Integra

Durante a minha infância o mundo da fantasia era chamado de “faz de conta”. Eu e minha irmã, Maria Silvia, costumávamos exercitar nossa imaginação nesse espaço suspenso da realidade. Nossas histórias eram tiradas dos sonhos, sonhados ou inventados, e de outras cenas vividas na escola, em casa ou pela rua. Cabeça de criança é capaz de coisas que gente grande está longe de acompanhar. 

Depois que me tornei psicóloga descobri que esse mundo do “faz de conta” é para os adultos um território de potencialidade, de saúde mental ou de patologia. Nele e dele brota a imaginação tão necessária à sobrevivência nesses tempos de isolamento.

Nessa última semana voltei a assistir televisão depois de meses de distanciamento físico da tela. Tenho a nítida impressão de que esse equipamento que já teve o tamanho de uma cômoda, e hoje parece um quadro, é responsável pela ruína do mundo da imaginação individual. De forma hipnótica emoções e sensações são manipuladas pela expertise de quem escrever um roteiro ou dirige uma cena. De reality shows a registros de imagens sem presença humana o desenrolar de uma cena comove ou excita, a depender do estado de espírito de quem está sentado na poltrona.

Depois de avaliar que o lixo de sempre permanece na grade de programação, desintoxicada que estou, percebi a falta do conteúdo esportivo que habita o campo da realidade. Tempos atrás seria impensável ligar a TV e não ver nada de novo acontecendo. E não digo apenas das competições. O esporte mobiliza muito tempo com treinos, estudo de tática de jogo, escalações que ocupam a cabeça de quem acompanha diferentes campeonatos mundo afora. Independentemente da modalidade esportiva.

Isso está diretamente relacionado com a redução de inúmeros programas de debate inconclusivos. A perspectiva de um jogo e sua avaliação posterior mobilizam muito mais tempo do que o jogo em si. E isso explica a imobilidade da máquina do esporte. E, diante da possibilidade de suas engrenagens enferrujarem, observo o movimento dos senhores de cartolas para fazê-la girar. Pouco importa se isso representa risco à vida de quem faz o espetáculo ou de quem o assiste.

Determinados a fazer de conta que tudo está bem, eles ditam regras e calendários a serem seguidos. Agem, como alguns personagens públicos, dentro do velho normal, no qual o sinônimo da prosperidade era a casa lotada, mesmo com os banheiros sujos. É mesmo muito perigoso transitar entre o terreno fluído da imaginação saudável e da fantasia patológica. Sonhando acordados tornam a vida um pesadelo. Gostaria de ter um amplificador potente para fazer chegar aos ouvidos dessa gente insana: “acorda pra vida nesse novo normal!”

O número de óbitos diários no Brasil segue ainda na casa do milhar há semanas, muito embora haja um movimento para que não se fale sobre isso. Preocupados com a sobrevivência muitos trabalhadores voltam a se deslocar em busca do pão de todo dia mesmo diante de riscos iminentes. E o esporte, assim como as atividades culturais, está no fim da lista das atividades essenciais, não porque não o seja, mas porque precisa de gente, gente essa que precisa se preservar diante do risco de contágio.

Chegará o dia em que isso tudo será passado, mas o momento é ainda de cautela. O respeito com o esporte e os atletas não se dá com visibilidade na televisão, mas com a inclusão nas políticas de auxílio emergencial que outros trabalhadores já conquistaram.