. É difícil de ser detectado por exames convencionais, uma vez que, após algum tempo, a quantidade de células sanguíneas retornam aos valores normais.

O passaporte biológico, proposto pela Wada, poderia auxiliar no controle do doping sanguíneo e convencional – em que há utilização de hormônios e outras substâncias – ao comparar os parâmetros hematológicos e bioquímicos de indivíduos em situações pré e pós treino. “A questão de avaliar esses exames agrega possibilidades para o passaporte biológico, você pode monitorar uma alteração do fígado, fora dos parâmetros normais, que pode ser indício de utilização de drogas ou álcool”, observa Nunes.

A cada mês a lista de genes e alterações genéticas com possíveis associações à performance física cresce. O tamanho do genoma humano e sua variabilidade contribuem para esse fenômeno. Rodrigo Gonçalves Dias, pesquisador do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração da USP, explica que o genoma humano possui 3,2 bilhões de pares de bases, e estima-se que existam 5 milhões de alterações genéticas entre diferentes seres humanos, sendo justamente essas alterações na sequência de letras de um gene que fazem com que exista a individualidade biológica e variabilidade fenotípica. Ou seja, apesar de sermos iguais, somos diferentes.

Ao passo que o conhecimento do genoma evolui, as pesquisas em esporte encerram um problema conceitual, a “treinabilidade”. Como explica Dias, “de um grupo de indivíduos submetidos ao mesmo treinamento físico, nenhum vai responder igual, e parte dessas diferenças são explicadas pelas diferenças no genoma”, diz

Pesquisas com alterações genéticas como mutações que favorecem o rendimento físico apontam pistas que poderiam favorecer certas funções fisiológicas relacionadas à resistência, como em provas de média e longa duração, em determinados indivíduos. Ou, ainda, apontar caminhos para que no futuro esses genes sejam utilizados no doping genético. Contudo, Dias alerta que “estamos em uma fase exploratória do potencial que a genética eventualmente possui na detecção de talentos esportivos. Não há, até o momento, nenhuma evidência da genética como aplicação prática nos esportes, ainda que com fins exploratórios”.

Apesar de não existirem provas de manipulação genética dos atletas, a Wada já incluí na lista proibida diretrizes contra o doping genético, proibindo “a transferência de polímeros de ácidos nucléicos ou análogos de ácidos nucléicos e o uso de células normais ou geneticamente modificadas”.

O super atleta

A superação dos limites do corpo também vem acompanhada de um melhor entendimento do equilíbrio entre treinamento intensificado e períodos de recuperação, por meio de evidências das análises bioquímicas e hematológicas. Atualmente, os atletas são acompanhados por equipes multidisciplinares, que buscam o melhor desempenho. O equilíbrio entre treinamento e repouso também está relacionado ao surgimento de lesões. Segundo Nunes, “a lesão sempre vai existir e é bom para o processo de recuperação. O problema é quando a inflamação é crônica, o que  aumenta a chance de o indivíduo ter uma lesão do músculo esquelético”.

Seria leviano afirmar que a genética é o único caminho para a superação dos atletas,  mas o limite também pode ser definido bioquimicamente. A observação de que os recordes ficaram cada vez mais difíceis de serem batidos vem acompanhada de uma nova filosofia de treinamento e de compreensão do funcionamento do corpo. Certamente o super atleta será uma consequência desses novos caminhos da ciência.

Para saber mais
Gold, M. Performance enhancing medications and drugs of abuse. Taylor & Francis, 2014.
Friel, J.; Vance, J. Triathlon science. Human kinetics publishers, 2013.

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