Toda Criança Tem Direito a Não Ser Campeã
Por Hugo Tourinho Filho (Autor).
Integra
O ser humano, em todas as fases da vida, está sempre descobrindo e aprendendo com seus semelhantes e através do domínio sobre o meio em que vive. A esse ato de busca, de troca, de interação, de apropriação se dá o nome de educação. Neste sentido, é inegável a importância da utilização dos conteúdos dos jogos, ginásticas, lutas e dança na prática regular de exercícios físicos realizados durante a infância e adolescência como importante estratégia para o ato de educar. No entanto, a atividade física, por si só, não educa, pois seus efeitos dependem da situação criada, especialmente, em relação aos aspectos de interação social e ao clima afetivo-emocional, entre os quais a interação com o educador é fundamental.
Atualmente, no mundo em que vivemos, o lúdico está sendo excluído do universo infantil. As crianças estão brincando cada vez menos e este fato se dá em virtude de alguns fatores, entre os quais se destacam: o amadurecimento precoce, a redução do espaço físico e do tempo de brincar em função, muitas vezes, do excesso de atividades – o aprendizado de línguas estrangeiras, as aulas de computação, as aulas de reforço escolar, a participação em equipes esportivas e competições, e toda uma gama de compromissos que, em tese, estariam “preparando” nossas crianças para o mercado de trabalho.
Quando sobra tempo, em muitos casos, as horas de lazer são gastas à frente da televisão e dos jogos eletrônicos (videogames, tablets, jogos em celulares). Não se quer dizer com isso que não seja importante a participação em tais atividades e que o contato com novas tecnologias seja prejudicial à criança, pelo contrário, pois tais ferramentas também precisam ser exploradas dentro do ato de educar no mundo contemporâneo. O grande problema é quando não há espaço para o lúdico.
O lúdico na educação infantil, apoiado nas ações do jogo, da dança, enfim, por meio do movimento, é uma importante forma de educar. Para manter o equilíbrio com o mundo, a criança necessita brincar, jogar, criar e inventar. A infância é a idade das brincadeiras. A brincadeira é algo inerente à criança – é sua forma de trabalhar, refletir e descobrir o mundo que a cerca. Uma criança que não sabe brincar será, fatalmente, um adulto que não sabe pensar e com sérias dificuldades para criar.
Neste sentido, a ludicidade, como conteúdo dos jogos, ginástica, lutas e dança nos programas de exercícios físicos na infância, está longe da concepção ingênua de passatempo, brincadeira ou diversão superficial, muito pelo contrário, quando bem planejada se torna uma importante ferramenta para o desenvolvimento integral da criança. Dentro dessa linha de raciocínio, a participação das crianças nas atividades esportivas deve ser voltada, necessariamente, à aquisição de um repertório motor amplo e variado que possibilite uma maior vivência motora – experiência com diferentes formas de se movimentar a fim de criar uma “biblioteca motora” ampla e rica, além dos estímulos que propiciarão um melhor desenvolvimento cognitivo e socioafetivo.
Quanto maior o repertório motor (biblioteca motora), maior será a capacidade de aprender e executar novos padrões de movimento – mais preparada a criança ficará nas fases seguintes (adolescência e fase adulta) para aprender movimentos mais complexos e realizados com maior precisão, fato que, no caso da formação de atletas, aumentará as chances de obtenção do alto rendimento. Acredita-se importante ressaltar que é durante as primeiras etapas do aprendizado esportivo, a iniciação esportiva, que se estabelecem as bases do futuro rendimento, sem jamais buscar o rendimento – toda criança tem direito a não ser campeã.
Essa constatação parece fazer todo o sentido diante de todas as possibilidades que a participação em programas de atividades físicas pode propiciar nessa importante fase da vida, que vão muito além de uma vitória, um título ou a quebra de um recorde. Todavia, nem sempre é dessa forma que é encarada a participação das crianças na sua iniciação esportiva e dos adolescentes em sua formação atlética.
