Jornal da Ciência (JC E-Mail)
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Edição 4783

Historiador critica projeto de lei que garante exclusividade para o exercício da profissão

Artigo de Francisco Marshall* publicado no Zero Hora de 3 de agosto - 'O teor do projeto em discussão vai produzir uma casta cartorial e tecnocrática para controlar a produção livre do conhecimento'
 
Ora tramita em regime de urgência no Congresso Nacional o PL 4.699/2012, do senador Paulo Paim (PT), que trata da profissionalização do historiador. O projeto assegura aos historiadores diplomados prerrogativas exclusivas e interdições que atingirão a pesquisa e a difusão do conhecimento histórico. O privilégio pretendido encaminha conflitos com os historiadores temáticos, que tratam da História da Arte, das Ciências ou da Literatura, entre muitas especialidades de consistente tradição e relevância. Estes conflitos, decorrentes da luta corporativa por reserva de mercado, já motivaram protestos até da Academia Brasileira de Ciências e da SBPC, e abrem questões de interesse amplo e grave: há benefício social na regulamentação da profissão de historiador, e riscos reais em sua inexistência? Caso existam, estes riscos são tais que justifiquem os transtornos prometidos pelo exclusivismo? Deve a memória histórica ser atribuição exclusiva de certo segmento técnico? Com que vantagens e desvantagens? Qual a cientificidade da História, e quais os usos deste saber? Eis, portanto, ocasião para discutirmos a relação entre História, historiador e sociedade, e para pensarmos algo sobre trabalho, ciência e liberdade.
 
A questão central é sobre a natureza e a potência do conhecimento histórico. Há um método que se aprende apenas tirando diploma? A posse deste método assegura grau superior e exclusivo para o exame do passado? Esta exclusividade resulta em bem social? Pode o desenvolvimento da investigação histórica ser tolhido de toda a parcela da sociedade não diplomada, e confiada a uma guilda de fornecedores do conhecimento?
 
Os gregos inventaram a História e logo suas pretensões de cientificidade e de utilidade. Heródoto (484 a.C.? - 425 a.C.) usou o termo historíe (história) para designar as enquetes que fez junto aos povos que visitou, sobre mito, memória, fatos e costumes. Uma geração após, Tucídides (460 a.C.? - 395 a.C.) descreveu metodologia rigorosa para a obtenção do conhecimento sobre os eventos recentes e as causas da guerra; reagindo a Heródoto, Tucídides não adotou a palavra "história", mas foi neste gênero de pesquisa e narrativa que se situou; o historiador quis legar à humanidade um "tesouro para sempre" (ktêma eis aei): o conhecimento das razões que levam à guerra e, logo, referências para que a prudência política evite este flagelo. A humanidade, porém, seguiu guerreando, pois, como anotou G.W.F. Hegel (1770 - 1831) no prefácio à Filosofia do Direito (1820), "a coruja de Minerva começa a voar apenas quando cai o crepúsculo", e a História segue tão inútil quanto o voo tardio da coruja. Sofisticada, apurada, pretensiosa e inútil.
 
A escrita da História aprimorou-se na erudição de autores como Giambattista Vico (1668 - 1744) e Edward Gibbon (1737 - 1794), e no rigorismo cientificista do século 19. Leitor de Hegel, Karl Marx (1818 - 1883) quis converter a História em ciência prospectiva e identificou nas tensões das relações de produção a real causa da dialética; esta ciência até hoje ilumina a compreensão histórica, mas sua principal utilidade foi justificar dezenas de milhões de assassinatos, obra dos regimes totalitários socialistas que, nutridos por "ciência" histórica, aceitavam quaisquer meios pelo fim maior de redimir o proletariado rumo ao comunismo e, sobretudo, preservar o poder. Pouco antes, um tirano austríaco quase destruiu a Europa, nutrido por várias ciências, entre as quais a História, alma do nacionalismo suprematista. Quando a História vira autoridade, com o nome usurpado de ciência, a opinião torna-se verdade, cegueira e violência. Não pode um indivíduo, partido ou corporação deter o monopólio da verdade, da memória ou da narrativa histórica, sob risco de perder-se a liberdade e a ciência da complexidade do mundo.
 
