Um Drible nas Tentações
Por Lena Castellón (Autor), Lia Bock (Autor), Monica Tarantino (Autor).
Em IstoÉ, n 1698, 2002. Da página 1698 a -
Resumo
Especialistas criam estratégias mais flexíveis e investem em mudanças na casa e nas escolas para vencer a obesidade
Pergunte a qualquer pessoa o que fazer para controlar o peso. Recomendações como diminuir o açúcar e evitar frituras estão entre as respostas mais populares. São tão fáceis de propagar que possivelmente todo mundo já as repetiu, ao menos uma vez, para um amigo que lamenta a silhueta arredondada. Mas a verdade é que não é tão simples adotar uma alimentação mais saudável. Se assim fosse, a obesidade não se expandiria tanto. Sua voracidade é tamanha que a Organização Mundial de Saúde a configura como epidemia. Hoje, o total de obesos no planeta é calculado em 1,4 bilhão de pessoas. Dentre elas, 17 milhões estão no Brasil.
O fato de a doença – caracterizada pelo Índice de Massa Corporal superior a 30 (para calcular, divida seu peso em quilos pela sua altura em metros ao quadrado) – se alastrar tem levado os especialistas a repensar as estratégias de luta. Muitos estão concentrando seus esforços na tentativa de compreender por que, afinal, é tão difícil modificar os costumes e adotar uma alimentação mais correta. A solução dessa charada seria uma vitória importantíssima, já que os maus hábitos alimentares respondem por 70% dos casos de obesidade. Felizmente, já estão surgindo pistas para decifrar o enigma. Algumas estão em uma pesquisa que acaba de ser realizada pelas nutricionistas Juliana Ribeiro
de Carvalho e Márcia Daskal, da Recomendo Assessoria e Consultoria
em Alimentação, de São Paulo. Há sete anos fornecendo orientação alimentar em academias e no consultório, as duas queriam aumentar a adesão dos clientes aos programas de reeducação alimentar. Para isso, precisavam saber os motivos que levam boa parte das pessoas a abandonar dietas ou não alterar costumes. Para descobrir o que procuravam, fizeram uma revisão dos estudos mais recentes sobre mudança de comportamento e obesidade.
Uma das principais constatações é a de que, em geral, as pessoas têm dificuldade de entender o que é recomendado. Muita gente não sabe, por exemplo, o que quer dizer, na prática, “tirar ou diminuir a gordura” do cardápio. Ou seja, falta uma tradução para o cotidiano das orientações dadas pelos especialistas. No caso da gordura,
a atitude correta é reduzir a quantidade de óleo no preparo da comida e no tempero da salada. Uma sugestão é
usar molho de iogurte desnatado com limão. Outra dica é refogar verduras com água, alho e sal. A mesma desorientação foi observada em relação a afirmações como “coma mais frutas e verduras”. Quanto se deve ingerir de cada uma? De que forma? Outra descoberta é que ninguém aguenta mais ouvir frases do tipo: não coma frituras, não exagere nos doces. As pesquisas internacionais apontam que esse é um caminho equivocado. “Não se deve transmitir informações na negativa. O certo é sugerir opções mais saudáveis”, explica Juliana. De tanto ouvir não, o indivíduo se sente atraído justamente pelo que é proibido e acaba caindo de boca no prato errado.
Informações como essas são preciosas para os especialistas. A partir delas, é possível redesenhar a forma de lidar com as esperanças e limitações de quem deseja emagrecer. E, para alegria dos mais gordinhos, já existem modificações nas estratégias de tratamento. No consultório das nutricionistas Márcia e Juliana, as conclusões da pesquisa, combinadas à experiência clínica, ajudaram a delinear níveis de disposição para mudar de hábito. Essa é a primeira medida levada em consideração pelas especia listas. Se o paciente chegou até lá forçado por parentes, por exemplo, elas procuram um ponto vulnerável no comportamento
dele para iniciar o processo de transformação. Na primeira consulta,
o indivíduo pode receber apenas a recomendação de tomar menos
café. “Não dá para passar uma dieta para alguém nessas condições”, conta Márcia.
