Cevnautas, a vida de muitos de nós foi melhor porque pudemos ver, ouvir e ler o Dr Sócrates. Este foi um dos últimos artigos que ele escreveu como colunista da Carta Capital. O título é um bom epitáfio.

A arte do futebol, à vista de todos

“O futebol arte acabou.” Esta frase ecoa nos ares brasileiros sempre que perdemos. Não por outro motivo, um dos maiores jogadores de todos os tempos – Cruyff – reclamou que não levamos o nosso futebol à África do Sul na última Copa. Para mim, a frase “O futebol arte acabou” tem cheiro de blasfêmia, que bem que poderia ter se originado- dos rincões onde jogar esse esporte, muito mais que um esforço desperdiçado, é puro desencanto. Nunca emitida por um dos nossos.

Arte para o futebol jamais é adjetivo; é a sua essência. A beleza intrínseca do movimento e da harmonia é meio ideal de cultura para a alegria e a criatividade. E quem, neste mundo, apresenta com tanta clareza tais qualidades?

Um povo historicamente esmagado pela colonização, que insiste em se fazer viva, explorado e excluído em sua imensa maioria e que permanece com os queixos elevados e com a esperança intocável, é de se admirar. E só conseguiu atingir essa capacidade de sobrevivência por suas incomparáveis características. Quando qualquer de nós se aproxima de alguma forma de expressão artística é que podemos perceber a sensibilidade que exala de cada poro. Como podemos explicar que cá por estas bandas surgissem tantas genialidades sem que, em sua maioria, tenham tido quaisquer facilidades para seus ofícios? Em tantas áreas poderíamos desfilar um sem-número de figuras excepcionais que se destac(ar)am por suas criações e capacidades. No esporte não é diferente.

Do bando de desnutridos que somos nasceram Ademar Ferreira da Silva e João do Pulo. Mesmo com a falta de piscinas, tivemos Manoel dos Santos, Ricardo Prado, Gustavo Borges e esse excepcional Cesar Cielo. Raquetes, tão raras por aqui, nos deram Maria Esther Bueno, Thomaz Koch e um tal de Guga. Assim, poderíamos ficar horas a desfilar as incoerências da realidade que vivemos. E nada mais real que o nosso futebol. Nossa plena expressão social e nosso maior agregador cultural foram postos em um lugar bem especial por todos os apreciadores desse esporte exatamente por nossas especialidades: espontaneidade, dom, criatividade, alegria e habilidade. Isto é que determina o que é arte! E arte de qualidade ímpar. Não é à toa que nossos maiores jogadores desfilam seus dotes espalhados por todo o planeta.

Porém, quando escolhemos para fazer parte de uma equipe alguém que possui como conteúdo filosófico a destruição do jogo, não estamos percebendo nada de positivo nessa atitude. E as consequências são funestas. Essa opção torna o jogo feio, truncado, faltoso, de poucos gols e muitas vezes irritante. Para evitar esse processo, só mudando a estrutura desse esporte. Pelo menos, essa é a minha impressão. E os exemplos estão aí para compararmos. Quem assistiu ao clássico entre São Paulo e Corinthians no último fim de semana pôde ver o centésimo gol do goleiro do tricolor e mais: um espetáculo de futebol nos últimos minutos, quando três atletas haviam sido expulsos, restando 19 em campo. Antes disso, aquilo que estamos cansados de ver: muita correria, pouca técnica, times sem desenvoltura, violência, agressões, discussões e pouco, muito pouco futebol. Já quando tínhamos poucos em campo: liberdade, movimentação, muitos lances que facilmente poderiam ter se tornado gols e euforia, participação, ansiedade e entusiasmo dos torcedores.

Quem, no mesmo dia, acordou mais cedo para acompanhar a Seleção Brasileira pôde, por outro ângulo, perceber o que quero dizer: contra uma equipe de baixíssima qualidade vencemos por apenas 2 a 0, quando pela diferença de técnica deveríamos ganhar de 6, de 7 ou mais. Com os jogadores que temos, encontrando mais espaços para driblar, pensar e criar, todas as partidas seriam mais belas, mais empolgantes, um êxtase aos olhos e ao coração. Todos os jogos poderiam nos levar à Gioconda ou à Venus de Milo. Todos os gestos esportivos seriam motivos para obras de Picasso, Renoir e outros gênios.

O que é melhor?

Não, a arte não acabou. Está mais viva do que nunca. O que nos falta é competência para percebermos que isto é um espetáculo e deve ser tratado como tal. Quando propomos um futebol de resultados, estamos querendo a dança sem leveza, o canto sem coração, a interpretação sem técnica. E só o faz dessa forma quem não conhece e respeita a beleza de qualquer expressão artística. Quem não possui o dom e a sensibilidade deve consumir a arte de outrem, não renegá-la. Que se resgate então aquilo que de mais belo o futebol pode nos oferecer.

FONTE: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-arte-do-futebol-a-vista-de-todos/?autor=20

Comentários

Por Edison Yamazaki
em 16 de Maio de 2012 às 03:02.

O meu inconformismo com o pensamento  sobre o que é o futebol e os atuais métodos de treinamentos me fizeram questionar muitas coisas, aqui mesmo no CEV. De uma certa maneira, muito longe ainda, a seleção japonesa de futebol feminino mostra um pouco do futebol arte, do futebol espetáculo. Para vencer o avantajado porte físico de americanas, alemães e suecas, as nipônicas lançam, driblam, se deslocam e pensam numa maneira de vencer. Acho que examente o que fazíamos quando moleques, eu e meus amigos do Butantã.

Nas circunstâncias atuais, não acredito numa melhora técnica e tática do futebol brasileiro. Acho até que muitos dos profissionais envolvidos (principalmente preparadores físicos) no futebol não possuem a filosofia de tentar vencer jogando bem. É o futebol de resultados implantado lá pelos anos de 74, quando a seleção tentou imitar os europeus na forma de prepraração.

De lá para cá, tivemos alguns professores de Ed.Física no comando da seleção (Claudio Coutinho em 78, Lazzaroni em 90, Parreira em 94, 06 e agora Mano Menezes). Apesar do penta, a força física segue vencendo.


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