Por Valeria Guimarães

Sabe quando a gente tem planos de escrever um post sobre aquele tema de nossa pesquisa, que nos dá segurança de escrever com algumconhecimento de causa e de repente é surpreendido por algo que faz mudar o rumo da prosa e nos leva a pisar num terreno novo e movediço? Pois é. Aconteceu com este post.

A edição do jornal carioca O Dia do último domingo, 23 de março de 2014, trazia uma matéria com o curioso título “Túmulo de surfista que pode virar santo atrai romeiros”. O texto ressalta a intenção de abertura de um processo por autoridades eclesiásticas brasileiras no Vaticano, no próximo mês de maio, para a beatificação de Guido Vidal França Shäffer.

A beatificação, se reconhecida, será a primeira conquista rumo ao processo de santificação de Guido, uma aspiração de sua família, da Igreja Católica do Rio de Janeiro e de um crescente número de pessoas do país e do exterior que vem recorrendo à intervenção de Guido no alcance de alguma graça, havendo, inclusive peregrinações organizadas ao seu túmulo, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. De acordo com o jornal O Dia, já existem relatos de milagres alcançados por devotos de Guido. Esses milagres estão sendo documentados para comporem o processo junto ao Vaticano.

Um santo surfista carioca. Assim é que tem sido trabalhada pela mídia a imagem de Guido, um médico e seminarista, também filho de médico, que morava em Copacabana e era praticante de surf no mar do Arpoador, onde ensinava jovens e adultos a praticar o esporte. Foi num acidente justamente quando surfava que Guido perdeu a vida precocemente, aos 34 anos de idade, em 2009.

A trajetória de vida de Guido, que se tornaria padre no ano em que ocorreu a sua morte, está ligada à dedicação aos mais necessitados tanto pelo trabalho pastoral quanto pelo ofício de médico. Residia na Santa Casa de Misericórdia e organizava grupos de oração na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, sendo amigo do Padre Jorjão, um dos principais elos de ligação da Igreja Católica com o público jovem.Para Dom Roberto Lopes, delegado episcopal para a Causa dos Santos da Arquidiocese do Rio, Guido era “um São Francisco Carioca”.

O que me chama a atenção nessa interessante história e me motiva a trazer o tema para este blog de história do esporte é o forte destaque dado ao surf, marcando uma identidade jovem e um ideal de saúde e plenitude do esporte ao lado da vida vocacional e de uma possível santificação.Além do título da matéria do jornal e de outras já publicadas, um livro lançado no ano passado e um documentário com data de lançamento para este mês ressaltam em seus títulos a condição de surfista de Guido.

o diaMatéria de O Dia sobre o lançamento do livro O anjo surfista, com imagens de Guido em ação no mar e na Igreja (20 de junho de 2013)

 

 

Como já escreveram Rafael Fortes (2011) e Ana Carolina Cruz (2012), pesquisadores do Sport e autores de trabalhos sobre o surfe carioca, historicamente o esporte, que chega a configurar uma subcultura, esteve relacionado a movimentos de contracultura, com um forte corte de classe (as classes média e alta), concentrado na Zona Sul carioca e muito estigmatizado como uma cultura marginal (ou pelo menos como uma adaptação à cultura de consumo), tendo muitos de seus praticantes sofrido, inclusive, repressão policial.

Essas imagens foram sendo ressignificadas ao longo das 3 últimas décadas com o interesse das grandes marcas de roupas, equipamentos e acessórios que compunham a linha surfwear e se tornaram febre mesmo entre os jovens que viviam distantes do litoral carioca. Somado a isso, uma mídia especializada (que Rafael Fortes chama de mídia de nicho) e os movimentados campeonatos de surfe integrados a circuitos internacionais, entre outros fatores, foram dando uma nova cara ao esporte.

Os estigmas foram sendo desfeitos e a subcultura do surfe passou a incorporar novos valores, inclusive os da geração saúde e de inclusão social, possibilitando a construção de um imaginário contemporâneo de juventude suficientemente forte e compatível com a imagem de um santo, que no auge da sua vida e em plena prática esportiva no mar (“lugar onde realizava seus melhores encontros com Deus”, segundo seu biógrafo) perdeu a sua vida trágica e precocemente.

A biografia de Guido, lançada em junho de 2013  no contexto da Jornada Mundial da Juventude, sediada no Rio de Janeiro, tem como título “O anjo surfista”. Como subtítulo, a condição de surfista também aparece em primeiro lugar: “a verdadeira história de um surfista e médico que, prestes a se tornar padre, transformou-se em anjo”, com 176 páginas, publicada pela editora Leya, uma casa editorial com grande penetração em Portugal, Angola e Moçambique. Manuel Arouca, o autor da obra, aliás, é moçambicano radicado em Portugal. Certamente a obra alcançará esses países católicos de língua portuguesa.

 

livro anjo

Capa da biografia deGuido Schäffer

 

Guido era uma forte liderança na ala jovem da Igreja e, sem dúvida, a intensa associação entre a sua imagem, a ser santificada, e a prática do surfe reforçam a comunicação com um público-alvo tão valioso para a renovação e fortalecimento da Igreja Católica, o jovem, ao mesmo tempo em que vê algo de sagrado na antes reprimida prática do surfe.

Salve São Guido!

Referências

AROUCA, Manuel. O anjo surfista. Rio de Janeiro: Leya, 2013.

BARROS, Maria Luiza. Túmulo de surfista que pode virar santo atrai romeiros. O Dia, 23 de março de 2014. Disponível em: <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-03-22/tumulo-de-surfista-que-pode-virar-santo-atrai-romeiros.html>. Data de acesso: 23 de março de 2014.

CRUZ, Ana Carolina Costa. Mulheres nas pranchas: trajetórias das primeiras competidoras do surfe carioca (década de 1960). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012 (dissertação de mestrado em Educação Física).

FORTES, Rafael. O surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.

SCHOTT, Ricardo. Mergulho divino. O Dia, 20 de junho de 2013, p.3.

 

FONTE: www.historiadoesporte.wordpress.com 

 

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