Colegas,
Boa tarde!
Socializo a entrevista concedida a Revista IHU On-line da UNISINOS sobre corpo, gênero e sexualidade na Educação Física escolar, em tempo que indico a leitura das outras entrevistas. O dossiê está bem bom! Vale a pena a leitura!
Abraços,
Priscila Dornelles/UFRB
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Corpo, gênero e corporalidades na Educação Física escolar Priscila Gomes Dornelles explora a necessidade de esta disciplina superar a compreensão binária e heteronormativa nas formas de vida gênero-sexualizadas Por: Márcia Junges e Andriolli Costa
Práticas pedagógicas da Educação Física escolar não se limitam à recreação e ao esporte. Para a professora e pesquisadora Priscila Dornelles, a disciplina está comprometida com a cultura corporal. Esta, formada e conformada por lutas, jogos, ginásticas e danças, é formadora de um sujeito escolar a partir de uma “base gênero-sexualizada do conhecimento”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Dornelles defende que a Educação Física cria uma representação do mundo, do corpo, do gênero e da sexualidade. E pergunta: “Como as práticas pedagógicas desta disciplina contribuem na produção das formas de vida gênero-sexualizadas reconhecidas ou não e posicionadas ou não nos limites do que entendemos por corpo?”. A consciência destes processos, cuja teoria queer vem colaborando para problematizar, pode colaborar para superar a compreensão binária e heteronormativa de gênero.
“Estas perguntas se movimentam na Educação Física quando, por exemplo, há a divisão de meninos e meninas de modo corriqueiro e unicamente nas aulas deste componente e/ou na relocação de um menino supostamente homossexual no grupo das meninas. Isto se dá também na explicação pedagógica de como deve ser o ataque em uma aula de voleibol, onde o professor orienta: ‘Não bate na bola que nem viado’ e/ou, ainda, na naturalização do assédio sexual dos meninos com relação às meninas nas aulas deste componente na escola”.
Priscila Gomes Dornelles é licenciada em Educação Física, especialista em Pedagogias do Corpo e da Saúde, mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Integra o Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero - GEERGE/UFRGS, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Formação de Professores e Educação Física - GEPEFE/UFRB e o Núcleo Gênero, Diversidade e Sexualidade - CAPITU/UFRB. Professora do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), coordena o subprojeto de Educação Física e o programa de extensão "Cultura Corporal em Ação" na mesma instituição. É organizadora dos livros Educação Física e gênero: desafios educacionais (Ijuí: Unijuí, 2013) e O recôncavo baiano sai do armário: universidade, gênero e sexualidade (Cruz das Almas: EdUFRB, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que ordem são os desafios com relação ao debate e à problematização de temas como corpo, gênero e sexualidade na escola hoje?
Priscila Gomes Dornelles - Na esteira das discussões feministas que dialogam com a teoria queer e considerando aproximações com a produção foucaultiana, trabalho com uma concepção de escola como uma instituição moderna atuante nas tramas biopolíticas, mas, também, como espaço de produção de micropolíticas. A escola, deste modo, atua como peça importante na relação entre o Estado e a regulação dos sujeitos sociais. Um dos desafios deste debate é posicioná-la e visibilizá-la como este espaço de produção de políticas de regulação heteronormativas.
Apesar das grandes contribuições das produções acadêmicas nos últimos anos que tomam como foco problematizar o gênero e a sexualidade na escola, ainda é preciso assumir e visibilizar esta instituição nas suas tramas cotidianas de regulação do gênero e da sexualidade. Esta visibilidade se torna importante tanto pelo escape a uma posição da escola como “redentora” do sujeito, concepção que é assumida, principalmente, a partir da influência e da contribuição das teorias críticas no espaço educacional, como por uma possibilidade de produzir micropolíticas de resistência e de alargamento das normas de gênero e sexualidade a partir, principalmente, do pensar a potência no campo do desejo, da criatividade, das possibilidades do corpo.
Outro desafio importante e contundente para a produção destas micropolíticas que tensionam as margens heteronormativas é disputar os modos de conhecer postos em movimento na escola. Judith Butler nos convida a empreender análises sobre os campos de inteligibilidade através dos quais os sujeitos se tornam (im)possíveis e (ir)reconhecíveis. Para esta autora, a relação entre normas de gênero e reconhecimento é potente para problematizarmos os modos de viabilidade do sujeito social. Deste modo, é preciso ainda que se dispute o que conta como conhecimento no currículo escolar de modo a produzirmos outros referentes de corpo, de gênero e de sexualidade que demarquem um campo de possibilidades para os sujeitos escolares.
