Carta aos jovens pesquisadores:
o perigo de conhecer nossos ídolos científicos
“A melhor forma de um torcedor apaixonado por futebol seguir sempre apaixonado pelo seu clube é nunca conhecer a realidade do dia-a-dia do futebol, pois, se conhecer, corre o risco de perder a paixão”.
Como vários jovens, o momento de escolha do curso para o qual eu prestaria concurso vestibular foi cercado de incertezas. Escolher uma profissão que me acompanharia para o resto da vida não era uma tarefa fácil aos 16 anos de idade. Depois de pensar por um tempo, minha dúvida ficou restrita a apenas dois cursos: Jornalismo ou Educação Física. Por vários motivos, inclusive a existência do curso na Universidade Federal da minha cidade, acabei optando pela Educação Física. Não poderia ter feito escolha melhor; sou apaixonado pela minha profissão.
Ao longo da faculdade, ainda jovem, fui tendo contato com livros, artigos e seus autores, os quais começaram a se tornar meus ídolos científicos. Não conhecia nenhum deles pessoalmente, e ainda não tinha sequer decidido qual subárea da Educação Física eu seguiria, mas fui me acostumando a ouvir os nomes dessas pessoas e imaginar como eles eram pessoalmente. Era uma relação típica de fã e ídolos. Queria ligar os nomes com os rostos. Queria conhecer as pessoas que tinham me inspirado dentro da área. Queria dar uma imagem aos nomes que me acompanhavam no dia-a-dia da faculdade.
Com os primeiros congressos, vieram os primeiros encontros. Sempre que um dos meus ídolos científicos ia palestrar, lá estava eu na plateia, pronto para ouvir sua fala. Não importava se o tema era fisiologia do exercício, pedagogia do esporte, aprendizagem motora, Educação Física escolar, atividade física relacionada à saúde ou outro. Importava era o nome do palestrante.
Com a evolução na carreira (e na idade), os ídolos foram se tornando meus colegas, pois ingressei na carreira de professor universitário após concluir meus estudos de pós-graduação. O interessante é que mesmo que os ídolos tenham virado colegas, eles continuaram sendo meus ídolos científicos.
No entanto, chegou o momento em que tive a obrigação de fazer uma nova escolha, dessa vez, a subárea da Educação Física que eu seguiria em nível de pesquisa e pós-graduação. Optei pela área de atividade física relacionada à saúde, tendo como principal ferramenta de pesquisa o método epidemiológico. Nunca imaginei que tal opção incomodaria tanto alguns dos meus ídolos científicos (e outros colegas também). Apesar de a área de atividade física relacionada à saúde ser uma das mais frequentes nos cursos de pós-graduação da nossa área e de ser extremamente valorizada pela sociedade, comecei a ser tratado por alguns como um intruso. Por mais que a epidemiologia seja uma ciência que possui um forte enfoque metodológico, podendo perfeitamente ser aplicada à área de atividade física relacionada à saúde, parecia que eu era um alienígena. Alguns criticavam tanto, sem conhecer a situação (talvez a pesquisa não seja o forte dessas pessoas), que não sabiam sequer que a minha graduação era Licenciatura Plena em Educação Física.
Passei a ser assunto (exemplo negativo) em fóruns nos quais eu não estava sequer presente para me defender. Fui acusado publicamente de ter publicado um artigo científico no periódico The Lancet: “Agora tem esse rapaz que publica um artigo como sétimo autor numa revista com índice de impacto de 30 e polui o Qualis da área”. Não foram raros também os comentários: “Temos que preservar a identidade epistemológica da Educação Física e não podemos aceitar que intrusos como esses da epidemiologia descaracterizem a área”.
Gostaria ao menos que os meus ídolos científicos tivessem discutido suas opiniões com o alvo das críticas. Se isso tivesse sido feito, eu poderia ter explicado a eles que o meu principal objeto de estudo na área da saúde é a prática de atividade física. Poderia ter dito que eu utilizo o método epidemiológico prioritariamente para responder questões relevantes para a área da Educação Física. Poderia até ter dito (como já disse) que a fatia da minha produção que tem pouco vínculo com a Educação Física* poderia ser descontada em qualquer avaliação de produtividade. Poderia ter dito que eu não estava competindo com ninguém, e que, por favor, parassem de me tratar como inimigo.
Gostaria que ao contrário do linchamento público, essas pessoas tivessem optado pelo diálogo. Gostaria muito que tivessem conversado comigo e me dado dicas, e não atirado pedras. Pois é isso que esperamos de nossos ídolos científicos e de nossos colegas. Sempre imaginei que os meus ídolos científicos seriam receptivos à chegada de novos membros na comunidade da Educação Física. Jamais pensaria que alguns fossem tentar, com muita força, fechar as portas da área para os colegas que estavam chegando.
* Minha formação epidemiológica e estatística me permite envolvimento em projetos de pesquisa que nem sempre tem relação direta com a área de Educação Física. Por exemplo, como um dos coordenadores de um estudo de coorte no qual acompanhamos pessoas desde o seu nascimento, acabo publicando alguns artigos em outras áreas do conhecimento. Também atuei em outros projetos, enquanto aluno de doutorado e pós-doutorado, em funções relacionadas à análise de dados.
É claro que apenas alguns dos meus ídolos científicos tiveram esse comportamento decepcionante. Nomes como Kokubun, Goellner, Nahas, Gaya, Matsudo, Nascimento, Guedes, entre diversos outros, honraram (e honram até hoje) a condição de meus ídolos científicos. São pessoas que nunca me trataram como um intruso, muito menos como uma ameaça, mas sim como um colega. Um colega que comete erros e acertos, como qualquer outro. Um colega que precisa de dicas, e não de pedras, para evoluir.
Talvez aqueles que manifestaram publicamente sua ignorância sobre o trabalho que realizo, hoje fiquem confusos ao verem que o mesmo periódico The Lancet acaba de publicar uma série de artigos sobre o tema “Atividade Física”, indubitavelmente relevante para a Educação Física. Inúmeras vezes, eu e meus colegas de área, recebemos (e continuamos recebendo) indeferimentos em projetos submetidos ao principal órgão de fomento do país em situações estranhas, seja por desconhecimento do trabalho que realizamos, ou qualquer outro motivo menos nobre. Certa vez um projeto que tinha a palavra Educação Física desde o título recebeu o parecer: “Este projeto se encaixaria melhor no comitê de Saúde Coletiva”. Com certeza essas fronteiras artificiais não são tão rígidas como essas pessoas pensam. Talvez os conceitos de “contrabandista do saber”, “interdisciplinaridade”, “transdisciplinaridade” e outros sejam mais bonitos na teoria do que na prática para essas pessoas.
Com tudo isso, vários colegas me perguntaram, e continuam perguntando, o que eu ainda faço numa área que tem alguns pesquisadores sênior, que deveriam ter postura de ídolo, tentando desesperadamente manter seu status por meio da desvalorização do trabalho dos outros, ao invés de qualificarem seu próprio trabalho. A resposta é simples: quero que os jovens pesquisadores da área de Educação Física não enfrentem essas mesmas barreiras para crescerem em suas carreiras. Quero que a transição de aluno para colega seja suave, e não truculenta. Quero que os jovens pesquisadores da área sejam recebidos de braços abertos, e não com pedras, pois só assim a área poderá crescer. Por fim, quero que os tais ídolos tenham uma postura compatível com esse status, pois ser ídolo científico das novas gerações numa área do conhecimento é uma responsabilidade que nem todos estão prontos para assumir.
Pedro C Hallal
Universidade Federal de Pelotas
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