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FUTEBOL EM SHANGHAI! Seria um sacrilégio – além de um desperdício, obvio – vir a uma conferencia sobre ‘futebol e sociedade’ e não ir a um jogo de futebol. Ainda mais em Shanghai. Ainda mais da Superliga Chinesa. O burburinho já começou na quinta, quando o holandês comentou que haveria um jogo no sábado a noite. Vamos? Uma hora de trem daqui, nosso voluntario-guia daquele dia nos falou, meio desanimado. Um estudante de pós-graduação baixinho, Daniel tem um inglês muito bom e acima da media por aqui. A comunicação flui muito bem, mas ele esta tímido.  Quem joga? Shanghai SIPG FC (o time do Hulk!) X Shandong Luneng (o time do Tardelli!). Temos que ir. Conversa vai, conversa vem, ao final dos trabalhos de sábado, as 5:30, está quase tudo certo. Daniel tem um amigo, Allan, que é absolutamente descolado. Por telefone, conseguiu os ingressos e uma van. Ainda dá tempo da gente pegar a jantinha VIP. Estou melhorando com os pauzinhos. 6:30 a van chega na porta do hotel. Antes de embarcar, o holandês quer confirmar que o jogo não vai ser cancelado por conta da chuva, afinal temos uma longa viagem pela frente. Eu retruco: se cancelarem, a gente quebra tudo. Todos sorriem e embarcam no carro. Está dada a senha para a criação dos ‘transnational ultras’, o mais novo grupo ultra do futebol mundial: na van, além do motorista e dos dois estudantes chineses, há um japonês que mora na Malásia, um holandês que mora na Indonésia, um alemão que mora na Alemanha, e um Brazuca que mora na Austrália. Perfeito. Pela careca, vê-se que sou o membro sênior do grupo; pelo comportamento, confirma-se que sou o sócio júnior da empreitada. Atravessamos Shanghai passando sobre viadutos incríveis, a cidade aos nossos pês e ao nosso lado, com arranha-céus, hotéis, bancos e moradias. Tudo muito grande. Impressionante. Chegamos no estádio onde cabem 80.000 pessoas. Muita agua caindo. Depois de uma confusão inicial, os ingressos aparecem, e entramos. Mesas de pingue-pongue e quadras de badminton nos corredores do estádio. Apesar da cobertura, o vento forte traz a agua pra cima da gente. Ultras torcem mais ainda quando chove. Alias, para quem vamos torcer? Pro Shanghai, claro! As torcidas organizadas (ultras) chinesas estão a postos: faixas em chinês, em inglês clamando por gloria e contra o futebol moderno! Na China! (alias, conforme um palestrante do dia, existem ‘evidencias cientificas’ como pinturas com imperadores chutando bolas, mostrando que o futebol foi inventado na China há milhares de anos e depois ‘roubado’ pelos ingleses...). Os ultras das duas equipes tem faixas com ‘Curva Nord’ (ultras italianos) nas suas torcidas, demonstrando que o fenômeno ultra é global e globalizante. Como transnational ultras estamos no lugar certo! O jogo começa; para surpresa dos meus companheiros, grito ‘Givanildo’ varias vezes mas o Hulk não me ouve. O Shanghai esta no topo da tabela, e o Shandong luta pra não cair pra segundona. Mas o jogo está igual, aberto. O alemão comenta que o campo pesado não deixa eles jogarem, ao que respondo que é nesta hora que os craques aparecem. Ele não entende a ironia. Alias, muito elegantemente, ele não disse uma palavra sobre o 7x1. Houvesse o oposto ocorrido, com uma vitória brasileira massacrante, eu teria aloprado ele tanto, mas tanto, que provavelmente perderia aquela amizade incipiente. Com muito orgulho. Com muito amor. Finalmente, o Shanghai abre a retranca do Shandong. GOAL!!! Ultras celebram. O Hulk ainda faz o terceiro gol com o pé direito antes de sair machucado aos 70 minutos. 4x1 placar final, pro Shanghai! Ai ai ai, só dá Shanghai, a torcida brazuca grita.  Na volta, o clima da van é de total descontração. Muita risada e provocação gostosa. Shanghai nos espreita acima dos viadutos. Dez e meia da noite ,e o pessoal esta com fome. Os rapazes nos levam pruma espécie de centrinho de Shanghai mais perto da nossa área. Apesar da chuva e da hora, o burburinho é intenso, bares e restaurantes lotados. Allan, o descolado, negocia em algumas lanchonetes até que entramos em uma espécie de boteco de Shanghai. Na hora de escolher a comida, os analfabetos tem que apontar para fotografias nas paredes. Eu rezo para que o meu arroz não seja apimentado. O Allan desaparece, e dali a pouco volta com uma espécie de churrasquinho de frango, pimenta pura. Mas a cerveja vem relativamente gelada. Estamos praticamente no Sujinho, só falta um sambinha. E uns ladrões. Comemos bem e barato. E muito. Voltamos andando para o  hotel, e no caminho molhado a conversa é franca e bem humorada. As arvores de Shanghai ainda respingam na gente, e Daniel esta absolutamente fascinado de fazer parte dos transnational ultras com  aqueles palestrantes tão importantes. O futebol, mais uma vez, abriu as fronteiras pessoais, etárias e linguísticas. Já é  meia noite, e amanhã temos que acordar as 6 da madruga para um dia de trabalhos intensos. Nem desconfio que no dia seguinte eu ficaria horas dentro de uma sala de aula com 30 alunos pós-graduandos da linda Shanghai University of Sports, avaliando os trabalhos deles. Em chinês. Por enquanto, hora de secar os sapatos, e sonhar acordado com o estádio do Pacaembu, onde Pelé atua pelo Santos contra o Grêmio: eu tinha seis anos, chovia muito, e aquele foi o primeiro jogo de futebol que fui na minha vida. Ao meu lado, me protegendo e me explicando tudo, meu pai. Tanto aqui como na China, uma figura incrível e inesquecível. 

29/10/2016