Mais abaixo, escrevi sobre as cavalhadas em Perinópolis. E que já as tivéramos em São Luís e em Alcântara. Corria-se, inclusive, a Argolinha:
Uma função essencial do calendário é a de ritmar a dialética do trabalho e do tempo livre. Trata-se de permitir o entrecruzamento do tempo mais disciplinado, mais socialmente controlado, com o tempo cíclico das festas e, mais flexível, do jogo.
Uma das funções do calendário está em articular os tempos de trabalho e de não-trabalho, ou ainda, articular o tempo linear-regular do trabalho com o tempo cíclico da festa, do jogo e, do mesmo modo, do esporte.
O calendário seria o resultado complexo de um diálogo entre a natureza e o homem; diálogo este não estranho ao lazer, ao esporte e ao jogo. (Le GOFF, 1992; GEBARA, 1997, 1998).
Esses tempos de festa serviam para regular o calendário do trabalho. Ao contrário do uso do tempo após a revolução industrial, o tempo era regulado pela natureza. O ritmo do trabalho era dado pelo ritmo do homem no comando de ferramentas e instrumentos de trabalho (GEBARA, 1997, 1998).
Em São Luís do Maranhão, a Câmara tinha que mandar celebrar, além da procissão de Corpus Christis , quatro festas anuais: a de São Sebastião em janeiro, a do anjo Custódio em julho, a da Senhora da Vitória em novembro, e a da restauração de D. João IV, chamado especialmente el-rei, em dezembro. Fora essas datas, só se realizavam cerimônias festivas quando assumia um novo governador ou, depois, quando chegava um novo bispo.
Encontramos no Maranhão, ainda no Século XVII, como parte da herança cultural portuguesa, além das danças e comédias representadas no adro das igrejas, o entrudo e as cavalhadas, estas sob as formas de encamisadas, do jogo das canas e do jogo das argolinhas.
A argolinha é encontrada desde o século XV em Portugal e, de acordo com GRIFI (1989), a corrida dall’anello - corrida do arco - consistia de corrida a cavalo, lançado a galope, durante as quais os cavaleiros deviam enfiar a lança ou a espada em um arco suspenso. Vencia quem conseguia enfiar o maior número de arcos.
No Brasil, desde o século XVI se corre a argolinha, e chegou a estender-se até meados do século XIX. MARINHO (s.d.) refere-se a uma cavalhada realizada em abril de 1641, no Recife. Portugal estava sob o domínio da Espanha e esta em guerra com a Holanda. Os holandeses haviam invadido o Brasil quando sobreveio a trégua entre estes e os espanhóis, a qual, naturalmente, se estendeu às colônias. Para festejá-la, foram organizados torneios eqüestres em que portugueses e brasileiros competiram contra holandeses.
CÂMARA CASCUDO (1972) registra uma encamisada realizada em março desse mesmo ano, no Rio de Janeiro, por ocasião da aclamação de D. João IV.
É a argolinha a primeira “manifestação esportiva” praticada por brancos em terras maranhenses, pois possuía caráter competitivo, como registra Frei Manuel Calado (citado por CÂMARA CASCUDO, 1972), referindo-se à mais famosa corrida realizada no Brasil, promovida por Maurício de Nassau, em janeiro de 1641 - ou abril, conforme MARINHO (s.d.) -, por ocasião da aclamação de D. João IV. Foi vencida pelos portugueses.
Para LOPES (1975), nesses torneios do tempo colonial os corcéis eram árdegos, de viçosa estampa e traziam arreios de preço. Os cavaleiros e seus ‘peões’ vestiam com esmero trajes de cores vivas e os primeiros, montados à gineta ou bastarda, exibiam a sua destreza na arte nobre de bom cavalgar. Além dos encamisados, jogaram, decerto, a cana e a argolinha (LOPES, 1975).
Em 1678, D. Gregório de Matos - primeiro bispo do Maranhão (1679-1689) - foi recebido com uma festa. Teve lugar, no adro da igreja, uma comediazinha. Finda ela, foi D. Gregório para a casa de Manuel Valdez, onde, por oito dias consecutivos, ou mais, houve representações de encamisadas a cavalo, danças e outros gêneros de demonstrações de festas e alegria. (MEIRELES, 1977).
A tradição de desfile a cavalo em festas oficiais é imemorial, tendo se tornado indispensável em Roma, durante as procissões cívicas, triunfos e mesmo festividades sacras. Em Portugal, desde velho tempo a cavalhada era elemento ilustre nas festas religiosas ou políticas e guerreiras. Mesmo nas vésperas de São João havia desfile de que fala um documento da Câmara de Coimbra, citado por Viterbo, aludindo em 1464, à cavalhada na véspera de São João com sino e bestas muares. No Brasil aparecem desde o século XVII com as características portuguesas. (CÂMARA CASCUDO,1972).
