Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século XX, falecido em 1º de outubro último, trilhou caminhos pouco frequentados pelo mundo acadêmico. Dentre tantos outros temas, conhecia jazz, artes plásticas e futebol, jogo que está, por exemplo, no seu A Era dos Extremos: “O esporte que o mundo tornou seu foi o futebol de clubes, filho da presença global britânica… Esse jogo simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos, e que podia ser praticado em qualquer espaço aberto mais ou menos plano do tamanho exigido… tornou-se genuinamente universal.”
Tomei contato e conhecimento do interesse de Hobsbawm pelo futebol em 1976. Para minha alegria de botafoguense apaixonado e historiador recém-formado, soube do seu gosto pelo futebol. Torcedor do Arsenal, ele não só gostava como entendia do jogo. E isto era raro.
Afinal, como disse certa vez Edgar Morin: “o estudo dos fenômenos desacreditados é igualmente desacreditado”. E, naquela época, nos meios universitários do Brasil e de todo o mundo, nada mais desacreditado que o futebol. Os professores doutores, salvo raras exceções, eram típicos intelectuais de laranja, cunhados por Nelson Rodrigues, que não sabiam bater nem um reles escanteio. Olhavam o futebol com o nariz em pé.
Assim que soube da novidade, recorri ao amigo e sociólogo Luciano Costa Neto, que começara a traduzir A Era do Capital para o português. Encaminhei, por Luciano, algumas perguntas por escrito a Hobsbawm em um dos encontros que tiveram para ajustar pontos da tradução.
Na resposta, devidamente anotada por Luciano, Hobsbawm falava que não só o futebol era um assunto de relevo para os historiadores, mas contava da sua admiração pela seleção brasileira e por dois jogadores em particular: Gerson e Tostão. E ia além, relembrando dois jogos da Copa de 70: Brasil x Itália e Brasil x Inglaterra. Deste último jogo retinha na memória a trama do gol brasileiro feito por Jair.
E não foram citados apenas Tostão e Gerson. Hobsbawm disse a Luciano da sua decepção em nunca ter vistoGarrincha atuar em campo.
Quase 20 anos mais tarde deixaria registrado: “…e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?…” (A Era dos Extremos), Para Hobsbawm, o futebol bem praticado não era apenas um esporte. Era arte e paixão popular, ou culto proletário de massa.
Autor de livros que inovaram a compreensão do mundo contemporâneo: A Era das Revoluções (1789–1848); A Era do Capital (1848–1875); A Era dos Impérios (1875–1914) e A Era dos Extremos (1914– 1991), encantou leitores e críticos de várias correntes do pensamento, independente de filiação ideológica ou político-partidária.
Marxista, avesso a análises reducionistas e dogmáticas, Hobsbawm foi um estilista erudito e original, senhor de uma narrativa leve e sofisticada, respeitado até mesmo por críticos contundentes, como Tony Judt.
Em um dos seus textos afirmou que um historiador social não podia negligenciar nem a economia nem Shakespeare. Deveria analisar não somente os aspectos econômicos da vida em sociedade como as idéias, a linguagem e o imaginário coletivo.
Foi exatamente isto que ele fez em seus escritos. O contraponto entre as relações econômicas e culturais está presente em sua vasta obra, inclusive quando aborda o futebol, como nesta passagem de Mundos do Trabalho, recuando ao período de profissionalização/popularização do futebol inglês.
“O futebol como esporte proletário de massa – quase uma religião leiga – foi produto da década de 1880, embora os jornais do norte já ao final da década de 1870 houvessem começado a observar que os resultados de jogos de futebol, que eles publicavam somente para preencher espaço, estavam na verdade atraindo leitores. O jogo foi profissionalizado em meados da década de 1880…”
O surgimento dos Esportes Modernos (dentre os quais o futebol) na segunda metade do século XIX foi analisado porHobsbawm em sintonia à consolidação do Estado-Nação da era moderna.
Em A Invenção das Tradições (escrito com Terence Ranger), o futebol é identificado como uma entre muitas formas de expressão e símbolo da nacionalidade, como mais um modo de coesão necessário à nação moderna.
Discorrendo sobre as décadas de 1880 e 1890 na Inglaterra, Hobsbawm reafirma a importância do tema: “Pela história das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter dados sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana operária que não se conseguiram através de fontes mais convencionais.” (A Invenção das Tradições).
Ainda em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm volta seu olhar para o vestuário operário, associando a utilização do boné como meio de identificação e expressão de classe fora do trabalho. E mais uma vez, o futebol é mencionado: “Na Grã-Bretanha, ao menos, segundo indícios iconográficos, os proletários não eram universalmente relacionados ao boné antes da década de 1890, mas no fim do período eduardino – como provam fotos de multidões saindo de jogos de futebol ou de assembléias – tal identificação era quase completa. A ascensão do boné proletário ainda está à espera de um cronista. Ele ou ela, supostamente, descobrirá que sua história tem relação com a do desenvolvimento dos esportes de massa, uma vez que este tipo específico de chapéu surge a princípio como acessório esportivo entre as classes alta e média.” (A Invenção das Tradições)
O vínculo entre o boné, o futebol e o vestuário dos trabalhadores ingleses é ainda mais forte e estreito do que Hobsbawm supunha. Pelo regramento do futebol inglês, a presença do juiz data de 1863. Mas por 21 anos o poder do juiz ficaria subordinado aos capitães das equipes. E os capitães ou “reclamadores” utilizavam um bonezinho para se diferenciarem dos demais. Boné que em inglês é cap. De cap para capitão foi um pulo. O fato é que o reclamador ficou conhecido como o capitão do time, produto deste antigo costume britânico. Assim, é possível depreender que a utilização do boné (cap) pelo capitão (ou reclamador) no futebol foi um dos fatores que contribuiu para a disseminação do boné entre as classes populares inglesas e, posteriormente, em quase toda a Europa Ocidental.