Outra atitude que começa a se tornar comum é adequar a dieta às preferências de cada um. A nutricionista Márcia se recorda do caso de uma paciente que bebia pouca água. Em vez de simplesmente receitar mais ingestão do líquido, buscou-se outro jeito de fazê-la mudar o hábito. “Ela não gostava da falta de sabor. A solução foi diluir um pouco de suco de fruta”, diz. Esse modelo de atendimento também é adotado pela nutricionista paulista Mirtes Stancanelli. “O emagrecimento deve ser um processo natural, sem sofrimento, mas com disciplina e persistência”, comenta. A abordagem conquista muito mais adesão do que as dietas prêt-à-porter de consultórios nos quais o profissional puxa da gaveta o cardápio pronto, preenche o limite calórico e agradece a visita. Pode ser a saída para pessoas como o editor de site Mário Matsukura Júnior, 23 anos, de São Paulo. Ele pesa 82 quilos, cultiva uma barriguinha e não abre mão das sobremesas. Para perder quatro quilos, quer diminuir as idas a restaurantes – em média, vai quatro vezes por semana. “Um dos meus maiores prazeres é comer bem”, admite. Matsukura também tenta se exercitar, mas logo desiste.
Olhômetro – Há outros exemplos de programas de emagrecimento flexíveis. Entidade tradicional de combate aos quilos extras, o Vigilantes do Peso, que já trabalhou com um controle mais rígido da ingestão de frutas, tornou-se mais maleável. “Agora, pode tudo, contanto que se controlem as porções”, esclarece Cleide Guimarães, do Vigilantes de
São Paulo. Para simplificar a vida das pessoas, a entidade usa um
sistema inusitado para impedir exageros: o “olhômetro”. Uma batata média, por exemplo, deve ter o tamanho da mão fechada. A porção adequada de filé de frango corresponde à palma (sem contar os dedos). A de peixe, a mão inteira.
O Vigilantes adota também um sistema de cores para identificar os alimentos. A vermelha indica itens que devem ser limitados durante a semana, como cerveja, chocolate e bolo. O amarelo sinaliza que se deve consumir com moderação produtos do dia-a-dia (caso de arroz e feijão). E os verdes são aqueles liberados: legumes, frutas, verduras. Esse método deu certo para a estudante paulista Vanessa Negrão, 21 anos, 68 quilos. Ela emagreceu 28 quilos e meio em um ano. “Já tomei remédio, fiz dietas loucas, mas voltava a engordar. Há três anos entrei para os Vigilantes e aprendi a diminuir as gorduras”, conta.
Também do lado de fora dos consultórios há iniciativas para melhorar a qualidade da alimentação sem radicalismos, respeitando o prazer de comer. O restaurante Biosfera, aberto há dois anos na capital paulista, por exemplo, é especializado em pratos balanceados – em um mês, vende seis mil refeições. “Nosso cardápio tem baixos teores de gordura”, afirma Roberto Someck, um dos proprietários. A casa oferece ainda quatro opções que contam com o selo da Fundação do Coração (Funcor), que atesta o caráter saudável dos pratos. Uma das frequentadoras mais assíduas é a atriz Virgínia Nowick. “Gosto de comida saudável. Sinto mais energia e disposição”, afirma.
No esforço para fazer com que as pessoas realmente transformem seus hábitos, os médicos também começam a perceber que não adianta mudar apenas a dieta. É preciso haver uma modificação do cotidiano e do ambiente em que se vive. Ou seja, mudar os costumes em casa, na escola e até no trabalho. Sem isso, não há programa de reeducação que funcione. “O controle da epidemia valoriza cada vez mais as intervenções no estilo de vida. Na prática, isso quer dizer criar medidas para que o ambiente favoreça a dieta e a atividade física”, diz Walmir Coutinho, endocrinologista do Rio e coordenador da Força Tarefa Latino-Americana Contra Obesidade.
