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Educação física e sociedade

Há muito se discute a real importância da Educação Física Escolar, assim como seus conteúdos, relação com outras disciplinas e a sua definição epistemológica. A primeira questão a ser levantada é o constante debate que perdura há várias décadas sobre "o que é a Educação Física?". Levando em consideração a definição do Coletivo de Autores (1992), a Educação Física seria "uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como jogo, esportes, dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal" (p.50).

Concordando com a definição proposta pelos autores, estamos (re)afirmando a Educação Física enquanto uma intervenção eminentemente revestida de sentido docente. Para isso, entendemos que os professores de Educação Física precisam levar a sério sua formação e ter a clara consciência de seu trabalho dentro da escola. A marginalidade da disciplina, já outrora vivenciada por muitos dos atuais professores, ainda parece se fazer presente no cotidiano escolar e acreditamos que o professor de Educação Física também deve fazer parte da valorização de seu trabalho, fazendo dele uma apreensão da realidade e acreditando que a mudança de paradigmas societais é possível.

Persistindo no entendimento de que a Educação Física é uma prática pedagógica, logo ela não está descolada do mundo em que vivemos, mas sim como afirma Freire (1996) "a educação é uma forma de intervenção no mundo" (p.98).

Não estar alheia ao que acontece mundo afora faz com que a Educação Física também sofra com os efeitos perversos que o sistema capitalista vem infringindo a toda uma classe de trabalhadores assalariados que fazem a via-crúcis da sobrevivência diária. Parece-nos imperativo compreender a Educação Física dentro de uma totalidade concreta forjando-se no interior de um projeto histórico estruturado.

Após um longo ciclo de crescimento de intensa acumulação de capitais por meio da fase fordista/keynesiana, o capitalismo a partir dos anos 70 começa a dar sinais de um quadro crítico pela queda de sua taxa de lucro. Como resposta à sua própria crise, iniciou-se um processo de reestruturação do capital seguido também por um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho. Para recuperação de seu ciclo reprodutivo de lucro, sua resposta tinha que ser dada por meio de reformas estatais que se adequassem à nova lógica do sistema produtivo (ANTUNES, 1999).

Desde a eleição de Fernando Collor de Melo, o neoliberalismo vem se manifestando com toda a força nas políticas sociais implementadas pelos respectivos governos federais. Esse receituário impõe medidas como a desregulamentação da economia e das finanças, privatização das empresas e drástica redução dos gastos sociais (SEVCENKO, 2001).

Em meio a todas as reformas estruturais do Estado nacional, a Educação Física também sofre transformações decorrentes da gerência da crise do capital. No texto original da Lei de Diretrizes e Bases de 1996, a Educação Física e a Educação Artística perdiam seu caráter de componente curricular, podendo se constituir em atividades esporádicas. Após intensa mobilização dos movimentos docente e estudantil, a Educação Física conseguiu por ora, defender-se de sua exclusão do ensino formal.

Por conta da conjuntura em que a Educação Física está inserida, decidimos averigüar como ela se configura atualmente em escolas particulares da cidade do Rio de Janeiro, a relevância de seu papel no processo pedagógico de aprendizagem, os conteúdos ministrados e a relação da disciplina com aspectos externos do mundo.

E por que nas escolas particulares? O que ainda observamos com relativa freqüência é a Educação Física, juntamente com outras disciplinas e atividades extra-curriculares como Educação Artística, Psicomotricidade, teatro, laboratórios de informática etc., sendo vendida como um plus, ou seja, como um artigo de luxo a mais que a escola pode oferecer à formação humana de seus alunos.

Analisando os discursos

A realização desta pesquisa foi executada com visita a quatro escolas particulares onde realizamos entrevistas semi-estruturadas com os coordenadores da disciplina de Educação Física. Todas as entrevistas foram registradas por meio de fita microcassete e nossa análise se propõe a refletir sobre a Educação Física Escolar a partir do discurso desses professores. Com o propósito de preservar nossas fontes, o nome dos colégios e seus professores serão identificados sob a forma de letras (A, B, C e D).
Educação física = esporte?

Notadamente, sabemos que o esporte ocupa um lugar privilegiado na sociedade contemporânea, seja pela massificação de praticantes que este adquiriu, seja pela midiatização por meio das transmissões esportivas e programas jornalísticos específicos.