Isto significa que acredito na ação das suspeitas e das ironias sobre a ação cristalizadora e essencializadora das referências de gênero postas no âmbito curricular escolar, as quais tanto matizam o que é um corpo, num movimento repetitivo, como invisibilizam o caráter ficcional da produção deste corpo que importa. Visibilizar estas normas e, ao mesmo tempo, pautar a potência dos corpos e do desejo é estratégico. Acredito que, no campo das problematizações citadas nesta questão, temos uma “dupla ação” contundente.
IHU On-Line – Suas pesquisas têm articulado os estudos feministas, a teoria queer e os estudos foucaultianos para refletir sobre estes temas. Quais as principais contribuições dessas teorias para o campo da Educação Física?
Priscila Gomes Dornelles - O diálogo e/ou as amarrações que proponho e que são possíveis entre estas perspectivas têm me permitido convocar a Educação Física escolar para uma prática de desconfiança e de análise cotidiana sobre os modos através dos quais esta disciplina regula, organiza e define o que conta como (i)narrável, (in)vivível e (in)concebível em relação aos corpos na escola. As práticas pedagógicas da Educação Física escolar, as quais, em geral e de modo rasteiro são postas como modos de recrear e/ou nos sentidos rasos da recreação e do esporte, estão comprometidas com o trato com um objeto de ensino que é a cultura corporal — conformada por conteúdos como o esporte, as lutas, os jogos, a ginástica, a dança, como expressões mais potentes. O que venho apontando é que, no trato pedagógico com a cultura corporal, a Educação Física escolar também investe no perfazer do sujeito escolar a partir de uma base gênero-sexualizada do conhecimento.
Há, nesta disciplina escolar e no trato com a cultura corporal, a formação e a elegibilidade de uma forma de representar o mundo, o corpo, o gênero, a sexualidade, ou seja, aquilo que conta como humanidade. As provocações queer tentam refutar as políticas de afirmação que funcionam ‘jogando o jogo’ da produção do (não) humano. Mais do que a visibilização e/ou a emancipação de um dos polos oprimidos nesses antagonismos sociais de classe, de raça, de gênero e de sexualidade, por exemplo, considera-se, aqui, a necessidade de perguntar que repertório cultural e que jogos epistemológicos são esses que nos definem pelas contribuições específicas da Educação Física escolar? Que constringem nossos corpos e os tornam (im)possíveis? Que regimes de inteligibilidade, ou melhor, que esquemas históricos gerais são estes que estabelecem âmbitos do que é possível conhecer definindo sentidos sobre o que somos? Como as práticas pedagógicas desta disciplina contribuem na produção das formas de vida gênero-sexualizadas reconhecidas ou não e, com isso, posicionadas ou não nos limites do que entendemos por corpo?
Estas perguntas se movimentam na Educação Física quando, por exemplo, há a divisão de meninos e meninas de modo corriqueiro e unicamente nas aulas deste componente e/ou, ainda a partir desta divisão, na relocação de um menino supostamente homossexual no grupo das meninas. Isto se dá também na explicação pedagógica de como deve ser o ataque em uma aula de voleibol, onde o professor orienta: “Não bate na bola que nem viado” e/ou, ainda, na naturalização do assédio sexual dos meninos com relação às meninas nas aulas deste componente na escola.
Estas situações são contextuais e/ou se apresentam de forma ampliada no cenário da Educação Física escolar brasileira. A partir delas e dialogando com elas, o que os Estudos Feministas que se colocam em diálogo com a teoria queer evidenciam como contribuição para esta área e para esta disciplina escolar, primeiramente, é a afirmação de que a Educação Física escolar atua educando para uma forma de conhecer o gênero e a sexualidade. Em um segundo momento, indico que estas teorizações apresentam a potência das análises complexas ao considerarem as relações contextuais, dependentes e contingentes definidoras e produzidas pelas tramas de saber-poder. Ou seja, afirmações totalizadoras de como tratar as questões de gênero e de sexualidade na Educação Física escolar são tensionadas, em função, inclusive, de uma assunção interseccional das tramas heteronormativas a partir de categorias como gênero, raça, sexualidade, regionalidade, idade, etc.
