Integra

Nem todo mundo sabe, mas o esporte, antes de ser uma competição, era uma celebração. Denominado prática atlética, encontra-se num tempo em que a história e mito se confundiam. A Odisséia, de Homero, é uma de minhas obras preferidas. Descreve a determinação de Odisseu, Ulisses em português, em voltar para casa, depois de ser o idealizador do cavalo prenhe de soldados a adentrar as muralhas de Tróia, para levar os aqueus à vitória.

Ulisses era um guerreiro corajoso e forte como tantos. Mas, diferentemente de outros heróis que tiveram suas aventuras marcadas pela força, sua maior virtude era a astúcia. Habilidoso com as ideias e as palavras precisou de toda a sua potência e, principalmente a paciência, para regressar à sua terra natal, onde lhe esperava a amada esposa Penélope.

Depois de vagar pelo Mediterrâneo por quase duas décadas tentando regressar a Ítaca, o herói chega à terra dos feácios, a Esquéria, onde é recebido pelo rei Alcínoo. Depois de ouvir as muitas aventuras pelas quais passou o rei promete resgatá-lo ao seu lar depois de vesti-lo e oferecer-lhe um banquete. Para finalizar aquele momento Ulisses é convidado a assistir a um desafio atlético, uma competição de luta, saltos e arremessos. 

A partir daí os melhores cidadãos feácios exibem-se em suas modalidades, diante do rei e de seu hóspede. Apesar da vitória em Tróia, Ulisses chega à penúltima etapa de sua viagem, com o aspecto físico de um homem forte, mas já não atlético. Pouco prudente Laódamas, filho de Alcínoo, dirige-se ao herói incitando-o à competição de forma pouco respeitosa, produzindo não um convite, mas um desafio.

Consciente de sua força já testada e comprovada na guerra, Ulisses responde ao jovem incauto, com o respeito devido a um anfitrião, reconhecendo o papel de celebração implicado numa apresentação ou disputa atlética. E assim declina do convite. Mas, a imprudência caminha de mão dados com a surdez seletiva do arrogante. Buscando agredir o convidado ao interpretar a recusa como incapacidade física ou desconhecimento da prática Leódamas leva Ulisses a um estado de cólera, que em algumas circunstâncias lhe teria custado a vida. Mas, neste caso, o faz resgatar seu poder de orador e de atleta. E assim responde:

“Senhor, não foram nobres as tuas palavras. Pareces um presunçoso, tão certo é que a nem todos os homens concedem os deuses os seus dons, seja o do bom físico, seja o da inteligência, seja o da palavra... Não sou alheio às práticas atléticas, como tu proclamas; ao contrário, penso ter sido dos melhores quando podia confiar na juventude e em meus braços. Hoje, tolhem-me as desgraças e sofrimentos, pois muito penei atravessando guerras de povos e ondas cruéis. Apesar de tudo, a despeito das muitas desgraças sofridas, farei uma prova atlética, porque tuas palavras pungiram meu coração e teu desafio me provoca.”

Em seguida Ulisses procura por um disco de pedra e arremessa-o a uma distância maior que a tentativa de todos os oponentes anteriores, causando espanto e admiração entre aqueles que assistiam à contenda. O gesto foi uma demonstração de força e habilidade. Mas acima de tudo a qualidade do respeito, valor fundamental ao esporte e à vida em sociedade. 

Muitas lições podem ser aprendidas com os mitos. 

Para mim, Ulisses é o símbolo maior da astúcia e da persistência diante das adversidades. Tipifica uma liderança rara que soma a prudência com a ação, características típicas do esporte que tão bem se aplicam à vida em distanciamento social.