Teorias do currículo e currículo em Educação Física escolar: Considerações preliminares
Por Álvaro de Azeredo Quelhas (Autor).
Em IV EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
A década de 80 é apontada em diversos trabalhos e por diferentes autores, como um período marcado por profundas transformações econômicas, políticas e sócio-culturais, observáveis tanto mundialmente, quanto no Brasil.. As transformações no modo de produção capitalista, a escalada do modelo econômico neoliberal a partir dos governos de Thatcher e Reagan, a oclusão dos governos do Leste Europeu, contribuíram para o estabelecimento de uma nova ordem mundial, sob a condução hegemônica dos Estados Unidos da América do Norte e de organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. No Brasil, acuado pela pressão popular e absurda alta inflacionária, o governo militar, que continuava no poder desde o golpe em 1964, vai lentamente se abrindo e um processo de redemocratização é iniciado. Na sociedade civil, diferentes movimentos sociais se organizam, concretizando o crescimento de um movimento de contestação ao modelo social vigente.
Neste contexto, a educação passa a ser severamente questionada quanto ao papel por ela desempenhada, especialmente em relação a escola pública e a educação oferecida às classes populares. No âmbito da Educação Física, surge também um forte movimento contestador do papel desempenhado pela Educação Física, especialmente no contexto escolar. Segundo Daolio (1997), rompe-se em nível do discurso científico, o consenso de que a Educação Física era uma prática escolar com objetivos de desenvolvimento da aptidão física dos alunos e iniciá-los na prática esportiva. O debate acadêmico da Educação Física construído a partir deste período tem como uma das principais características, a rejeição à exclusividade do referencial teórico advindo das ciências biológicas, passando-se a buscar principalmente nas ciências humanas, outras explicações para os fenômenos da área.
Uma das principais críticas feitas à Educação Física referia-se a sua configuração enquanto uma atividade eminentemente prática, desprovida de uma reflexão teórica que pudesse justificá-la no interior da escola como uma disciplina pedagógica componente do currículo escolar. Tais determinações advinham não só de determinações legais como o Decreto Lei nº 69450/71, analisado e criticado por Castellani Filho (1988), entre outros, como também pela falta de reflexão acadêmica e científica que não se pautasse exclusivamente nas ciências biológicas.
O surgimento de explicações diferenciadas a respeito da Educação Física deve ser entendido como uma ampliação do entendimento sobre o objeto da área, o que determina o tipo de conhecimento para fundamentá-la. Nesta direção, Bracht (1997) apresentou as seguintes possibilidades de identificação do objeto da Educação Física:
a) atividade física, em alguns casos atividades físico-esportivas e recreativas;
b) movimento humano ou movimento corporal humano, motricidade humana ou, ainda, movimento humano consciente;
c) cultura corporal de movimento.
Tais possibilidades podem ser identificadas informando diferentes proposições teórico-metodológicas não sistematizadas e sistematizadas apresentadas por Taffarel (1997). Em concordância com a referida autora, considera-se de fundamental importância o reconhecimento deste quadro tanto para a formação inicial quanto para a formação continuada na área de Educação Física. Tal reconhecimento permite identificar diferentes concepções de sociedade, homem, trabalho, presentes nas diversas proposições. É preciso reconhecer em cada uma delas, diferentes projetos históricos colocados. Apesar de serem fruto de um mesmo processo histórico, as diferentes proposições buscam a hegemonia no interior da Educação Física, contribuindo desta forma para a construção/consolidação de projetos históricos distintos. Esta questão foi explicitada por Taffarel (1997), quando apresentou argumentos de resistência aos Parâmetros Curriculares Nacionais e sua ideologia, entre outros, por ocultar o Projeto Histórico Superador expresso nas proposições crítico-emancipatória (Kunz, 1991; Kunz,1994; Bracht, 1992) e crítico-superadora (Coletivo de Autores, 1992). Em comum, estas proposições identificam a cultura corporal de movimento como o objeto da Educação Física, além de se localizarem no âmbito da chamada pedagogia histórico-crítica.