Essa afirmação pode ser ilustrada por meio da reflexão dos motivos que levam um adulto a matricular uma criança em uma escola ou em uma “escolinha” de esportes. Quando levamos uma criança para o seu primeiro dia de aula, dificilmente pensaremos que com essa atitude estaremos contribuindo para a formação de um futuro gênio da bioquímica ou da física, ou que ao matricularmos nossas crianças na escola estaremos contribuindo para a preparação do próximo ganhador do Prêmio Nobel de Literatura.
Já quando matriculamos uma criança numa “escolinha” de futebol, natação, tênis, futsal ou qualquer outro esporte, não é difícil encontrar o seguinte desejo – “este será o futuro Neymar do futebol, ou o Cielo da natação e – por que não? – o Federer do tênis ou o Falcão do futsal”. Por que numa escolinha de esportes não desejamos apenas que nossas crianças sejam felizes por estarem num ambiente que lhes proporciona, acima de tudo, boas experiências? Não, neste caso queremos que elas se tornem as melhores, as campeãs. Com essa forma de agir, podemos estar contribuindo para a instalação de um grande problema no que diz respeito à participação das crianças no esporte e que pode ser intensificado com o advento da Copa do Mundo e das Olimpíadas que serão organizadas em nosso país.
Embora ainda não se tenham explicações adequadas para inúmeros questionamentos relacionados aos efeitos da prática regular de exercícios físicos envolvendo integrantes da população jovem, verifica-se que, nos últimos anos, uma grande quantidade de informações vem sendo acumulada com referência ao assunto, muito provavelmente, em função do aumento da participação de jovens em programas de treinamento.
Em especial, no Brasil, com a organização da próxima Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas a serem realizadas em 2016, espera-se que esse aumento na participação dos jovens em eventos esportivos tome uma proporção cada vez maior. E a busca pelo rendimento sem a devida atenção às fases que precisam ser respeitadas dentro da iniciação esportiva e formação atlética de crianças e adolescentes pode nos levar a deparar com um quadro de pressão excessiva que, ao invés de contribuir para aumentar o desejo em praticar esportes, irá acelerar o processo de abandono do hábito saudável da prática esportiva desde a mais tenra idade.
Nas últimas décadas verificou-se uma explosão do profissionalismo no esporte. O interesse da iniciativa privada por essa área e as consequentes oportunidades de independência financeira e ascensão social têm levado os profissionais envolvidos com esse segmento a uma corrida incessante em busca do sucesso que, em muitos casos, tem trazido sérios prejuízos psicofisiológicos às pessoas envolvidas nesse processo.
É comum deparar-se com atletas que abandonaram o esporte por se sentirem “desmotivados”. Por vezes, afirmam ter perdido o objetivo de treinar e/ou competir. “O que eu estou fazendo aqui neste jogo?”, pode-se ouvir. “Eu treino cada vez mais e não consigo mais melhorar minhas marcas!”, é outra afirmativa recorrente. Essas frases são frequentes no mundo do esporte competitivo e alguns sintomas de apatia, fadiga excessiva, perda de rendimento e lesões frequentes têm motivado os pesquisadores da área a investigar as causas de tantos males.
Diversos problemas como dificuldades em melhorar o desempenho, conflito entre técnico e atleta, uso de drogas muitas vezes utilizadas como doping em busca de melhores resultados e estresse emocional são extremamente intensificados pela incrível pressão exercida pelas sessões de treinamento face às exigências da preparação dos atletas de elite que se inicia cada vez mais precocemente.
Formação atlética inadequada e o “burnout”
No começo dos anos 1980, o termo “burnout” começou a aparecer com frequência na literatura esportiva, sendo explicado como uma síndrome que tem o poder de afastar as pessoas de suas atividades – no caso do esporte, o abandono da prática esportiva. Técnicos em todos os níveis começaram a discutir os perigos do “burnout” em sua profissão. Atletas de elite começaram a abandonar o esporte no auge de suas carreiras, afirmando que estavam “esgotados” e que a participação tinha-se tornado tão aversiva que era impossível para eles continuar. Preocupações com o grande número de atletas que passaram a desistir do esporte durante a adolescência tornaram-se frequentes.