Seguindo os rastros de Judith Butler em uma entrevista, é possível pensar que a pergunta “‘O que deve ser feito?’ liquida por antecipação todo o problema do contexto e da contingência, e eu realmente acho que as decisões políticas são tomadas naquele momento vivido e não podem ser previstas a partir do nível da teoria” (BELL, 1999, p. 167). Isso significa, em certa medida, potencializar as políticas escolares de contraconduta e de resistência aos modos heteronormativos de produção dos corpos na Educação Física escolar.
IHU On-Line – Você tem analisado como e quais processos de normalização do gênero e da sexualidade são postos em movimento no discurso pedagógico da disciplina de Educação Física. O que isso significa?
Priscila Gomes Dornelles - Primeiramente, como já indicado na questão anterior, significa que a Educação Física escolar faz mais do que educação do gesto motor, uma ação de iniciação esportiva e/ou o trato com os temas da cultura corporal, especificamente com relação a este último, quando o faz. A Educação Física escolar tem investido de forma contundente na proposição e/ou no aperfeiçoamento de práticas pedagógicas que produzem os corpos a partir de políticas próprias no campo do gênero e da sexualidade. Na pesquisa de doutorado que produzi, algumas tramas pedagógicas apontaram para este perfazer heteronormalizador desta disciplina escolar.
A partir das análises que desenvolvi, a categoria sexo é posta como conformadora do conhecimento sobre sexualidade possível nesta disciplina escolar, funcionando como a base conceitual delineadora das ações (hetero)normativas forjadas na escola. Este plano conceitual funciona estrategicamente na escola de forma interdisciplinar, quando o trato com a sexualidade é acionado através da realização de feiras pedagógicas e da apresentação de seminários por parte dos/das discentes. Pautadas pelo exercício político da regulação da vida promovido pelo discurso da saúde e da biologia, estas estratégias pedagógicas são possíveis e atuais em função da força do debate da educação em saúde na escola, o qual é exercido pela disciplina de Educação Física.
As feiras e os seminários voltados para o trato com as temáticas do conhecimento do corpo e da prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e ao HIV/AIDS aparecem como práticas pedagógicas recorrentes na Educação Física escolar no interior baiano, onde realizei a minha pesquisa de doutorado. Contudo, estas e outras práticas desta disciplina com foco nas discussões sobre sexualidade, quando orientadas pelo discurso da saúde e da biologia dos corpos, apontam para um modo de compreensão desta temática apenas como saúde sexual e reprodutiva e/ou, de forma mais incisiva ainda, como prevenção de gravidez e doenças. Desta forma, as práticas-pedagógicas estariam embasadas no enunciado do ‘sexo seguro’ como forma de regular os corpos saudáveis.
Pesquisas
A proposição de uma pesquisa sobre a relação entre a Educação Física escolar e sua atuação heteronormativa é política, pois aponta para esta área de atuação profissional e de produção acadêmica, a sua funcionalidade escolar em regime de silêncio sobre as formas de vida que destoam da heterossexualidade.
Ao engajar-se pedagogicamente no trato com “as doenças que a sexualidade traz”, a Educação Física escolar coloca em movimento uma relação constante entre sexualidade e perigo e/ou entre sexualidade e risco. Ao tempo em que atua pedagogicamente promovendo o trabalho preventivo-biológico na escola, o faz performativamente disciplinando o desejável, no campo das experiências possíveis articuladas em torno do conceito de sexualidade.
Utilizo exemplos da tese que construí, mas poderíamos trazer outros, como a frase já citada por um professor de Educação Física em uma aula de voleibol ao ensinar como atacar nesta modalidade. “Não bate na bola que nem viado!” atua pedagógica e estrategicamente colocando em ação a compulsoriedade da heterossexualidade nesta disciplina escolar. Esta posição se manifesta também, por exemplo, com a presunção de que todos e todas devem aprender, unicamente, um modo de uso da camisinha masculina — em geral, ensaiando a colocação deste preservativo em um objeto fálico (em associação ao pênis), pois parece ser ininteligível propor a apresentação de preservativos (nos modelos feminino e/ou masculino) para as estudantes como essenciais para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis no ato do sexo oral (realizado nas relações entre mulheres e/ou entre homens e mulheres).