A identificação e delimitação da cultura corporal de movimento como o conhecimento da Educação Física parece não ter resolvido ainda, o problema da legitimação da área enquanto uma disciplina curricular da educação básica. A questão da organização e sistematização do conhecimento, que a grosso modo é identificada como currículo escolar, tem sido sistematicamente, em aulas, palestras e encontros com professores e estudantes, colocada como um problema a ser resolvido.
Segundo Silva (1999), mais importante que definir "currículo" é saber quais questões uma "teoria" do currículo ou um discurso curricular procura responder. A questão central sintética de todas as teorias do currículo é saber qual conhecimento deve ser ensinado. No entanto, para responder a este questionamento, diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade. A pergunta "o quê?" nunca está separada de "o que os alunos devem se tornar?". Neste sentido,
"... as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de pessoa que elas consideram ideal. Qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses "modelos" de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo." (Silva, 1999, p.15)
Deste modo, o currículo deixou de ser há muito tempo uma área meramente técnica, voltada a questões relativas a procedimentos, técnicas, métodos. As questões relativas ao "como" só adquirem sentido quando se relacionam com questões que perguntem "por quê" das formas de organização do conhecimento escolar. Nesta perspectiva, o currículo é colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual.. Está implicado em relações de poder, transmitindo visões particulares e interessadas, produzindo identidades individuais e sociais particulares. O currículo possui uma história vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação. (Moreira e Silva, 1995),
Quelhas (1995), Taffarel (1992), Mocker (1993), entre outros, já apontaram limitações de entendimento no campo do currículo na área da Educação Física. A principal delas refere-se à pouca aproximação com as teorias curriculares, além de uma predominância da racionalidade instrumental ou técnica, podendo-se afirmar que prevalece amplamente um entendimento próprio das teorias tradicionais de currículo. A partir de diferentes conceitos empregados, Silva (1999) apresenta a seguinte possibilidade de distinção entre as teorias do currículo:
a) Teorias Tradicionais: ensino; aprendizagem; avaliação; metodologia; didática; organização; planejamento; eficiência; objetivos.
b) Teorias Críticas: ideologia; reprodução cultural e social; poder; classe social; capitalismo; relações sociais de produção; conscientização; emancipação e libertação; currículo oculto; resistência.
c) Teorias Pós-Críticas: identidade, alteridade, diferença; subjetividade; significação e discurso; saber-poder; representação; cultura; gênero, raça, etnia, sexualidade; multiculturalismo.
A partir deste quadro e das críticas já apontadas em outros estudos, pode-se perceber que a Educação Física encontra-se ainda presa aos temas relacionados as Teorias Tradicionais do currículo. Tal situação pode ser constatada uma vez mais, através da leitura das novas diretrizes curriculares para os cursos de graduação em Educação Física (Kunz et alli, 1998). As relações entre currículo e ideologia, currículo e cultura, currículo e poder, apontados por Moreira e Silva (1995) como eixos que continuam centrais na Teoria Crítica e na Sociologia do Currículo, sequer são abordados no texto apresentado pela comissão de especialistas.
Convém destacar ainda dois aspectos pertinentes aos debates atuais, que merecem atenção dos estudiosos e profissionais de Educação Física, na perspectiva de avanços no campo do currículo: a) as dificuldades de aproximação entre a produção teórica proveniente da teoria curricular crítica e a realidade vivida no cotidiano das escolas (Moreira, 1998), b) a possibilidade de diálogo do discurso pós-crítico com a teoria crítica do currículo (Moreira, 1997).
Isto posto, cabem algumas questões que considero desafiadoras:
• Quais estratégias devemos empregar para que haja uma aproximação da Educação Física com as teorias curriculares críticas?
• Como avançar na consolidação de concepções pedagógicas críticas em Educação Física, sem uma maior aproximação com as teorias curriculares, em especial, as teorias críticas?
• De que forma a Educação Física pode contribuir para o processo de construção de uma escola pública de qualidade no país, a partir da produção advinda das teorias críticas do currículo?
Assim sendo, faz-se necessário considerar a necessidade de ampliação e aprofundamento do debate em torno destas questões, tanto nos cursos de graduação, de pós-graduação, quanto em congressos, seminários e dentre outros.
Obs. O autor é professor assistente da FACED - UFJF
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