Ambiente – Tanto é verdade que essa tese ganha força que já estão sendo identificados os fatores de risco que fazem parte do ambiente do obeso. O psiquiatra Artur Kaufman, do Projeto de Atendimento ao Obeso do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP), aponta a existência do parceiro, da casa, do amigo, do trabalho “engordativos”. São pessoas ou circunstâncias que estimulam o indivíduo a engordar. É o marido que presenteia com bombons a esposa que acaba de perder um quilinho, o amigo que convida o outro para uma bela picanha mesmo sabendo de sua luta contra a balança, a cantina da empresa que só oferece pratos calóricos…
É preciso ficar atento contra esse tipo de armadilha. Por isso, a professora de gastronomia Rita Corsi, de São Paulo, sugere que toda a família seja envolvida na mudança alimentar. “Se há uma criança gordinha em casa, por exemplo, é essencial envolver os pais no controle de peso”, completa a nutricionista Ana Maria Lottenberg, do HC/SP. Eles são os modelos dos filhos e também devem adotar regras de vida saudável. A família Zaidan, de São Paulo, segue essa lógica para evitar problemas de peso. O engenheiro Marcelo, 39 anos, e a dona-de-casa Ana Maria, 37, conseguiram fazer com que seus filhos Felipe, dez anos, e Eduardo, sete, encham o prato de salada, prefiram alimentos assados e tomem suco natural. O segredo de Ana Maria é servir primeiro a salada. “Como eles estão com fome, é mais fácil aceitar o alimento”, diz. Além de cuidar do cardápio, os pais fazem ginástica e os meninos, natação. Mas como ninguém é de ferro, nos finais de semana a família se delicia com refrigerante, churrasco e outras guloseimas politicamente incorretas.
A escola, segundo Coutinho, é mais um ambiente que deve servir de exemplo para a criança. Poderia mostrar à garotada que é necessário cuidar desde cedo da ali mentação. O ideal seria que as cantinas tivessem menos alimentos do tipo salgadinho e chocolate e oferecessem mais pães integrais e sucos naturais, entre outras coisas. A boa notícia é que alguns estabelecimentos já estão nessa trilha. Em janeiro, as refeições do colégio Dante Alighieri, de São Paulo, por exemplo, ganharam o selo do Funcor. “O objetivo é começar cedo a prevenção de problemas cardíacos e outras doenças ligadas à alimentação”, explica Martha Paschoa, nutricionista do colégio. Há mais escolas laureadas com o selo.
Em Brasília, há outra iniciativa para alterar o ambiente sempre tentador das cantinas de escola. Um programa da Universidade de Brasília faz sucesso ao envolver os professores da rede pública nessa batalha e investir em linguagem acessível aos pequenos. O projeto consiste em avaliar o peso de alunos do ensino fundamental e ensiná-los a comer direito por meio de palestras animadas com brinquedos como quebra-cabeça e dominó. Os especialistas orientam os professores para levar o trabalho adiante durante o ano, com ajuda de atividades como gincanas. “A escola é o melhor local para promover a alimentação saudável. Os pais também participam e o filho transmite em casa o que aprendeu”, diz Patrícia Martins, uma das responsáveis pelo projeto. De acordo com a nutricionista, é nessa etapa da vida que os hábitos são formados. “Uma criança obesa tem 70% de chances de continuar nessa situação quando chegar à fase adulta”, diz. Até agora, 170 escolas aderiram ao programa.
Além da casa e da escola, o local de trabalho também está na mira. É compreensível, já que se passa boa parte do tempo nesse ambiente, muitas vezes recorrendo aos serviços de entrega de refeições rápidas, devoradas em situações inadequadas (entre um telefonema e outro, por exemplo). Mas muitas empresas já contratam os serviços de nutricionistas para montar o restaurante dos empregados. O melhor seria que também organizassem palestras para ensinar os funcionários a fazer as escolhas certas e a exigir mais qualidade.
Há outro fator que chama a atenção dos especialistas devido a sua importância no combate à obesidade: o emocional. Cada vez mais, percebe-se que não adianta resistir às tentações e malhar se há dificuldades psicológicas por baixo do problema. Um exemplo é o paciente que perdeu peso mas fica inseguro com o novo corpo. Outro são os que comem para aliviar angústias. Nesses casos, há boas chances de o peso voltar a subir. “Não adianta mudar por fora sem transformar a estrutura interna”, diz o psiquiatra Kaufman. A batalha, como se vê, é complexa e vai além de trocar o bolo por uma fruta. Mas o maior conhecimento dos obstáculos aumenta a possibilidade de vitória.