01/02/2016
A presença e a força dos discursos médicos e pedagógicos no final daquele século eram incontestáveis. O desfio era convencer a população a efetivamente praticá-los no dia-a-dia, sem que antes ela duvidasse de certos argumentos e prescrições.
por Fabio Peres
A história começa com um sonho esplendido, quase idílico. Naquele 24 de maio de 1895, dia da inauguração do Prado Brasileiro, a multidão se amontoava em torno da arena da nova sociedade esportiva, localizada provisoriamente na Praia de Botafogo, n.171 (sede do Bellódromo Guanabara). O céu era “de um azul lavado e fresco” (A Cigarra, 30/5/1895)[i].
Voando em pensamento, o cronista entregou a “alma a um sonho radiante”, viajou “para outro clima e para outra idade”. Viu área de jogos, piscinas de mármore, homens fortes, “robustecidos pelo exercício violente”, além de corridas a pé, carruagens, atletas, saltos, lutas e arremessos. Estava definitivamente na “jovem Grécia”.
O deleite provocado pelo sonho, seguido por um desanimo ao despertar, foram depois de um tempo sopesados:
Meu Deus! Cada roca com o seu fuso, e cada século com os seus exercícios. O culpado d’esses sonhos, d’essas saudades ansiosas que o jornalismo fluminense de hoje, de vez em quando, diz sentir pela rija educação física dos tempos heroicos,— o culpado dessa mania é Sr. Ramalho Ortigão que vive a fazer, em livros e artigos, a apologia da ginástica (A Cigarra, 30/05/1895, p.2)[ii].
Dialogando diretamente com os preceitos de saúde e educação física da época, o autor – em tom zombeteiro – chamava atenção para incompatibilidade e mesmo anacronismo entre os discursos de promoção e estimulo de práticas corporais, pautadas por uma idealização da Grécia Antiga, e as práticas esportivas adequadas a um carioca de 1895, “com o câmbio a 8 e uma guerra civil de quatro anos de idade”. Tal modo de vida da Antiguidade não seria factível com as obrigações e condições de vida de um cidadão da “era moderna”:
Apanhem-me um honesto burguês destes desventurados tempos modernos. O homem é empregado público: o emprego rende-lhe duzentos mil réis. Mas o desgraçado tem oito filhas que precisam de marido: querem vestir-se, querem piano, fitas, teteias, teatros. E o infeliz, mesmo arranjando para a noite qualquer trabalho suplementar com que se estrompe a ganhar a vida, não consegue, no fim do mês, pagar todos os seus compromissos, Metam agora na cabeça desse burguês a convicção de que, para viver muito, o exercício físico é indispensável: mandem-no perder, de manhã, duas horas em ginástica de quarto, – de tarde, outras duas em corridas a pé, – de noite, outras duas em velocipedia. E digam-me que tempo lhe ficará para ganhar o pão de cada mês. O’ néscios! O problema capital da vida não é viver muito: é viver! Não é ter saúde: é ter dinheiro! Não é ser belo: é comer! (op. cit.)
De acordo com o bem-humorado cronista, o esporte moderno é bem concebido justamente pelo fato da prática ficar restrita somente aos que se “empregam nele, e se divertem quem tem tempo e dinheiro” para assistir. E, por fim, sentencia em clara oposição aos argumentos que “vestem” determinados contextos “com as roupas talhadas em outras épocas” [iii] e em outros lugares:
Nós não somos feitos para essas façanhas, amigos! Contentemo-nos com o que o século nos dá. E, em matéria de sport limitemo-nos a apostar neste ou naquele corredor, neste ou naquele cavalo, neste ou naquele pelotari. A idade heroica foi a dos jogos olímpicos. A idade moderna é a dos jogos de poules. E eu prefiro perder dinheiro, vendo correrem os outros, a ganhá-lo, correndo eu, para que os outros me vejam (A Cigarra, 30/05/1895, p.3).
Uma das chaves para compreender a prática de esportes e exercícios físicos na cidade do Rio de Janeiro do século XIX passa, por certo, pelos discursos pedagógicos e médico-higienistas. Contudo, esses discursos nem sempre, ou muitas vezes, se materializavam ipsis litteris na vida social da cidade.
Em 1892, aliás, um estrangeiro de velocípedes no Passeio Público foi alvo de chacotas: “corre nenê!”. De acordo com o comentarista, a prática de exercícios físicos em determinados espaços da cidade ainda era censurada pela população, onde “moços do Rio de Janeiro, salvas poucas exceções, não têm força muscular”[iv]; algo que certamente mudaria. Mas essa história ficará para um próximo post.
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[i] Havia nos periódicos fluminenses uma certa expectativa em torno da estreia do empreendimento. Nos dias seguintes, porém, as matérias sobre o evento foram marcadas por controvérsias e críticas, sobretudo, em relação à qualidade técnica das provas (O Paiz, 25/5/1895, p.2; O Paiz, 26/5/1895, p.2).
[ii] Vale destacar que em 4/1/1888, a Gazeta de Notícias fazia uma promoção e oferecia livros aos que renovassem sua assinatura, entre os quais “Ginástica de quarto”, a obra de Schreber traduzida pelo renomado Ramalho Ortigão, que já fizera várias referências ao autor em seu “As Farpas: Crônica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes”.
[iii] ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Não sabem dizer coisa certa”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 16, jun. 1991, p. 64. 14.
[iv] O Paiz, 10/6/1892, p.1
Fonte: https://historiadoesporte.wordpress.com/
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