Assim, o esporte se desenvolveu como uma mercadoria a ser vendida, mercadoria esta que criou um novo segmento de atuação profissional com interesses comerciais, técnicas de transmissão, marketing, formação profissional, misturado a um ingrediente a mais: a paixão dos torcedores. O fomento à dedicação dos torcedores ao seu clube ou ao país é o que fundamentalmente sustenta o negócio da indústria esportiva.

Sua relação com a Educação Física se intensificou muito a partir dos anos 60 com a crescente esportivização dos conteúdos ministrados na escola. Vinculado a um projeto de aprimoramento da aptidão física da população, a performance esportiva tornava-se, na Educação Física, um simulacro da ordem de produtividade e eficiência ao modelo de sociedade do regime militar (CASTELLANI FILHO, 1991).

A relação tão próxima entre a Educação Física e o esporte fez com que ambos sejam propagados quase como sinônimos, o que fica evidenciado na fala dos professores entrevistados. Quando perguntados sobre os conteúdos ministrados, todos admitiram que a iniciação esportiva era exclusiva a partir da 5a série, com a exceção da escola B, onde a iniciação começa na 6a série.

A iniciação esportiva nas escolas mencionadas corresponde fundamentalmente ao conhecimento de técnicas, regras e táticas dos esportes de quadra tradicionais, podendo ser encontrada algumas variações na evolução do conteúdo (volei, basquete, futsal e handebol). O professor A declara que a partir da 8a série em diante "o trabalho é mais voltado para a formação de equipes esportivas e preparação para competições". O mesmo professor quando perguntado sobre a importância da Educação Física responde que é "levar para as crianças o prazer pela atividade esportiva". Como levar o prazer às crianças se elas são impelidas a assistirem aula em "ritmo de competição". Diante dessa lógica colocada, se a Educação Física pretende incluir a todos, logo todos os alunos a partir da 8a série deveriam participar das competições, senão estariam sendo ineficientes na disciplina.

Educação física e a interdisciplinaridade

Atualmente, muito se fala na importância da interdisciplinaridade e da formação de equipes multidisciplinares para coordenar projetos em diversas áreas de atuação, porque se tem o entendimento de que a formação específica dos profissionais integrantes contribuiria para uma intervenção mais plural e que abarque todos os setores possíveis. Assim, com maior amplitude, o programa ou projeto poderia ter maior sucesso.

Iniciativas como essas parecem estar sendo muito utilizadas nas escolas a fim de que as matérias possam se integrar de uma maneira de que interajam e facilitem o processo de ensino-aprendizagem do aluno. No entanto, quando se fala na relação das matérias que "cuidam da mente" (as de sala de aula) e a matéria que "cuida do corpo" (a Educação Física), a situação parece mudar. O que se observa é a ênfase dos conteúdos escolares no desenvolvimento da "mente" e a marginalidade para o desenvolvimento do "corpo". Como ironiza Freire (1994) "dá pra imaginar a escolar como um ser de cabeça imensa e corpo diminuto, um ser, por isso, deformado" (p.182).

Entrevistando os professores, tivemos a sensação de uma subserviência da Educação Física com relação às outras matérias. Segundo o professor B "a Educação Física ajuda as outras matérias quando elas precisam". A fala transparece um misto de obediência, inferioridade e atendimento de emergência em UTI.

No entanto, creio que nos cabe colocar em dúvida se existe essa contrapartida por parte das outras matérias. Nossa sugestão é que não há, especialmente pelo conteúdo limitado que a Educação Física vem oferecendo a seus alunos, dedicando boa parte exclusivamente ao esporte. Podemos ressaltar tal hipótese na fala do professor C. Quando perguntado se há essa cooperação entre disciplinas no segundo grau, o entrevistado explica que "não conseguimos fazer muito desse trabalho porque o conteúdo é só esporte". Ou seja, consideramos que errados estão as outras disciplinas que procuram não cooperar com a Educação Física, mas também esta se mostra amorfa em apenas tematizar como conteúdo o esporte. Segundo Freire (op. cit):

"a importância de demonstrar as relações entre os conteúdos da disciplina Educação Física e os das demais disciplinas reside, não na sua importância como meio auxiliar daquelas, mas na identificação de pontos comuns do conhecimento e na dependência que corpo e mente, ação e compreensão, possuem entre si" (p.183).

