Integra

Estamos assistindo mais uma tentativa americanizada[1] de intervir na educação brasileira a partir da ideologia produtivista na formação superior.
O MEC dá mais uma cartada fulminante na democracia e na pobre autonomia das Universidades Públicas (será que existe alguma autonomia ou universidade pública?) em defesa da qualidade da educação, fundamentando sua ação na inadequada competência do processo seletivo - Vestibular.

Todos nos sabemos que o vestibular é apenas um instrumento de filtragem, seletividade, gargalo de um tipo de sistema educacional que não consegue assegurar o ensino gratuito a todos, que por sua vez, representa as determinações sociais de uma modelo de sociedade que não assegura o direito a distribuição da riqueza material e não-material a todos. Será que focar o problema no vestibular não seria por demais inverter a ordem das coisas já que o caos educacional permeia todo o sistema educacional?. Será mesmo que o vestibular poderia alterar a educação básica que certifica os alunos no ensino médio tornando-os aptos legalmente ao ingresso nas Universidades? Será que o processo seletivo unificado vai propiciar os conhecimentos e as necessárias competências para os estudos posteriores, em qualquer universidade, inclusive nas particulares (ironia do destino) como um direito consolidado ao cidadão-aluno?.

Por que então não se pensar na possibilidade de estabelecer um outro modelo mais justo tendo como principio o direito de todos ao processo de acesso as vagas e a possibilidade de continuidade dos estudos com vistas a formação acadêmico-profissional? Pensar num processo mais justo, mais econômico, mais rápido e menos neoliberal dentro das universidades deveria ser o parâmetro de discussão deste tema juntos aos demais do campo educacional. Como modificar os procedimentos reduzindo custos, desaparecendo as taxas, reduzindo a burocracia, ampliando as vagas e minimizando o efeito psicológico danoso para os indivíduos excluídos?

Não sejamos hipócritas, nós professores das Universidades sabemos muito bem quem são os alunos que chegam do sistema público ou da rede privada nas nossas salas de aulas e qual tem sido o esforço para superar o baixo nível da formação adquirida anteriormente. Os alunos que vem das escolas públicas aprenderam a pensar sobre o que não querem para si, pautados nas experiências e sofrimentos adquiridos em sua vida social, mas apresentam dificuldades de aprendizagem quando se trata de conceitos básicos de química, da física, da biologia e da matemática. Já os alunos que vem do ensino privado sabem bem destas coisas treinadas nos cursinhos (estímulo-resposta) mas não sabem o sentido social delas, não sabem pensar sobre suas relações sociais e, embora saibam falar inglês e nadar em algum clube esportivo, não desenvolveram a capacidade da reflexão criativa e muito menos qual deverá ser o seu papel social. Portanto, o trabalho de f ormação inicial tem sido árduo nos dois sentidos e dependendo da área de conhecimentos um tipo se torna mais fácil para fazer avançar. Uma Universidade que preza pela produção do conhecimento e pelos compromissos com a formação de homens/mulheres conscientes, civilizados e profissionalmente capazes de agir no mundo, objetivando o bem estar do gênero humano, tem dificuldades com os dois tipos e demanda esforços para superar tais deficiências.

Uma coisa parece certa, as áreas que estão vinculadas aos domínios do treinamento condicionante vão preferir os tipos treinados, até porque existem vinculações ideológicas e de interesses de classes na constituição histórica do campo científico e social. Fora deste perfil, aos demais restam apenas o processo de discriminação, de evasão - quando conseguem entrar na graduação e o caminho da profissionalização ou, mesmo, a escolha das áreas ligadas a educação e as ciências humanas e sociais. Por que será?. Ora, a resposta está dada no próprio modelo educacional e social que vivemos, e que reflete na própria proposta do MEC quando apresenta este caminho sem levar em conta o sistema como um todo e a capacidade instalada de cada universidade em dar respostas objetivas em sua realidade local, regional, social. A quem mesmo interessa uma avaliação padronizada e unificada a partir das áreas científicas específicas?