Esse autor registra o termo “cavalhada” referindo-se a desfile a cavalo, corrida de cavaleiros, jogo das canas, jogo de argolinhas ou de manilha (CÂMARA CASCUDO,1972). Estes jogos foram um produto do feudalismo e da cavalaria, como afirma GRIFI (1989), ao referir-se às atividades esportivas do medievo, período em que os jogos cavalheirescos se destacavam entre as manifestações atléticas e esportivas.
Ao descrever as distrações na Idade Média, Oliveira Marques ensina que, uma vez a cavalo, o nobre medieval podia entrega-se a uma série de exercícios desportivos. Desses, os mais vistosos e conhecidos eram sem dúvida as justas e os torneios, embora seja difícil distingui-los. Em princípio, a justa travava-se entre duas pessoas, enquanto o torneio assumia foros de contenda múltipla.
No dizer de GRIFI (1989), a “giostra” era disputada somente entre dois cavaleiros, diferente do torneio que era combate em times. Eram usadas “armas corteses”, isto é, armas desapontadas ou cobertas por uma defesa. O confronto consistia de uma corrida a cavalo de um contra o outro, lança em riste, com o objetivo de desequilibrar o adversário, melhor ainda, de fazer cair, ao mesmo tempo, cavalo e cavaleiro.
Em torno do século XIV espalhou-se o mau costume de usar lanças ou armas desapontadas. Variante das justas eram as chamadas canas. Em vez de lanças, o jogador, a cavalo, servia-se de canas pontiagudas com que se acometiam. O jogo possuía as suas regras, evidentemente muito diferentes das que regiam os torneios. Popularíssimos no fim da Idade Média mostrava-se espetáculo quase obrigatório nos festejos públicos, ao lado das justas e das touradas.
O jogo das canas, de antiga tradição nacional, continuou em uso, nos séculos XVII e XVIII, com grande aparato e luzimento, quando nele intervinham pessoas da alta nobreza. Da cavalaria medieval, que durante longo tempo conservou a tradição dos exercícios viris da antiga efebia e cuja decadência foi um dos consectários do aperfeiçoamento das armas, ficou em Portugal, de onde veio para o Brasil com os primeiros Governadores, o gosto pelo jogo das canas.
As cavalhadas constituíram nos tempos coloniais e no Império um atraente exercício. Embora quase privativo dos jovens afortunados. Ao povo habituado à pasmaceira elas valeram por oferecerem espetáculos ou, como Fernando Azevedo escreveu, ‘memoráveis torneios de opulência aristocrática’.
Será preciso distinguir as cavalhadas que os mancebos ricos disputavam daqueles outros jogos que no Rio de Janeiro foram conhecidos como o jogo das manilhas e em tantos outros cantos do país com o jogo das argolinhas.
Pois bem. Álvaro - Vavá - Melo escreve-me dizendo:
“Li em escrito do intelectual João Climaco Lobato autor de tantas obras, inclusive o livro “Mistério da Vila de São Bento - (1862), conta que por ocasião da festa de São Roque (povoado de São Bento), os lavradores da região festeiros que eram armavam com antecedência casinhas de palhas em torno do arraial, onde ficava seus familiares. Entre as diversões os senhores em seus cavalos faziamn o jogo das argolinhas. Provavelmente prática feita em Alcântara, donde eram residentes, quase todos ou todos de origem portuguesa. Vou tentar lembrar-me onde li essa informação.”.
Logo em seguida: “Encontrei - eis o trecho. É do livro “Mistério da Vila de São Bento” que reorganizei e vou reeditá-lo. Vavá
Nos anos de 1817 a 1818 foi a nova matriz sagrada, a cujo ato concorreu inúmera gente. Foi um dia e uma noite de festas, ricos folguedos, cavaladas, danças e toques.
Os ricos lavradores mandaram levantar barracas de pindova, para aonde com antecedência tinham vindo com suas famílias.
João Alves teve nesses dias muitos hóspedes, amigos e convidados.
Era reboliço, um movimento desusado nesse lugar até então só habitado pelos escravos de João Alves, e sua família, e João de Deus Melo,[1] jovem pernambucano, que por desgosto de família, ao que se supõe, viera para esse lugar; e que defronte da igreja novamente edificada levantara uma casa, em terras de José Alexandre Soares,[2] onde vivia aqui com sua mulher, que era parenta do dito Soares, do produto de uma venda, tasca, ou bodegas, que na mesma casa tinha.