No século 20, com os aportes da Antropologia, da Arqueologia, das Ciências Econômicas, da Ciência Política, da Filosofia, da História da Arte, da Linguística, da Psicologia, da Semiótica, da Sociologia, e de outras disciplinas, a História transformou-se e por fim superou a pretensão de hegemonia de um certo tipo de explicação histórica, materialista. Hoje, o historiador tem ao seu dispor um bom repertório de teorias e vocabulários; não há o menor consenso metodológico, e é bom que assim seja. Talvez o núcleo metodológico da disciplina siga sendo aquele herdado de Tucídides e aperfeiçoado em 1898 por Langlois e Seignobos: a crítica documental rigorosa e a determinação das fontes e fatos, princípios compartilhados com o Jornalismo e outras ciências, pouco ensinados nos cursos de História atuais. A História é uma expressão das Ciências Humanas, em diálogo com áreas correlatas e aberta à sociedade, que deve ser capaz de historiar, como cada um de nós deve ter memória; a pretensão de monopólio é um insulto à sua natureza interdisciplinar, bem como ao convívio harmônico com as demais disciplinas e a sociedade.
 
Chegamos, pois, ao ponto: a quem e para que serve a pretensão de monopólio corporativo que pauta esta regulamentação profissional? Além da finalidade medíocre e insustentável de garantir reserva de mercado, vai-se produzir outra casta cartorial, controlando um ofício livre e inofensivo, dando ilusão de poder a tecnocratas improdutivos, burocratizando o ofício, perturbando e ofendendo profissionais dignos, inibindo a evolução acadêmica, sem qualquer ganho social. A sociedade, caso conceda esta reserva de mercado, abrirá mão de parte importante da liberdade e fomentará litígios desnecessários nas ciências patrimoniais, hoje, aliás, muito mais complexas do que o imaginam os arautos do oficialismo historiográfico. A ABC e a SBPC, em carta de 10 de julho deste ano, em que pedem a imediata suspensão da tramitação do projeto de lei 4.699/2012, argumentam, corretamente, que "existem diversas áreas de pesquisa e ensino cujo nome inclui "História" e que, no Brasil e no exterior, são atividades que podem ser desenvolvidas por profissionais de outras áreas que não tenham diploma em História." Isto inclui todas as histórias temáticas, que não são ensinadas nem como assunto nem como metodologia de pesquisa nos cursos de História no Brasil, e, especialmente, a área de História da Arte, em franco desenvolvimento e titular de tradição acadêmica própria e importante. A ANPUH (Associação Nacional de História), em documento dirigido à Sesu/MEC, postulou que as áreas de "História da Arte e História, Teoria e Crítica da Arte devam convergir para a denominação História - Bacharelado e História - Licenciatura", mas estes assuntos, todavia, não compõem os currículos de ensino universitário de História no Brasil; eis indício preocupante dos fins a que pode se prestar esta regulamentação, provocando conflitos ilegítimos com outras áreas acadêmicas e com ameaças ao sentido de liberdade necessário à vida social e ao progresso da humanidade.
 
*Francisco Marshall é historiador, arqueólogo, professor do Departamento de História do IFCH-UFRGS
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/segundo-caderno/noticia/2013/08/historiador-critica-projeto-de-lei-que-garante-exclusividade-para-o-exercicio-da-profissao-4222548.html
 
 

Comentários

Por Roberto Affonso Pimentel
em 8 de Agosto de 2013 às 11:03.

Coriolano,

Grato por ter trazido o assunto que há muito me perturbava. Em 2008 publiquei o livro Villa Pereira Carneiro (400 pág.), que narra histórias de um bairro de mesmo nome em Niterói (RJ), local em que nasci. Os relatos se situam entre as décadas de 20 e 60. Quatro anos depois, um douto literário (desconhecido para mim) brindou-me com crítica em seu blogue (2 pág.) e, entre comentários vários, selecionei os abaixo. Destaco o primeiro deles, de uma historiadora formada na UFF, por se tratar do tema em questão.

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Literatura-Vivência  (http://www.literaturavivencia.blogspot.com.br)

“Ser anfitrião das belas letras.” Com esta legenda, o presente Blog pretende abrir espaço para os talentos da literatura (com ênfase na fluminense).