Neste sentido, acredito que a normalização operada pela Educação Física escolar atua em contribuição à ideia da produção (educativa) do desejo, conforme aponta Judith Butler (2006). A autora afirma que a sexualidade “se extingue pelas restrições, porém também é mobilizada e incitada pelas restrições ” (2006, p.33). Assim, através de uma pedagogia pautada em discursos preventivo-biológicos, pauta-se a política heteronormativa dos corpos na escola.
IHU On-Line – Especificamente nas aulas de Educação Física, há, em grande medida, a divisão das atividades entre meninos e meninas. Há formas de superar essa divisão? Que prejuízos do ponto de vista da formação integral dos sujeitos tal prática implica?
Priscila Gomes Dornelles - Historicamente, a separação de meninos e meninas nas aulas de Educação Física já esteve amparada legalmente. Especificamente, é possível citar o Decreto nº 69.450 , de 1 de novembro de 1971, o qual regulamentava a sistemática da área Educação Física na educação nacional a partir daquele ano. Além disso, estudiosos/as da área têm tratado da separação em pesquisas acadêmicas buscando evidenciar seu caráter cotidiano, sua funcionalidade pedagógica e sua operacionalização a partir de uma concepção de gênero.
A separação, em geral, é operacionalizada a partir da divisão das turmas escolares em novos grupos de meninos e de meninas apenas para fins de realização das aulas de Educação Física e/ou através da separação que ocorre nas aulas mistas dentro de uma mesma turma. Basicamente, a separação nas aulas funciona com base no sexo e, com isso, tenho discutido como esta ação reifica o funcionamento de uma norma de gênero na Educação Física escolar, pois se constitui a partir de um binarismo masculino-feminino considerado natural nas aulas deste componente. Não é novidade este binarismo ser assumido e empenhado pedagogicamente nas aulas de Educação Física.
A partir de algumas abordagens teóricas, poder-se-ia discutir que as distinções efetuadas com base no sexo binário nas aulas de Educação Física se dão, apenas, para fins de organização das atividades escolares, sem implicações diretas no teor educativo e constitutivo dos sujeitos escolares. Contudo, a partir de uma proposição foucaultiana de análise, a dimensão organizativa é imprescindível ao funcionamento normativo. Desta forma, a organização de atividades com separação de meninos e meninas é constituída por e constitui o sexo como medida para a normalização disciplinar produtiva neste componente curricular escolar. Exemplos desta tentativa de normalização acontecem quando uma prática avaliativa supõe a realização de dez agachamentos para as meninas e quinze apoios para os meninos; e/ou quando conteúdos pedagógicos como o futebol são apresentamos para os meninos e quando conteúdos como o handebol são tratados com as meninas supondo que estas propostas pedagógicas são possíveis e adequadas a partir do seu gênero.
Nestas duas formas de organização pedagógica da Educação Física escolar, há relatos empíricos nos quais meninos supostamente homossexuais são tensionados a realizarem as atividades destinadas às meninas. Percebe-se aí como esta disciplina, ao assumir o conceito de sexo como sistema binário oposicional como base para a utilização da separação nas suas aulas, convoca “normas e convenções que restringem ou cortam as condições de vida ” (BUTLER, 2006, p.23). Opera-se de forma restritiva com a linearidade sexo-gênero-sexualidade — o sexo (macho/fêmea) determinaria, respectivamente, uma identidade de gênero naturalizada (masculinidade ativa/feminilidade passiva) e, consequentemente, o desejo pelo sexo oposto (mulheres/homens). Ao mesmo tempo em que é fundamental compreendermos que existem sujeitos que escapam desta linearidade. Pensar sobre a separação significa pensar sobre a atuação deste componente curricular como generificador e produtor dos corpos. Se não é isso, então por quais razões não separamos com base em outros critérios?
É necessário pontuar que ao propor tais questões não significa que esteja em acordo com propostas pedagógicas para a Educação Física escolar sustentadas no conceito de homogeneidade, muito pelo contrário. Os alunos e alunas de uma mesma escola têm histórias de vida, condições socioeconômicas, experiências motoras, acervo cultural e interesses distintos, portanto, há uma diversidade de modos de ser menino e de ser menina que não pode ser reduzida às diferenças biológicas.
