Cevnautas, colo aqui a nota do Blog da Katia Rúbio. Por causa do assunto e pra agradecer o empenho dela em sempre mandar informação pra nós 32 mil(32.226 hoje) do CEV de onde estiver. Esse bom exemplo ainda vai pegar! Podemos também assumir a generosidade comentando & rebarbando & ampliando a nota aqui na comunidade ou no Blog da Kátia Rubio. Laércio
Olímpico como substantivoHá coisas do passado que não gosto de remoer porque parece mágoa, ressentimento, conteúdo mal elaborado, diria algum psicólogo mais clínico. Mas, fosse assim tão fácil lidar com isso não haveria a necessidade de a Psicologia existir, afinal, bastaria apertar a tecla “esquece” e tudo estaria resolvido. Freud foi um exímio arqueólogo do passado pessoal e para isso desenvolveu o conceito de inconsciente, dizendo que as coisas de nossa vida, queiramos ou não ficam lá registradas. Algumas escondidas dentro de caixas, no fundo de prateleiras empoeiradas, mas basta uma fresta de luz, ou uma lufada de ar fresco, para que elas escapem, pulem sobre nós e nos façam reviver coisas passadas como se tivessem acabado de ocorrer.
Estou em Atenas, voltando para casa depois de 9 dias na Academia Olímpica Internacional, em Olímpia, berço dos Jogos Olímpicos da Antiguidade. Fiquei lá todos esses dias dando aulas a 30 estudantes de diferentes partes do mundo em um curso de pós-graduação em estudos olímpicos. Sou muito grata ao Prof. Dr. Constantino Georgiadis pelo convite e pela oportunidade de trocar experiências, afinal além de poder mostrar aquilo que fazemos no Brasil pude receber informações sobre o que anda acontecendo pelos quatro cantos desse mundo de meu deus.
Observei como o tema educação olímpica voltava às nossas discussões mesmo que a questão central não fosse essa. Em diversos países esse tópico é tratado de maneira central por professores de diferentes níveis de ensino, seja o país postulante a sede olímpica ou não. O próprio Prof. Kostas participou ativamente de um programa desses durante os anos que antecederam os Jogos de Atenas, em 2004, e viu com muito bons olhos o que estamos fazendo na cidade de São Paulo, por conta do entusiasmo e dedicação da Profa. Maria Alice Zimmermann, na Secretaria de Educação do Município. Tema fácil de ser defendido, mas de difícil execução pela falta de apoio público, a educação olímpica vai além do entendimento da competição olímpica em si. Ela trata obviamente de valores humanos de forma geral. Valores esses fundamentais na condução das questões da convivência humana realizada em sociedade. Ou seja, mais que um adjetivo que qualifica a educação, olímpico é um substantivo concreto para quem não toma os Jogos Olímpicos como a única razão de ser do Olimpismo.
Não vou entrar na esfera da origem e organização desse fenômeno no mundo contemporâneo marcadas pela influência aristocrática e burguesa de uma Europa que se imaginava o centro do mundo. Falo de um valor arquetípico que faz disparar o coração de minha amiga costarriquenha Laura Moreira León, que está também em Olímpia por essas semanas fazendo seu máster em estudos olímpicos, quando ficou perfilada para correr a distância do Stadio, no Estádio olímpico, por sugestão do professor que estava dando aulas sobre os JO da Antiguidade. É assim mesmo que nós que lidamos com esse tema, por ver nele uma ferramenta de desenvolvimento humano, nos sentimos quando nos vimos frente a frente com situações que confundem história e mitologia. Não é raro nos perguntarmos se estamos frente a uma ficção ou a fatos tão heroicos que parecem impossíveis a simples humanos.
Porém, a apropriação que foi feita desse tema ao longo do século XX fez dele um simulacro, como diria o sociólogo Jean Baudrillard. Destituído de seus valores sobrou aos Jogos Olímpicos apenas sua face espetacular, geradora de vultosos dividendos depois de transformado em um dos maiores negócios do planeta. Capaz de arrastar milhares de pessoas a estádios e colar nas poltronas, cadeiras e sofás milhões de humanos ao redor do planeta por causa dos feitos heroicos dos atletas olímpicos esse espetáculo grandioso foi sendo destituído de sentido sagrado, como o era na Antiguidade.
Como negócio passou a ser regido pelas mesmas regras usadas no mundo corporativo: a concorrência desleal, a vitória a qualquer preço, a competição não com o princípio “altius, citius e fortius”, mas a lei da vantagem competitiva, desleal por excelência. Valores opostos aos olímpicos! É assim que os Jogos Olímpicos passaram a ser tratados depois que se percebeu que eles poderiam ser um grande negócio. E como a inteligência social é rara no mundo onde o dinheiro é o motor da existência, o abismo entre a celebração e o negócio olímpico fica mais profundo a cada quatro anos. As cifras para a sua realização se multiplicam, empurrando países como a Grécia, para a beira do abismo, ou o Brasil para um thriller que mistura terror e ação.
Falo da notícia recente sobre a cópia, não autorizada de documentos do comitê organizador dos Jogos de Londres por parte de brasileiros autorizados a fazer a “transição” de 2012 para 2016. A perplexidade que me tomou talvez possa ser explicada pelo fato de toda a contaminação que sofri nesses últimos dias pelo chamado “espírito olímpico”. Não sou daquela turma que diz “faça o que digo, mas não faça o que faço”. Embora humana, e passível de erro, portanto, busco a coerência na relação teoria ação, talvez tomada pela mimese que marcou minha vida a partir dos grandes educadores que tive. Custei a acreditar no que li porque não falamos apenas do crime de pirataria, tão banalizado no contemporâneo. Relacionei isso com o que faço quando encontro textos e slides que apresentei serem usados por aí sem que a devida referência seja feita a mim. E o pior, as vezes sou convidada para as bancas que julgam esse trabalho numa prova total de insensatez da parte de quem comete o plágio ou a pirataria de maneira mais refinada (como por exemplo são tomadas as ideias centrais do texto sem a devida referência). Mas, isso é uma baby manjuba diante da baleia azul fisgada em Londres. Prova maior da falta de assimilação de valores humanos, e não apenas olímpicos, de quem estava lá, como representantes dos Jogos do Rio de Janeiro, e, portanto, do Brasil, foi o uso de uma prática comum do mundo corporativo que é a pirataria, ou em última instância, a espionagem.
Discutimos em Olímpia as dificuldades que nós pesquisadores dos estudos olímpicos temos na atualidade em divulgar e ensinar sobre o tema olímpico por resvalar em questões ideológicas, confundindo focinho de porco com tomada. Explico. Diante da complexidade do “negócio olímpico” é cada vez mais difícil desvincular o processo de realização dos Jogos da corrupção, do desrespeito, do abuso de poder, situações que distanciam a sociedade da celebração contínua que essa competição deveria incentivar.
E é por isso que hoje, depois de ler as notícias durante meu café da manhã solitário no hotel em Atenas, me vieram não apenas as lembranças, mas toda a agonia que vivi em janeiro de 2010 quando fui intimada a recolher meu livro Esporte, educação e valores olímpicos sob pena de multa ou prisão, por usar “sem permissão” a palavra olímpicos, tomada naquele instante como de propriedade do Comitê Olímpico Brasileiro. Por mais que eu tente deixar isso como um ponto na minha história digno de nota, mas não de orgulho, ele está lá latente, pronto a me lembrar que o desfecho poderia ter sido outro, não fosse a colaboração e pressão de pessoas combativas tanto no Brasil como no exterior.
Lamento que muitos dos envolvidos como o grande negócio “Jogos Olímpicos Rio 2016” não tenham a menor ideia do que seja valores olímpicos, educação olímpica, não saibam nada sobre o que tenha sido os Jogos na Antiguidade e o que levou à sua derrocada, como essa competição deixou de ser um encontro de aficionados para se tornar em uma transação financeira planetária. Vejo que muitos dos erros que levaram à ruina dos JO no passado se repetem 2 mil anos depois sem que seus organizadores se deem conta disso. E agindo como crianças mal educadas, alguns brasileiros iludidos com a impunidade que seus cargos lhe conferem, fazem traquinagens expondo não apenas para a comunidade olímpica, as mazelas de uma sociedade acostumada ao “deixa disso”.
E como já dizia Abraham Lincoln: “Podeis enganar toda a gente durante um certo tempo; podeis mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não vos será possível enganar toda a gente durante todo o tempo.”
fonte: http://blog.cev.org.br/katiarubio/2012/olimpico-como-substantivo/
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