Tenho minhas dúvidas se os cursinhos (apelido dado aos monopólios educacionais lucrativos privados) manifestarão contrariamente a este tipo de vestibular unificado. Claro que não, pois isto gerará empreendimento econômico e a explicitação concorrencial dos monopólios e das organizações empresariais que detem o poder da Educação em todo território nacional, transformando os estudantes "bem nascidos" socialmente em heróis e, os pobres, em fracassados não mais em seus lugares de origem, mas no ranquiamento nacional. Estes derrotados e sem alternativas certamente se deslocarão para a formação/capacitação profissional em plena expansão pelo Governo Federal.

A UNE, por sua vez, parece satisfeita com o processo e, segundo consta, tem legitimado "ingenuamente" tal ação do governo federal. Provavelmente receberá como premio de bom comportamento, uma sede monumental não só para controlar as carteiras de estudantes, mas também o privilégio de divulgar os gênios nacionais e partilhar do cadastro e do controle nacional de matrícula dos alunos. Sem saudosismo, onde estão os estudantes críticos deste País? Onde estão os estudantes combativos? Cadê a prática pensada e a visão crítica do processo educacional como um todo? Diante disto, chego a pensar que a iniciativa privada e a burguesia suburbana apropriaram do movimento estudantil tornando-os legítimos representantes de seus interesses exclusivos e corporativos!. Tô sonhando ou perdi o bonde da História?

Se o MEC pretende mesmo melhorar a Universidade e ensino médio numa relação de qualidade e de continuidade, torna-se necessário pensar que todo o sistema exige mudanças profundas, particularmente no ensino básico (infantil, fundamental e médio). É preciso modificar as condições de trabalho dos professores, implantando o plano de carreira e valorizando à profissão docente; estimular a capacitação continuada dos profissionais da educação; avaliar a realidade social onde se insere cada escola e os determinantes sociais que interferem na qualidade da educação; melhorar e modernizar a estrutura da escola; e, inclusive, destaque-se, falar menos da incompetência dos professores, já que grande parte deles deixam suas famílias passando fome para ensinar os filhos dos demais sujeitos sociais. Hoje, o professor está encurralado pela violência, prisioneiro das doenças psicossomáticas, refém do endividamento cotidiano, vive no nível da subsistência e endividado com aluguel de sua casa. Portanto, estamos tratando de uma profissão cuja representação é a própria imagem da pessoa infeliz (vide exames médicos no que tange as depressões). Esta situação precisa ser modificada e não o tal vestibular, este instrumento embora cruel e maligno, dentro do cenário geral torna-se figura secundária frente às questões sucintamente apresentadas no âmbito da educação e da sociedade.

Será que o MEC perguntou aos seus funcionários, seus intelectuais convidados e alguns reitores de boa fé se a questão do vestibular representaria mesmo os pontos nevrálgicos para melhorar a qualidade da educação brasileira ou se isto seria apenas tocar de leve numa das aberrações ao sistema educacional excludente que nega à todos o direito à educação e a sua progressão nos diferentes níveis?

Todos os pesquisadores da educação sabem que o MEC acumula dados, estabelece diferentes estudos e pesquisas sobre a educação mas, paradoxalmente, todos sabem também que pouco se faz concretamente para amparar o aluno da escola pública no sentido do acesso, de continuar freqüentando a escola e a sala de aula, de alimentação, do apoio para a leitura, de estímulo as diferentes aprendizagens culturais e, de um maior tempo pedagógico visando ampliar sua formação cultural e intelectual.

Por fim, deixemos a vulgaridade de lado, o sistema federal de ensino superior é diferenciado historicamente, as instituições não estão no mesmo patamar de desenvolvimento técnico e científico e nem nas mesmas condições instrumentais ou de equivalência nos recursos humanos. O processo de capacitação docente não segue as mesmas determinações orçamentárias, orientações políticas e decorre das mesmas implicações culturais construídas ao longo da história da educação brasileira. Então, que coisa mais falsa e absurda propor tratamento isonômico (vestibular unificado) a todas as instituições se a realidade é diferenciada, anacrônicas e muitas das vezes absurdas! Será que não estaríamos mais uma vez de frente com um instrumento de controle do Estado para o desenvolvimento de políticas públicas, substituindo a ideia de autonomia das instituições para a concepção de empresa educacional, cuja função é reproduzir o mod elo e concepção do Estado no campo da educação e do controle cultural da sociedade?. Afinal, estamos lidando é com a Universidade Pública ou com a Universidade Estatal?

