Integra
Teriodicamente, as redes sociais são agitadas por nossa pergunta-título. Não se trata apenas de uma questão terminológica, mas de um entendimento que resvala numa avaliação crítica, minuciosa do que as outras pessoas fazem. Afinal, simplesmente levantar pesos na academia, correr na rua ou fazer algum exercício pode configurar como "treino pago?". E mais especificamente, o quanto contribuem para que uma pessoa alcance seus objetivos?
Como não deixaria de ser, o debate nas redes sociais perde o rumo em direção ao senso comum e ao achismo. Mas o que podemos dizer a partir de uma visão científica, acadêmica? Para responder, é interessante olhar o que significa cada termo. Segundo o Glossário Temático Promoção da Saúde (BRASIL, 2012):
Atividade física
"Movimento corporal que produz gastos de energia acima dos níveis de repouso".
Diz respeito a caminhadas, corridas, práticas esportivas e de lazer e se relaciona com os conceitos de exercício físico e de práticas corporais.
Exercício físico
"É toda atividade física planejada, estruturada e repetitiva que tem por objetivo a melhoria e a manutenção de um ou mais componentes da aptidão física".
Treinamento físico
Como o Glossário não traz este verbete, recorremos a autores da área:
"Processo organizado e sistemático de aperfeiçoamento físico, nos seus aspectos morfológicos e funcionais, impactando diretamente sobre a capacidade de execução de tarefas que envolvam demandas motoras, sejam elas esportivas ou não" (Barbanti, Tricoli, Ugrinowitsch, 2004).
E aí complicou: podemos encontrar tanto em exercício como em treinamento uma estrtuturação/sistematização e um objetivo de mudança. Então qual a diferença?
Treinamento versus exercício
A distinção estaria principalmente na intensidade com a qual estes objetivos, estrutura e intencionalidade se manifestam. Assim, o exercício físico geralmente é associado à melhoria da saúde, energia e bem-estar geral. O aumento do gasto calórico, a melhoria da capacidade cardiovascular e fortalecimento dos músculos podem ser objetivos um pouco mais específicos, em relação a ser simplesmente "fisicamente ativo". Na prática, realizar exercícios físicos pode ser mais ocasional, sem um plano específico.
Já o treinamento físico possui uma sistematização e um planejamento maiores e geralmente está associado com a melhoria de desempenho em determinado esporte. Contudo, o objetivo de um treinamento também pode se limitar a metas específicas de condicionamento físico, como ganho de força, de resistência ou emagrecimento.
Os objetivos, tanto em termos competitivos como de resultados relacionados à saúde ou à estética, são muito bem definidos e mensuráveis. Para isso é necessário uma rotina mais rigorosa e estruturada, frequentemente sob a supervisão de um treinador ou especialista
Para exemplificar:
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Uma pessoa pode decide ir para uma corrida de 30 minutos no parque local para melhorar a saúde cardiovascular.
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A mesma pessoa segue um plano de treinamento de 16 semanas com corridas de distância variada, treinos de velocidade e dias de descanso programados, para realizar o sonho de correr uma maratona.
O primeiro caso é exercício; o segundo é treinamento.
Reforçando, Jonathon Sullivan e Andy Baker autores de um livro sobre treinamento de força que em breve resenharemos aqui, também abordam a diferença:
"No nível mais fundamental, exercício é atividade física. Caminhar é exercício. Yoga é exercício. Limpar a garagem é exercício. Assim como correr, levantar pesos, esgrima, badminton e Pilates. Todas essas atividades são melhores do que ser um sedentário. Mas é evidente que nem todas as formas de exercício são criadas iguais".
E de forma bastante contundente, tomam partido pelo "treinar":
"O cara médio na academia está se exercitando, não treinando. Ele está focado em treinos individuais em vez de explorar cuidadosamente o ciclo Estresse-Recuperação-Adaptação para realmente ficar mais forte. Ele pode se envolver em tal exercício não programado e ineficiente por décadas, desperdiçando seu tempo com uma dedicação admirável, mas trágica, nunca percebendo que o ciclo Estresse-Recuperação-Adaptação sequer existe. Os ganhos de força e massa muscular são mínimos e casuais, se ocorrerem".