Bom tempo era esse, dos nossos avós, em que o homem não se pejava em público, mostrar o seu regozijo por ocasião de uma festa religiosa, em que o pobre e o rico, o fidalgo e o plebeu concorriam de mistura ao templo sem querer uma outra distinção mais do que seu zelo religioso.
Bom tempo era esse, em que o homem idoso de mistura com o mancebo, montando um fogoso cavalo, corria na arena para tirar argolinha, em dias de cavalhadas, por ocasião de alguma festividade, sem que o velho sofresse quebra na sua dignidade de homem, e nem o moço o respeitasse menos, pois se assim obrava era por motivo de Religião, ante a quase todos são iguais.
Bom tempo era esse, em que todos animados do mesmo zelo concorriam ao templo, adornados das suas mais vistosas galas, sem que o pobre invejasse as do rico, nem este menoscabasse as daquele; em que a maledicências, a crítica, e a mordacidade fugiam dos recintos sagrados, em que o homem não se pejava de prostar‑se no pó das campas para adorar Aquele que só é grande e poderoso, manifestando assim, em público, aos olhos de todos a sua fé; em que o rico ajoelhava ao pé do mendigo, e não torcia o rosto de nojo e desdém; em que as jovens de cabeças cobertas com seus véus não faziam da casa de Deus, um lugar de namoro _em que o mancebo ia à ela, não como se vai a um teatro, ou a um baile, por distração, para matar algumas horas de inércia e aborrecimento, mas sim para adorar a Deus; em que a palavra proferida pelos lábios do sacerdote, santificado pelo lugar que ocupava na cadeira da verdade, era executada com atenção e recolhimento.
[1] João de Deus Soares de Melo, professor da cadeira do sexo masculino (1832) e genitor do padre Saturnino Alexandrino Alves de Melo e de Teodolina Maria Alves de Melo, a primeira mestra da cadeira do sexo feminino.
[2] Proprietário de um bom quinhão terras, inclusive, de parte da Vila, vendida, posteriormente, para Câmara Municipal. Patriarca da família dos Soares.
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BIBLIOGRAFIA
CÂMARA CASCUDO, Luís da. DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO. 3a. ed. atual. Rio de Janeiro : Tecnoprint, 1972.
GEBARA, Ademir. Considerações para a história do lazer no Brasil. in BRUHNS, Heloísa Turini. (org). Introdução aos estudos do lazer. Campinas : Unicamp, 1997, p. 61 -81
GEBARA, Ademir. “O tempo na construção do objeto de estudo da história do esporte, do lazer e da educação física”. Grupo de História da Educação Física, Esporte e Lazer, FEF/UNICAMP. < http://www.unicamp,br/fef/gehefel/texto-Gebara-2.txt. >. (26/06/98).
GRIFI, Giampiero. HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA E DO ESPORTE. Porto Alegre : D.C. Luzzatto, 1989.
Le GOFF, Jacques. História e memória. Campinas : Unicamp, 1992
LOPES, Antônio. Meios de transporte na ilha de São Luís. in LOPES, Antônio. DOIS ESTUDOS MARANHENSES. São Luís : Fundação Cultural do Maranhão, 1975, p. 45-58.
MARINHO, Inezil Penna. HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO BRASIL. São Paulo : Cia. Brasil ed.(s.d.).
MEIRELES, Mário M. HISTÓRIA DA ARQUIDIOCESE DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO. São Luís : UFMA/ SIOGE, 1977.
VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. Primeiras manifestações do lúdico e do movimento no Maranhão Colonial. in SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, XVIII, São Caetano do Sul-SP, outubro de 1992. ANAIS … São Caetano do Sul : CELAFISCS : UNIFEC, 1992, p 27.
VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. Primeiras manifestações do lúdico e do movimento no Maranhão Colonial in CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, VIII, Belém-Pa, setembro de 1993. ANAIS … . Belém : UFPA, 1993, p 137.
VIEIRA E CUNHA, Manuel Sérgio; FEIO, Noronha. HOMO LUDICUS - ANTOLOGIA DE TEXTOS DESPORTIVOS DA CULTURA PORTUGUESA. vol. 2. Lisboa : Compendium, (s.d.).
Vavá - ÁLVARO URUBATAN MELO é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.
De meu Blog sex, 23/10/09 por leopoldovaz | categoria Atlas do Esporte no Maranhão, História, RaízesComentários
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