Com relação às possibilidades de trabalho pedagógico que rasurem com estas bases generificadas que produzem a separação nos moldes citados, considero fundamental e possível trabalhar com o reconhecimento das diferenças e das formas de ser sujeito de gênero nas aulas de Educação Física como uma posição política transversal à proposta curricular desta disciplina como modo de potencializar as multiplicidades dos corpos. Na esteira deste desejo, é fundamental problematizar o próprio currículo escolar deste componente para fugirmos de propostas pautadas apenas no trabalho com o “quarteto fantástico” (vôlei, futsal, handebol e basquete) e promovermos, de forma ampla, o trato com o conhecimento relacionado à cultura corporal sistematizado historicamente, pois é potente a multiplicidade de experimentações corporais possíveis nas aulas de Educação Física decorrentes desta concepção curricular.
IHU On-Line – Algumas estudiosas feministas têm afirmado que o futebol, como outros esportes, é uma maquinaria que fabrica gêneros e reforça os lugares do feminino e do masculino? A senhora concorda com isso? Por quê?
Priscila Gomes Dornelles - Não sei se é possível colocar o futebol como uma maquinaria, seguindo os rastros da produção foucaultiana. Prefiro pensá-lo como uma pedagogia cultural potente, quando associado aos modos pelos quais ele se apresenta como esporte de rendimento profissional masculino no Brasil. Refiro-me a este conceito trabalhado pelo Tomaz Tadeu da Silva porque sugiro que esta modalidade, da maneira em que é difundida e vivida no cotidiano, promove esquemas de inteligibilidade e elegibilidade dos corpos que (não) importam, por vezes, colocando em funcionamento racismos, homofobias e sexismo para visibilizar e reverberar algumas posições hierárquicas de sujeito a partir deste/neste contexto específico do esporte.
Com relação ao gênero, me interrogo sobre as categorias de conhecimento assumidas pelas práticas corporais e esportivas para que esta modalidade funcione. Falamos de normas e sujeitos discursivos, de verdades tramadas nas relações de poder, de condições de reconhecimento construídas e pressupostos para a atuação normativa, de corpos “matizados” nas tramas de gênero, e, consequentemente, de vidas hierarquizadas e posicionadas como (in)dizíveis, (im)possíveis e (in)dispensáveis no campo esportivo e na sociedade.
Essa argumentação se dá na medida em que o corpo pode ser compreendido (e é aqui assumido) como efeito dos processos educativos-normativos colocados em movimento também no âmbito das práticas corporais e esportivas, tais como aqueles veiculados nos espaços de prática e de visibilidade do futebol profissional brasileiro, por exemplo. Esta ‘ancoragem’ se articula à introdução do conceito de educação na esteira da proposição elaborada por Dagmar Meyer (2009), ao conceituar educação como “[...] o conjunto de processos através do qual indivíduos são transformados ou se transformam em sujeitos de uma cultura. Tornar-se sujeito de uma cultura envolve um complexo de forças e de processos de aprendizagem que hoje deriva de uma infinidade de instituições e ‘lugares pedagógicos’” (p. 222). No cenário do futebol profissional masculino brasileiro, por exemplo, algumas situações recentes nos dão pistas dos modos de conhecer os corpos difundidos por esta modalidade.
Exemplos
Em maio de 2014, uma assistente de arbitragem de futebol arbitrou um jogo entre Cruzeiro Esporte Clube e Clube Atlético Mineiro pela série A do Campeonato Brasileiro de Futebol masculino. Suas falhas profissionais foram amplamente divulgadas pela imprensa esportiva brasileira, como a não marcação de um pênalti, o qual seria a favor da equipe azul celeste, e ainda o acionamento de um impedimento indevido para a mesma equipe. Após a partida que originou estas falhas, um dirigente do Cruzeiro Esporte Clube afirmou seu incômodo com o resultado do jogo e, também, se referiu aos erros da arbitragem verbalizando a seguinte afirmação em relação à árbitra citada: “Se ela é bonitinha, que vá posar na [revista] Playboy. No futebol tem que ser boa de serviço ”.
Esta enunciação posiciona certa inteligibilidade sobre os corpos (im)possíveis, (in)desejáveis e/ou (in)adequados para o campo esportivo profissional do futebol masculino brasileiro. Apreende-se e matiza-se qual deve ser o grau de atuação/aproximação/funcionalidade deste corpo neste espaço esportivo. Conceitualmente, produz-se um corpo feminino belo que é colocado como superior à qualidade técnica profissional de uma árbitra federada nacionalmente. Refiro-me às normas de gênero que esgarçam, afastam, dissociam as possibilidades de reconhecimento deste sujeito mulher no espaço profissional da arbitragem, prioritariamente, na sua atuação junto ao futebol masculino de rendimento.