Postado por R. S. Kahlmeyer-Mertens  sábado, 28 de julho de 2012

"Villa Pereira Carneiro": Recanto adorável de Niterói em livro definitivo

Os animais da floresta se reuniram para escolher sua rainha. Na disputa, a cevada porca reclamou a coroa: “ – Eu chego a dez filhos!”. A ardilosa raposa, coçando sua calva, calculava quase cem crias nas últimas primaveras. Foi quando chegou a leoa dizendo ser ela a rainha. Autoritária, a cadela (acudida pela toupeira e pelo veado) contestou questionando quantos filhotes ela teria. A leoa respondeu imediatamente “– Um, mas é um leão” (ESOPO, Fábulas)

(...) Roberto Pimentel reforça a seleta casta de historiadores fluminenses integrada por autoridades como Carlos Wers, Clélio Erthal, Cesar Ornellas, Emmanuel Macedo Soares, Francisco Tomasco de Albuquerque, Ismênia Martins, José Inaldo Alonso e Thalita de Oliveira Casadei nos fazendo acreditar no que resta da saúde intelectual da micro-história nas terras do Rio de Janeiro. Diante de livro em apreço – por enquanto o primeiro e o único de seu autor – minha palavra aos “prolíficos estoriadores” (sic) não pode ser outra senão aquele verso de Leconte de Lisle: “Lâche, que ne fais-tu comme a fait ce lion?”[1][1]

Enfim: livro de Roberto Pimentel é um leão!

[1][1] “Frouxo, por que não fazes como este leão?”.
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Comentários selecionados

- Rosane Márcia Freeland, 29 de julho de 2012

Não elogiarei a forma marcial com que o Kahlmeyer fez suas críticas, mas reconhecerei que existe nelas alguma razão. Da maneira com que está, fica parecendo que temos historiadores espalhados pela cidade à granel! Pergunto quantos destes têm graduação, mestrado e, principalmente, doutorado em história. Quantos destes têm as leituras mínimas para ser considerados historiadores! Sou formada em história pela UFF fui aluna do Ciro Flamarion e nem assim me arvoro historiadora! Às vezes é preciso desafetar as pessoas trazendo-as das nuvens ao solo. "Egotrip" já há demais por aí!
Abraços da Rosane.

- Eduardo Kisse, 29 de julho de 2012

Pra falar a verdade, nunca tinha ouvido falar nesse bairro de Niterói. Um livro assim, que se preocupe em mostrar áreas menos conhecidas da cidade (pelo menos para mim!) é de importância máxima para a compreensão da totalidade do município onde vivemos.
O detalhamento da singularidade de relatos e documentos contidos na obra é essencial para a compreensão da multiplicidade das formas de vida que um povo, no qual eu estou inserido, pode ter. Por isso, pelo anúncio que temos aqui, percebo que este é um trabalho para marcar uma página na história da cidade. Este livro, pela carga de conteúdo, revela a seriedade e o afinco necessários para uma obra de valor histórico. Não por ser um trabalho científico nem pela quantidade de suas informações, mas pela percepção da honestidade com que foi posto suor para se fazer essa obra que, de certo, não foi feita do dia para a noite. Acredito terem sido estes os motivos das críticas feitas acima contra alguns que se dizem historiadores, pelo simples fato de narrarem histórias, quando, se assim fosse, encaixariam-se nessa classificação Galvão Bueno e Casagrande, narradores de jogos de futebol. Prezando o trabalho refletido e a acuidade da pesquisa, não acredito que tenha sido algo demais a crítica feita. Eduardo Kisse

- Alberto Magno, 29 de julho de 2012

Conheço o livro resenhado e ele, de fato, é muito bem escrito. Trata-se de um título necessário à biblioteca dos interessados em história de Niterói! Parabéns pela escolha, parabéns ao Roberto Pimentel.

- Roberto Pimentel, 31 de julho de 2012

Roberto Kahlmeyer,
Sinto-me honrado por sua leitura aos textos da Villa e seus comentários elogiosos aos seis anos de pesquisas, além dos anos de vida no bairro em que nasci. Foram muitos os envolvidos nas entrevistas, todos anônimos construtores de cada retalho daquelas histórias. Alguns confessos em deixar verter uma lágrima de felicidade e saudade. Outros, já falecidos, não puderam contemplar o final da obra, mas estou certo que acolheram meu carinho e a lágrima que por eles chorei. Pelo que depreendi de seu texto, acrescido de tantos comentários de seus amigos, devo esclarecer que nunca tive a pretensão de ser historiador ou escritor, mas apenas um homem coerente, repleto de amor pelo lugar em que nasceu. Busquei ouvir as histórias simplórias que os outros me contaram, para mim de uma representatividade muito forte. Isto me marcou muito, além da felicidade de transpor para o papel tantaemoção. Aos que não me conhecem, imagino a totalidade dos seus leitores, sou um velho moço, aposentado, professor de Educação Física, técnico de voleibol, morador em Icaraí e nada mais do que isto.[...]

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