Que paulada!
Então como treinar de verdade?
Para responder a esta questão, precisamos olhar mais além das definições para entendermos as características que definem o treinamento físico enquanto processo sistemático de aprimoramento físico.
Para isto, em meio a inúmeras abordagens e definições, vamos utilizar o artigo de Roeschel, Tricoli e Ugrinowitsch, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Segundo os autores, o treinamento físico é composto por quatro áreas principais:
Avaliação
No treinamento é preciso avaliar as capacidades motoras relevantes para cada modalidade esportiva, utilizando métodos válidos e confiáveis. Tecnologias como dinamômetros isocinéticos, plataformas de força e sistemas de análise de movimento para avaliar a força, potência e outros parâmetros são utilizadas numa abordagem voltada para a competição.
Num plano mais próximo do cotidiano, testes de resistência aeróbica e anaeróbica, de força máxima e de flexibilidade são utilizados para estabelecer as métricas iniciais a partir das quais a melhoria será avaliada.
Controle
Com uma rotina mais intensa e sistematizada, é preciso monitorar a carga de treinamento para evitar lesões e overtraining. Os profissionais utilizam diferentes métodos como controle de carga externa e interna, a frequência cardíaca, a percepção subjetiva do esforço e marcadores bioquímicos como o cortisol e a imunogloubolina A (IgA). Na perspectiva amadora, um diário de treino, com o registro de cargas, distâncias ou velocidades exerce esta função.
Aqui é preciso chamar a atenção de que "carga", no contexto técnico, não tem o significado do uso no dia-a-dia, como sinônimo do peso levantado em exercícios de força. Em treinamento físico, "carga" refere-se à quantidade de estresse ou esforço que é colocado sobre o corpo durante o exercício. Ela pode ser ajustada através de diferentes fatores, como a duração e a intensidade em exercícios aeróbicos ou o número de repetições e séries, além do já mencionado peso, na musculação.
Modelos de organização da carga (periodização)
Diferentes modelos de periodização do treinamento são utilizados para organizar o treinamento em períodos ou ciclos específicos ao longo do tempo.
O objetivo é maximizar os ganhos de desempenho e prevenir o excesso de treinamento ao variar sistematicamente a intensidade, volume e tipo de treino. Como requisito, a periodização deve considerar a especificidade da modalidade e a individualidade do atleta.
Desenvolvimento das capacidades motoras
A ciência esportiva desenvolveu métodos e meios de treinamento específicos para o desenvolvimento da flexibilidade, velocidade, força e resistência.
Como exemplo, se o objetivo for desenvolver a velocidade, corridas rápidas e curtas, corridas curtas em subidas, corridas com tração ou com colete de sobrecarga, entre outros podem ser utilizados.
Contudo, é preciso considerar que a resposta de um atleta a um determinado método de treinamento depende de um conjunto de fatores, necessitando portanto dos passos anteriores, de controle e avaliação.
Por fim, não é abordado pelos autores, mas frequentemente o treinamento físico é acompanhado de uma estratégia nutricional específica, alinhada com os objetivos e com a periodização.
Veredito?
Concluindo, de um ponto de vista rigorosamente científico, se você não adota as quatro práticas acima, você não treina realmente, você se exercita. Mas claro que a vida não é feita de brancos e pretos absolutos e, possivelmente, você se encontra num meio termo.
Na atualidade, com a quantidade e qualidade de informação disponível na Internet é comum que as pessoas assumam a própria responsabilidade sobre seu "treino", com diferentes graus de sucesso. Já quem tem a disponibilidade de ter um personal trainer deveria seguir, pelo menos em tese, critérios como controle, avaliação e, de forma desejável, a periodização.
Seja como for, ao colocar em prática estes princípios do treinamento físico seus objetivos serão mais factíveis de serem alcançados. Se você quer realmente evoluir, seja ficando mais forte, definido, magro ou rápido, é preciso "treinar" – não apenas "malhar". E então, sim, você poderá postar nas redes sociais: "treino de hoje pago".
Para saber mais
ROESCHEL, Hamilton; TRICOLI, Valmor; UGRINOWITSCH, Carlos. Treinamento físico: considerações práticas e científicas. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v.25, p.53-65, dez. 2011.