Mas, na verdade, tudo começou em 1959, quando Thibaut e Kelley avançaram para uma teoria que fornece uma base para diferenciar as retiradas do esporte provenientes do “burnout”, daquelas provenientes de outros motivos. Thibaut e Kelley começaram seus estudos com a suposição de que o comportamento humano é governado principalmente pelo desejo de maximizar as experiências positivas e minimizar as negativas. A partir dessa perspectiva, as pessoas têm relações ou participam de atividades só enquanto os resultados da participação são suficientemente favoráveis. O favorecimento é determinado pelo equilíbrio entre recompensas e custos. No entanto, eles ainda verificaram que a decisão de entrar ou de permanecer em uma relação ou em uma atividade não é baseada somente no resultado recompensa menos custos, ou seja, se a recompensa for maior que os custos, a tendência seria continuar na atividade e o contrário levaria ao abandono da mesma.
Os resultados da participação em uma atividade são avaliados em relação a dois padrões: o nível de comparação e o nível de comparação a alternativas. O nível de comparação é uma escala pessoal, onde a atividade pode ser avaliada, em seus extremos, como boa/satisfatória/prazerosa ou ruim/insatisfatória/não prazerosa. A relação do resultado com o nível de comparação determina quanta satisfação uma pessoa encontrará em uma atividade, mas não determina se a pessoa continuará na atividade. Algumas vezes os atletas continuam a participar da atividade embora já não sintam mais satisfação em sua prática. O nível de comparação a alternativas, sim, pode explicar a retirada da atividade. Se a pessoa já não sente mais prazer na atividade, mas verifica uma impossibilidade de manter um status social, por exemplo, em virtude da sua retirada, ela pode optar por permanecer na atividade. Por outro lado, se ela verifica que tem possibilidades de mudança, sem grandes perdas, ou seja, uma alternativa mais atraente, então ela abandona a atividade em que está e que já não lhe garante mais satisfação, trocando-a por outra.
Estudos que revisaram os motivos de desistência esportiva encontraram como a razão mais proeminente de abandono da prática do esporte o interesse por outras atividades, e não demandas excessivas de treinamento ou excesso de pressão por resultados.
Em todos os casos acima, parece ser impróprio atribuir a desistência ao “burnout”. Em contraste à desistência baseada numa mudança de interesses ou numa reorientação de valores, o “burnout” resulta de um aumento dos custos induzidos pelo estresse. No “burnout”, o abandono da prática não se dá apenas pelo fato de haver uma alternativa mais atrativa e sim por não se suportar mais permanecer naquela função.
Verificando alguns conceitos de “burnout”, isso pode tornar-se mais claro. “Burnout” é um subproduto do estresse prolongado que pode resultar em consequências negativas, tais como: absenteísmo, insônia, fadiga, e sentimentos de passividade ou de agressividade. “Burnout” é uma síndrome multidimensional caracterizada por sentimentos de exaustão e despersonalização emocionais e um reduzido senso de realização pessoal. “Burnout” é uma resposta à tensão emocional crônica de lidar extensivamente com outros seres humanos, particularmente quando eles são problemáticos. Então, muitas vezes os valores das “recompensas” não diminuem, mas os custos induzidos pelo estresse se tornam pesados demais. Como conclusão, pode-se utilizar a ideia de que o “burnout” envolve uma desistência psicológica, emocional e, às vezes, física de uma atividade em resposta ao estresse excessivo – no caso aqui discutido, as pressões realizadas em momentos inoportunos nas crianças e adolescentes envolvidos com o esporte competitivo.