Educação física como inimiga do vestibular

A falta de políticas públicas universais é notória no Brasil, substituindo-se acesso livre à política de cotas, bolsas e auxílios. Quando pensamos no ensino superior, logo a palavra vestibular vem associada a este. Regido por uma lógica meritocrática, camuflado por um ar de democracia que não leva em conta o processo histórico de vida dos indivíduos que vivem em um país de fortes contradições de classe, este sistema seleciona àqueles que vão ter o direito de ingressar na universidade.

Quando o assunto é o vestibular, à Educação Física cabe dois papéis possíveis: vilã ou relaxadora. Dizemos que se trata de uma vilã porque se a Educação Física não se mostra prioridade na formação de competências ao indivíduo, tanto na carreira profissional, quanto na lógica funcionalista do vestibular, ela seria uma perda de tempo para os alunos que estão próximos de prestar o vestibular. Por isso, a Educação Física enquanto disciplina reprodutora de movimentos, vinculada ao projeto hegemônico, não se mostra mais central na formação dos indivíduos para o atual mundo do trabalho (NOZAKI, 2004).

Das quatro escolas visitadas, em três a Educação Física não se mostrava obrigatória no terceiro ano do Ensino Médio, sendo que em uma, a facultatividade já ocorre desde o primeiro ano. Nos três colégios, foi mencionada a necessidade que a escola tem de priorizar a preparação para o vestibular e, por conta disso, a Educação Física teria de ser suprimida.

No entanto, em uma escola encontramos um papel para a Educação Física de "relaxador de mentes". A Educação Física na escola B não é obrigatória para o terceiro ano, sendo que para estes alunos são ministradas competições. Todas as turmas do terceiro ano se reúnem ao mesmo tempo e disputam torneios esportivos. No final de cada bimestre, há a consagração de uma turma campeã. Segundo o professor B, este tipo de aula serve para os alunos "esfriarem a cabeça".

Identificamos uma clara ligação da Educação Física com a lógica competitiva do vestibular. Em primeiro lugar, mais uma vez a disciplina fica rebaixada dentro do projeto pedagógico da escola. E em segundo, o inculcar nos alunos do entendimento de que a vida é uma competição e que sempre deve haver vencedores e a estes, a glória. Segundo o professor B, "se der empate no número de pontos no bimestre, faz-se um jogo extra para decidir quem é o campeão".

Conclusão

Percebemos que à Educação Física ainda falta um longo terreno a se percorrer para uma maior aceitação dentro da escola. O próprio fato de se entender a Educação Física como uma "muleta" para outras disciplinas atesta a necessidade de maior esclarecimento sobre o papel que podemos desempenhar na escola.

Em relação ao conteúdo ministrado, muito nos preocupa a permanente manutenção do esporte como único componente curricular nas aulas de Educação Física. Claro que através dos esportes podemos trabalhar sob inúmeras perspectivas educacionais, mas o que constatamos é a predominância do conhecimento de uma série de elementos técnicos-táticos, colocando-o como um fim em si mesmo.

Acreditamos que este estudo pode contribuir para o repensar da prática cotidiana na escola e sobre quais deveriam ser as prioridades e a contribuição da Educação Física no projeto pedagógico. Não aceitemos um papel funcional de contribuição às outras matérias. A Educação Física cabe atuar buscando despertar a autonomia e a consciência crítica em nossos alunos.

Obs. Os autores, prof. Bruno Gawryszewski (bgesporte@pop.com.br), é do GE do Trabalho, Educação Física e Materialismo Histórico da UFJF e o acadêmico Marcello Bernardo Xavier Reis Sá (marcellobxrsufrj@yahoo.com.br) pertence ao GP Anima da UFRJ

Referências

  •  Antunes, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 6a ed., São Paulo: Boitempo, 1999.
  • Castellani Filho, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. 3a ed. Campinas: Papirus, 1991.
  • Coletivo de autores. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
  • Freire, João Batista. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da Educação Física. 4a ed., São Paulo: Scipione, 1994.
  • Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29a ed., São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • Nozaki, Hajime T. Educação Física e reordenamento no mundo do trabalho: mediações da regulamentação da profissão. Tese de doutorado (Doutorado em Educação), Niterói: Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 2004.
  • Sevcenko, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.