Um gênero binário atuante nesta prática esportiva que se constitui evocando uma masculinidade ativa, viril, heterossexual e autorizada a manifestar os seus ‘instintos sexuais’ publicamente como estilos generificados próprios aos corpos “naturais” desta modalidade esportiva — ou seja, os corpos masculinos. Ao mesmo tempo, um corpo é qualificado/posicionado mais como objeto do desejo heterossexual masculino do que como uma possibilidade profissional reconhecida neste contexto.
Além desta situação, utilizada apenas como exemplo para pensarmos, as injúrias homofóbicas e racistas também parecem ocupar os cenários do futebol profissional masculino brasileiro de forma amalgamada à sua prática. “Juiz, viado!” é uma enunciação corriqueira. É fácil e comum nos estádios a referência ao nome de qualquer jogador, técnico e/ou dirigente que desagrade à torcida também utilizando a mesma potente frase. Não se estranha esta atuação (de gênero) dos/das torcedores/as, inclusive, estas manifestações são ensinadas, sem qualquer questionamento, aos/às torcedores/as infantis.
Essas expressões performativas “repete[m] como um eco outras ações anteriores e acumula[m] a força da autoridade através da repetição ou da citação de um conjunto anterior de práticas autorizantes” (BUTLER, 1993, p. 226-227). É importante aqui considerar que as manifestações das torcidas em estádios de futebol não estão alheias aos movimentos sociais cotidianos de constituição dos corpos, pois as mesmas são compostas por e compõem os esquemas de inteligibilidade que regem as práticas normativas e definem os limites do pensável, do possível e do humano com relação aos corpos na contemporaneidade. Neste espaço, recitam-se normas a partir dos “limites das ontologias acessíveis, dos esquemas de inteligibilidade disponíveis” (ibidem, p. 224).
A vida social é atravessada pelo campo esportivo e vice-versa. Os modos de generifcar se aproximam e se utilizam estratégias semelhantes. Um dos meios de constituição desta posição identitária posicionada como referência no futebol profissional se dá pela oposição. Ou seja, através da narração generificante constituída sobre aquele corpo que deve ser o seu distinto e o seu avesso. Neste movimento, tanto uma feminilidade é reificada pela exaltação da mulher bela em tramas discursivas que têm como foco a atuação profissional no campo esportivo, como as experiências da sexualidade que divergem da heterossexualidade padrão são colocadas em evidência no esporte.
Colocar em questão estas bases conceituais que constringem os corpos nas tramas do gênero e visibilizar esses processos educativos-normativos propostos pelo futebol profissional masculino brasileiro significa, também, uma possibilidade de tensionar seus pressupostos e, ao mesmo tempo, pautar politicamente a possibilidade de que outros modos de descrição entremeados às estruturas de poder, principalmente quando nos referimos às práticas esportivas supostamente reguladas pela ideia de democracia, de igualdade de condições, de fair-play e/ou de união entre os povos e praticantes, de representação nacional/regional, de referência esportiva no cenário brasileiro.
IHU On-Line – Diante de tais complexidades, como podemos pensar em uma postura ética mais alinhada aos desafios de nossas sociedades contemporâneas?
Priscila Gomes Dornelles - Acredito que os desejos, a potência, os rumos de estudo e de ação acadêmico-profissional deveriam visar a problematização dos modos de constituição dos sujeitos na contemporaneidade. Investir em análises políticas sobre o ‘como’ da produção do sujeito pode ser um caminho estratégico para dialogarmos com os nossos fascismos e para visibilizarmos questões da atualidade.
Deste modo, compreender os modos de reconhecimento dos corpos postos em ação pela norma pode nos permitir produzir práticas, inclusive na relação consigo, que coloquem em disputa categorias de conhecimento que funcionam conformando o que conta como vida vivível. Visibilizar as tramas normativas é, seguindo as provocações de François Ewald , (2000), perguntar-se sobre a noção de democracia. Este movimento político e analítico pode significar mudanças nos nossos próprios projetos de vida e, consequentemente, em modificações na relação consigo. ■
Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5883&secao=463
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