Alguns estudos têm sinalizado para o fato de que as raízes do “burnout” estavam fundadas na organização social do esporte de competição. Nessas pesquisas, os jovens entrevistados frequentemente mencionaram pressões e estresse relacionados à participação esportiva, mas as pressões e o estresse que pareciam ser piores para eles eram aqueles ligados à falta de controle sobre suas próprias vidas. Os jovens atletas verbalizaram o quanto gostariam de experimentar outras coisas fora do esporte. Um jovem atleta de 17 anos expressou seus sentimentos imediatamente antes de desenvolver os sintomas do “burnout” da seguinte maneira: “Eu dizia a todo mundo: ‘Eu patino por diversão. Adoro as viagens, a competição, a atenção, as multidões’. Eu sempre dizia: ‘Para alcançar meus objetivos, eu tenho que fazer muitos sacrifícios’. Mas quando eu me tornei mais velho, eu vi que eu estava perdendo muito. Outros garotos estavam fazendo coisas que eu nunca tinha tido tempo de fazer. Eu me senti sufocado!”
Não existe dúvida de que o estresse está associado ao “burnout”. Contudo, as raízes do “burnout” entre jovens atletas vão além do estresse crônico, além das demandas emocionais e consequências do esporte competitivo, e além dos recursos psicológicos individuais. O “burnout” é mais bem explicado se tratado como um problema social ao invés de uma falha pessoal.
As identidades são construídas através de relações sociais e os jovens envolvidos no esporte competitivo encontram-se em situações nas quais se torna quase impossível se envolver em outras atividades e desempenhar outros papéis. Eles não têm poder de construir socialmente suas identidades fora do esporte. Então, o jovem esportista desenvolve sua identidade de “atleta”, enquanto todos os outros papéis sociais são tolhidos. Logo, o “burnout”, dentro dessa concepção social, ocorre quando os jovens não veem possibilidades de socialmente construir uma identidade desejada afora sua identidade de atleta.
O envolvimento no esporte torna-se análogo a estar sobre uma corda bamba: é excitante, eles são bons, eles são o centro das atenções, mas sabe-se que não se pode mudar o foco de atenção para nada além do esporte sem perder o equilíbrio. E se eles perderem esse equilíbrio, eles sabem que não terão uma rede para segurá-los. Em virtude disso, passam a se sentir inseguros. Essa insegurança afeta o rendimento. E a inabilidade de manter os padrões de desempenho leva à retirada do esporte.
Nesse sentido, parece razoável sugerir que quando o “burnout” é conceituado como um problema social ao invés de uma falha pessoal, isso sugere uma mudança, indo além do tratamento do estresse. Assim sendo, se os cientistas do esporte focalizarem sua atenção exclusivamente sobre ajustes individuais e administração do estresse, sem lidar com as condições sociais nas quais o desenvolvimento da identidade é tolhido, resultando em jovens atletas que perdem o controle significativo sobre importantes partes de suas vidas, o problema não será resolvido de forma efetiva. Jovens atletas, frequentemente, necessitam muito mais de uma avaliação crítica com relação à sua participação no esporte e uma maior autonomia sobre sua vida do que simples técnicas de controle de estresse.
Por fim, os atletas precisam ser encorajados a se tornarem menos dependentes e mais autônomos em suas decisões. Atletas são seres humanos com sentimentos, desejos, necessidades e sonhos, e não máquinas de performance esportiva! Os jovens devem aprender com o esporte que não são perfeitos e que vão errar muitas vezes. Eles não deveriam ter receio de agir por medo de errar. É preciso ensiná-los a ter iniciativa, agir e ousar sabendo que vão errar muitas vezes. Os erros os tornam mais fortes se forem aceitos de maneira apropriada.
E as crianças? Ah! As crianças podem e devem jogar imaginando ser o Neymar, o Lionel Messi ou o Cristiano Ronaldo – elas têm todo o direito de sonharem ser um astro numa partida de futebol, basquete, vôlei ou tênis, pois isso faz parte do lúdico que enriquece a infância. Porém, é incorreto pensar que todas as crianças que se dedicam ao esporte vão atingir altos níveis de rendimento. Em sua maioria, elas se beneficiaram pelo simples fato de estarem envolvidas com a prática esportiva: sentem alegria, fazem amigos e aprendem as habilidades dos esportes praticados, o que as ajudará durante toda a vida.
Hugo Tourinho Filho é professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto.