04/01/2016
Por Jorge Knijnik
(com uma pequena homenagem ao Cleiton)
Foi na noite de 16 de novembro de 2005. Aquilo que tantos sonhavam, mas ao mesmo tempo consideravam impossível, finalmente aconteceu: liderados pelo “super-tecnico” holandês Guus Hiddink, os Socceroos (a seleção australiana masculina de futebol) conseguiram o que naquela época seria a sua segunda participação na fase final da Copa do Mundo, a ser disputada em 2006 na Alemanha.
Segundo Simon Hill, um comentarista de futebol da TV local, foi uma das “mais longas e doloridas sagas esportivas da historia do esporte australiano”. Depois de mais de três décadas– os Socceroos só haviam participado uma vez da fase final do torneio na Holanda, em 1974 – eis que a espera chegava ao fim. A “geração de ouro” do futebol australiano enfim conseguia o que muitas antes tentaram, mas falharam: chegar novamente à fase final da Copa!
Aquilo que para a Seleção brasileira é considerado uma mera obrigação – passar pelas eliminatórias e conseguir a vaga na Copa – para muitos países é uma conquista muito valorizada. No mais das vezes, esta vitória vem com muito sangue, suor e lagrimas também.
Foi assim em 2005, quando os Socceroos ainda estavam filiados a Confederação de Futebol da Oceania. Pelo sistema de eliminatórias da FIFA, o campeão da disputa na Oceania não garante a vaga diretamente: ainda tem que disputar uma repescagem com jogos de ida e volta com o quinto colocado das eliminatórias Sul-Americanas para ver quem chega à fase final da Copa. Jogo duro.
Os Socceroos já haviam jogado esta repescagem em anos anteriores, como em 1993 quando disputaram a vaga contra a Argentina, que contava com ninguém menos que Dieguito Maradona: o lugar na Copa escorreu das mãos australianas com um empate em Sydney por 1×1, seguido de uma derrota em Buenos Aires (na qual certamente os Socceroos ficaram ‘levemente’ intimidados com a torcida local) por 1×0. Ou mesmo na tentativa de ir a Copa de 2002, quando os australianos, já então hegemônicos na Confederação da Oceania, foram à repescagem com o Uruguai: apesar de já possuírem algum respeito no cenário internacional – afinal, além da histórica goleada por 31×0 contra a Samoa Americana durante as eliminatórias da Oceania (quando Archie Thompson fez 13 gols, estabelecendo um recorde de artilharia em eventos da Copa que dura ate hoje), em 2001 os Socceroos haviam conquistado o terceiro lugar da Copa das Confederações, ao derrotarem por 1×0 a Seleção Brasileira – os australianos não aguentaram a pressão uruguaia e, após ganharem em casa por 1×0, perderam no estádio Centenário de Montevidéu por 3×0, sofrendo dois gols seguidos nos momentos finais do jogo.
Em 2005, entretanto, tudo parecia diferente. O futebol australiano estava se reestruturando a passos largos: primeiro, suas federações, associações e clubes pararam de usar “soccer” e assumiram oficialmente o uso de “football” (ironicamente, o único remanescente do período “soccer” é justamente o apelido da seleção); a liga nacional profissional de futebol (A-League) estava em seu primeiro ano de existência; mais ainda, como prova da sua crescente influencia politica e futebolística, após anos de muita insistência, a partir de 2006 o futebol australiano se mudaria da Confederação da Oceania e passaria a integrar a Confederação Asiática de Futebol, uma região na qual o futebol é muito maior, há mais times (alguns milionários como os chineses e árabes), competições mais importantes, e mais vagas para a Copa. Por fim, havia a “geração de ouro” do futebol local, com atletas como o zagueiro Lucas Neill, o goleiraço Mark Schwarzer, o meia-atacante Harry Kewell e o artilheiro Tim Cahill, todos já fazendo um bom sucesso em clubes europeus de primeira linha.
Mas faltava aquela vaguinha na Copa… E ela veio, depois de uma disputa de pênaltis que parou o coração do pais; mas sobretudo após uma repescagem internacional na qual os lances extracampo se mostrarem tão ou mais importantes que as táticas, defesas e chutes a gol dos jogadores. Para os Socceroos, a experiência e a malandragem do técnico Guus foram essenciais no caminho desta classificação.
Já havia uma historia de “sangue ruim” entre as duas equipes. No inicio da década de 1970, os uruguaios vieram jogar em Sydney, e o pau comeu, os sul-americanos bateram muito, houve ate jogador australiano que nunca mais pode jogar depois das contusões que sofreu. As manchetes dos jornais locais salientaram o “banho de sangue futebolístico” ocorrido naquele jogo.
Na repescagem de 2001, a coisa também não foi fácil: o primeiro jogo em Melbourne terminou 1×0 para os australianos, e logo em seguida as equipes viajaram simultaneamente com destino a Montevidéu, para a disputa da segunda partida. Ao se encontrarem na escala em Auckland (Nova Zelândia), alguns jogadores australianos estranharam “o relaxamento e a segurança” que os uruguaios aparentavam. Depois eles perceberam que os nuestros hermanos sabiam o que aguardava os Socceroos no Uruguai: horas para desembarcar no aeroporto, mais uma grande demora na alfandega, com uma revista minuciosa e lenta em todas as bagagens australianas; na saída do aeroporto para o ônibus, centenas de pessoas xingando, cuspindo e agredindo a delegação visitante. A intimidação continuou nas ruas, no hotel e no estádio lotado com 60.000 uruguaios fanáticos, gritando suas almas pelo seu time. Os Socceroos, desacostumados com a atmosfera, foram presa fácil para a “raça” uruguaia. Outra vez fora da Copa.
Em 2005, entretanto, tudo foi diferente. O holandês Guss (técnico “macaco velho”, com o qual a Coreia do Sul chegou ao quarto lugar na Copa de 2002 e que ha poucos meses, ao final de 2015, assumiu o Chelsea na English Premier League, apos a queda do portugues Jose Mourinho), estudou bem a historia desta repescagem e preparou o esquema: havia um ônibus para pegar o time australiano diretamente na pista do aeroporto de Montevidéu, evitando assim tanto a espera na alfandega como as agressões de torcedores nas ruas. Em um jogo equilibrado, o Uruguai fez 1×0 em casa, deixando a decisão para o jogo de volta, desta vez em Sydney. Entretanto, as viagens que ambos os times fizeram para a Austrália foram talvez mais decisivas que o jogo em si.
Enquanto os Socceroos voltavam em um jatinho privado, com direito a cama, classe executiva, tratamento fisioterápico e massagens, a Celeste fazia um trajeto complicado, com a delegação viajando em voos separados e todos apertados nas classes econômicas da vida.
Diferença de orçamentos das federações? Injustiça social? Não, apenas malandragem. O técnico dos Socceroos aplicou um golpe e reservou com antecedência todos os lugares de classe executiva, em todos os voos disponíveis entre o Uruguai e a Austrália naquele período. Os Uruguaios, cuja torcida havia invadido o aeroporto para atrasar a partida dos australianos, não conseguiram fazer nada a não ser alterar seus roteiros, e chegaram bem cansados do outro lado do mundo.
O jogo em si também mostrou outra faceta dos australianos. Os Uruguaios haviam dado declarações desastrosas para a imprensa local, brandindo de forma arrogante o seu “direito divino” a uma vaga na Copa. Mostrando total falta de respeito com os Socceroos, acabaram alimentando tanto a confiança do time quanto uma vontade de vencer inédita, a qual foi muito bem utilizada pelo Guus para motivar os seus jogadores.
Nunca se viu um time dos Socceroos tão agressivo, distribuindo cotoveladas, não se intimidando com empurrões e ofensas em campo e mesmo fazendo algumas “fitas” que não se enquadram no arquétipo do espirito esportivo australiano. Nas arquibancadas, um publico recorde de 85.000 mil pessoas fazia um barulho ensurdecedor no estádio Olímpico de Sydney. Uma senhora de origem uruguaia, ao ser entrevistada no intervalo do jogo, dava a tônica do ambiente festivo: com um forte sotaque que delatava a sua origem sul-americana, ela falava que torcia pelos Socceroos, afinal, eles representavam o pais que havia acolhido tanto a ela quanto a sua família durante a ditadura uruguaia – e agora ela era uma australiana. A torcida arrebentou ao ouvir isso.
O resto é historia: em jogo tenso, Recoba, o grande artilheiro uruguaio, perdeu varias chances e acabou substituído. Os australianos fizeram seu gol, levando o jogo a prorrogação e aos pênaltis, quando Mark Schwartzer fez duas grandes defesas e John Aloisi assinalou o ultimo gol, fazendo o estádio explodir em uma comemoração “tipicamente” sul-americana. O jogo havia virado. A agonia havia acabado.
A TV australiana recentemente transmitiu o documentário 16 November, que conta esta historia com muito mais detalhes, imagens, depoimentos e emoção
A Federação Australiana de Futebol também comemorou bastante a data, com um jantar de gala no estádio Olímpico em novembro ultimo, com a presença dos jogadores e da comissão técnica que participaram daquela jornada histórica. Vários personagens daquela época foram induzidos ao “Hall da Fama” da Federação naquela noite, cujos convites custavam mais de mil dólares por cabeça.
Não comprei ingresso tampouco fui chamado para estas festividades. Ate onde se sabe, a entidade que comanda o futebol australiano ainda não percebeu a contribuição que eu poderia dar aos Socceroos; desconhecem a minha inteligência tática aguda, minha visão de sete cabeças e o meu estilo de jogo malemolente. Cleiton Barbosa, envia logo este DVD!
Fonte: https://historiadoesporte.wordpress.com/
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