Para Hobsbawm, não apenas a história do vestuário proletário não foi escrita mas também a da cultura do futebol na transição do século XIX para o século XX, na Inglaterra: “A natureza da cultura do futebol neste período – antes de haver penetrado muito nas culturas urbanas e industriais de outros países – ainda não foi bem compreendida. Sua estrutura socioeconômica, porém, é mais compreensível. A princípio desenvolvido como esporte amador e modelador do caráter pelas classes médias da escola secundária particular, foi rapidamente (1885) proletarizado e portanto, profissionalizado; o momento decisivo simbólico – reconhecido como um confronto de classes – foi a derrota dos Old Etonians pelo Bolton Olympic na final do campeonato de 1883.” (A Invenção das Tradições).
Entre 1890 e 1914, a popularização do futebol inglês registrou um crescimento avassalador. Os jogadores de futebol eram oriundos das fábricas, escolhidos entre os operários mais habilidosos, ao contrário do que acontecia no boxe, onde o critério de escolha levava mais em conta a força e o tamanho dos futuros atletas.
Em A Era dos Impérios, Hobsbawm identifica a existência de cerca de 1 milhão de jogadores de futebol na Inglaterra antes de 1914 frente a uma população geral de cerca de 31 milhões de habitantes.
Abordando o período entre guerras (1918-1939), destaca o papel do esporte e do futebol em particular, representando cada vez com mais força uma expressão de luta nacional e identificação dos indivíduos com a nação, tendo como símbolos mais próximos os atletas: “A imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze pessoas com nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação.” (Nações e Nacionalismo desde 1870, p. 171).
Uma lembrança do então menino Eric Hobsbawm, é descrita: “O autor se lembra quando ouvia, nervoso, à transmissão radiofônica da primeira partida internacional de futebol entre a Inglaterra e a Áustria, jogada em Viena em 1929, na casa de amigos que prometeram descontar nele se a Inglaterra ganhasse da Áustria, o que, pelos registros, parecia bastante provável. Como o único menino inglês presente, eu era Inglaterra, enquanto eles eram Áustria. (Por sorte a partida terminou empatada). Dessa maneira crianças de 12 anos ampliavam o conceito de lealdade ao time para a nação.” (Nações e Nacionalismo desde 1870).
Mas, para quem, como Hobsbawm, toda História é História contemporânea disfarçada, o futebol globalizado, controlado por empresas transnacionais não poderia ficar de fora do alcance de sua pena.
O intrincado jogo de interesses entre a FIFA e os grandes clubes internacionais, com seus conflitos de grandes proporções, à primeira vista inconciliáveis, foi abordado em Globalização, Democracia e Terrorismo: “… a lógica transnacional da empresa de negócios entrou em conflito com o futebol como expressão de identidade nacional…
… Do ponto de vista dos clubes, provocaram um considerável enfraquecimento da posição de todos aqueles que não estão no circuito das superligas internacionais e dos supertorneios e em especial nos clubes dos países exportadores de jogadores, notadamente nas Américas e na África. A crise dos outrora altivos clubes de futebol do Brasil e da Argentina o comprova…” (Globalização, Democracia e Terrorismo).
Apesar da importância e da prevalência dos superjogadores e dos superclubes sobre os interesses nacionais, o historiador assinala que os objetivos de poder da FIFA têm tido força para manter, impor e ampliar a realização das Copas do Mundo como evento mais importante do futebol mundial.
Assinalaríamos apenas, ampliando e aprofundando as conclusões de Hobsbawm, que a lógica econômico-financeira das Copas do Mundo acabou por entrelaçar-se com os objetivos do grande capital internacional. Isto foi possível graças à aliança da FIFA com os mesmos interesses que dirigem os superclubes, para a realização das Copas do Mundo. Até mesmo a escolha de países como a África do Sul , Brasil e Qatar, mais maleáveis a negócios extra-campo, demonstra isso.
Não se sabe até quando este equilíbrio instável e contraditório de forças no futebol mundial poderá ser mantido, tendo em vista que não está em jogo apenas a sobrevivência dos interesses nacionais e dos clubes, mas do próprio futebol como cultura popular.
Em a “História Social do Jazz”, talvez o seu melhor livro sobre cultura popular, Hobsbawm questiona a pasteurização da cultura pré-industrial pelo rolo compressor da sociedade contemporânea, citando o jazz como exemplo de resistência e manutenção de suas origens: “O jazz é o mais importante desses exemplos. Se eu tivesse de fazer um resumo da sua evolução em uma só sentença eu diria: é o que acontece quando a música popular não sucumbe, mas se mantém no ambiente da civilização urbana e industrial”. (A História Social do Jazz).
Aqui cabem duas indagações: será que o futebol atual, em particular o brasileiro, tal como o jazz, também não sucumbiu diante das pressões da civilização urbana e industrial? Ainda é possível falarmos do futebol como arte e cultura popular?
Para obter maiores informações sobre o HISTEDBR, acesse o seguinte endereço:
http://www.histedbr.fae.unicamp.br
Comentários
Por
Laercio Elias Pereira
em 22 de Outubro de 2012 às 17:57.
Cevnautas, Leopoldo, nem deu tempo anunciar aqui a inauguração do Blog do Raul Milliet, doutor em história, conhecido pelo trabalho de ter criado e administrado o Recriança no Brasil.
Ele é cevnauta aqui na Comunidade História, e também pode ser visto na companhia do primo Bebeto de Freitas nas campanhas de dar ao Engenhão o nome do tio deles: João Saldanha.
Laercio
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