Integra

As vezes penso que estou em um roteiro parecido com Adeus Lenin. No filme de Wolfgang Becker uma mulher comunista convicta entra em coma antes da queda do muro de Berlim e só retorna do coma depois da unificação alemã. Temerosos do impacto que isso pudesse causar à mãe, os filhos tentam manter as aparências fazendo de conta de tudo continuava como antes.

A diferença que vejo do roteiro do filme para o que vivemos no presente é que não consigo encontrar outro momento da história em que as coisas estivessem tão fora dos trilhos como agora. Parecia inimaginável que pessoas em posição de liderança, fizessem tanta bobagem e agissem com tamanha indiferença diante do sofrimento. Jamais imaginei ver nesse país mortos serem contabilizados diariamente como se contam as jabuticabas que nascem na árvore que tenho na frente de casa. Isso tudo não parece real, ou melhor, eu desejava do fundo da minha alma que assim não o fosse.

De fato, me sinto num filme de terror. Junto com minha família entrei em quarentena em 14 de março. Desde o princípio estamos atentos ao que dizem os colegas e amigos que ajudam a afirmar o método científico. Ou seja, saímos apenas para o necessário e quando o fazemos usamos máscara, mantemos distanciamento e trabalhamos de forma remota. Ah, e também temos a convicção de que a terra é redonda, que microrganismos são responsáveis pela transmissão de doenças e que o covid-19 não é apenas uma gripezinha. E mais, lamentamos profundamente a perda da vida de milhares de pessoas que poderiam ainda ver o sol raiar e o time do coração ser campeão não fosse o descaso de lideranças que não fazem outra coisa a não ser cuidar dos próprios interesses como se o Estado fosse uma empresa privada. Nada me choca mais do que a banalização da morte. A insensibilidade diante da perda de uma vida é um claro sinal de desumanização. Esse é um claro sintoma de uma patologia que se multiplica em proporção maior que a pandemia.

Os óbitos são contados e equiparados a um tempo que não se mede pelo relógio. A capa da edição impressa da FSP, de 05 de maio, dá a dimensão da tragédia: é uma morte por minuto. E um minuto é muito mais do que 60 segundos quando o mais importante é preservar a vida.

Percebo entre as pessoas próximas como é difícil acreditar nas notícias que a todo instante se contradizem: como voltar às aulas, abrir o comércio e dizer que está tudo bem se diariamente mil e quinhentas pessoas deixam de existir todos os dias. Não é possível chamar a isso de normalidade. É por demais desumano fazer crer que assim é que as coisas são e sempre foram.

Enquanto isso o esporte segue parado, muito embora em algumas regiões a chamada “nova normalidade” leve à abertura de estabelecimentos e espaços onde a produção “não pode parar”. E o recado é claro, se um cair, outro se levantará para ocupar esse lugar. O esporte pode ser muito mais do que isso.

Uma morte por minuto. Como o tempo é valioso quando uma fração de segundo pode levar uma pessoa a entrar para a história. Porque o esporte é assim. Espero que as coisas mudem porque não desejo ver as passadas de Usain Bolt ou as braçadas de Michel Phelps nos 100 metros como referências para contar as perdas do dia. Não vejo nenhum sentido em bater recordes como desses atletas. Nesse campeonato, teria sido uma honra olhar lá da última colocação, do lugar dos derrotados, o resultado dos grandes vencedores e lamentar tantas perdas.