Parece estranho, mas que os favoráveis deste tipo de avaliação não percebem o que está em jogo não é apenas uma nova aparência (novo ENEM) mas a retirada da função institucional de construir uma entrada de acordo com o perfil acadêmico, social e cultural desejado, enquadrando-as no formato de currículo padronizado nacionalmente em sintonia com a educação básica (currículo nacional). Onde fica a Universidade de produção genuína dos saberes, inovadora de tecnologias, diferente culturalmente, e criativa em razão das necessidades locais/regionais? Aliás, se não me falha a memória, este era o sonho dos militares no golpe de Estado no Brasil algumas décadas atrás.

Para entendermos algumas questões, veja o que vem acontecendo com a pós-graduação,hoje totalmente submetida, controlada e financiada por Instituições externas, com destaque para a CAPES, CNPq, Fundações de Pesquisas, Editais públicos das Estatais e, em certos casos, por organismos multilaterais, portanto, em grande parte desligada das decisões internas da Instituição Universitária. As pesquisas geralmente são induzidas /demandadas/ provocadas por fora, mas que passam a ser produzida pelos pesquisadores universitários. Isto tem agravado substancialmente o processo de estrangulamento da universidade por dentro (guetos de pesquisadores, donos de em linhas de pesquisas, nobres pesquisadores...) e, por fora, os caciques do conhecimento que comandam seus grupos sem nenhuma preocupação com a vida universitária e a graduação (formação inicial). Temos agora a NOVA CAPES, que pretende cuidar da política de formação de professores (co m recursos financeiros e bolsas (PIBID) para alunos) determinando de fora das Universidades o modelo de formação de Professores para o Brasil. E, não se pode esquecer da UAB (dentro da CAPES) com um volume generoso de recursos para fazer a Educação à Distância, também seguindo normas externas e sendo construída por cima da IES, em nome da qualidade produtiva entre as Instituições Federais de Ensino Superior.

Diante deste quadro, onde está mesmo a Instituição Universidade e quais os projetos genuínos de formação de professores, de formação de pesquisadores, de invenções e envolvimento social que materializa o conceito de Universidade (ensino-pesquisa-extensão)? Se os modelos de avaliação (Teste Nacional Padronizado) indicados pelo MEC engessam os currículos da educação básica e das Universidades como formar cidadãos críticos e criativos para agir na sociedade? Será que estamos falando de um outro tipo de cidadão?

Do conjunto de elementos que dispomos parecem-nos que o governo vem mantendo os seus interesses tendo, como perspectiva, a ideia de qualidade total, controle total, avaliação regulatória total e produtividade mercadológica do saber científico e tecnológico (em serie) em alianças com os seus aliados históricos instalados na base social. Nesse sentido, me coloco contra esta proposta e passo a defender - já que precisamos dar uma picada mortal no processo seletivo - o Sorteio das Vagas, pois com esta facada: mato o sistema de cotas de negros, de índios, de pobres, de analfabetos, de estudantes da escola pública, de preguiçosos, de gênios, de mulheres, de estrangeiros. Como conseqüências: democratizaremos o acesso e enfrentamos o processo de formação inicial, como já estamos fazendo a algum tempo na graduação.

Deixando de lado esta proposição justa mais "perigosa", defendemos uma ampla discussão democrática envolvendo a comunidade universitária, o sistema educacional, o governo e sociedade para avaliar/construir os processos avaliativos nacionais. Enquanto isto, inicia-se o investimento buscando a equalização dos problemas de cada instituição no sentido da equidade do sistema, com apoio ao seu desenvolvimento, com investimentos na educação básica e na carreira de professores resgatando, com isto, a dignidade deste importante trabalhador social, responsável pela cultura e pelas ciências nos diferentes níveis do processo educacional.

[1] Este modelo tem aproximação com o que está em funcionamento no EUA.

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