por Victor Andrade de Melo
Meu interesse pelo Jogo da Bola de Pau foi despertado por dois motivos. O primeiro foi encontrar várias referências esparsas a essa prática em periódicos do século XIX. O segundo é o fato de que até os dias de hoje existe no Rio de Janeiro um logradouro chamado Rua do Jogo da Bola, localizado num dos mais antigos e pitorescos sítios da cidade, o Morro da Conceição.
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Posteriormente, descobri que o mesmo houve em outras cidades, em São Paulo (antigo nome da atual Rua Benjamin Constant), em Curitiba (antiga denominação da atual Alameda Doutor Muricy), em Porto Alegre (a atual Rua do Cotovelo), entre outras. Além disso, descobri que uma expressão oriunda do jogo, “deu no vinte”, foi usual desde o século XIX até os anos 1960, registrada inclusive em obras literárias com uma diferença de quase 100 anos, como Escrava Isaura, romance de Bernardo Guimarães, e Rasga Coração, peça de Oduvaldo Vianna Filho. Havia evidências de que essa prática teria alguma importância. Suspeitava que ela merecia uma investigação mais profunda.
Um primeiro passo foi identificar quem já tinham escrito sobre o assunto. O tema mereceu algumas linhas de importantes historiadores do Rio de Janeiro. Adolfo Morales de los Rios Filho sugere que, junto com as brigas de galos, era das mais populares diversões de seu tempo. Para Vieira Fazenda, a prática era a única que competia com a Ópera, com a diferença de que eram “os jogos da bola frequentados pela arraia miúda”. Luiz Gonçalves dos Santos, o conhecido padre perereca, também referenciou a modalidade.
Como eu tinha uma indicação de que a prática se sistematizara no Rio de Janeiro no século XVIII, o próximo passo seria entender melhor esse contexto, para melhor compreender as condições concretas que teriam permitido a conformação do jogo.
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Desde o século XVII, em função do forjar de uma nova vocação econômica, o Rio de Janeiro foi assumindo uma condição de centralidade no império português. Dado o aumento de sua importância, devido tanto à descoberta de metais preciosos nas Minas Gerais quanto à necessidade de melhorar a segurança da região sul da colônia, a cidade se tornou a capital do Estado do Brasil, em 1763, e do Vice-Reinado, em 1775.
Impactos desse processo são sentidos na malha urbana, especialmente na administração de Luís de Vasconcelos e Sousa (1779-1790), que deu sequência a importantes iniciativas de seu antecessor, Luís de Almeida Mascarenhas, Marquês do Lavradio (1769-1778). Deve-se considerar que os Vice-Reis possuíam forte ligação com as ideias ilustradas que, em Portugal, se difundiram no reinado de D. José I (1750-1777), processo notável nas ações de seu secretário de Estado, o Marquês de Pombal.
Nas décadas finais do século XVIII, ainda que houvesse limitações impostas pela condição colonial, o Rio de Janeiro já apresentava uma vida pública mais dinâmica, inclusive no que tange aos entretenimentos. Era notável um maior trânsito de manifestações artísticas, no âmbito da literatura, música, artes plásticas, artes cênicas em geral. Já se delineava o costume de divertir-se na natureza. Festas e botequins eram opções mais vulgarizadas. Além disso, havia uma série de diversões domésticas que animavam o cotidiano da população.
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Estamos, portanto, mais alinhados com os que discordam da ideia de que era apática a vida citadina no Rio de Janeiro do século XVIII. Esse dinamismo tinha relação com o fortalecimento e diversificação da economia – ainda que houvesse restrições por parte da metrópole no que tange aos gastos com luxos, e com as novas configurações do espaço urbano, mesmo que persistissem severas deficiências, inclusive no que tange à segurança pública.
Nessa expansão da cidade, tanto seguindo a linha do litoral quanto em direção ao interior, processo possível em função de uma série de intervenções urbanas, uma parte tendo em vista inclusive a melhoria das condições de higiene e salubridade, se delinearam novas áreas vocacionadas para o entretenimento, entre as quais a atual Praça Tiradentes e o atual Campo de Santana.
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Teriam os jogos da bola integrado essa nova dinâmica social? Para seguir, era necessário, ainda, saber, afinal, o que era o jogo da bola de pau.
Práticas com pelotas existem há séculos. A modalidade que no Rio de Janeiro chegou, vinda de Portugal, guardava semelhanças com o boliche. Uma pelota de madeira era atirada, por uma pista de terra ou tábua, para derrubar pinos que tinham diferentes pontuações.
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Feito esse percurso, finalmente estabeleci os objetivos:
a) mapear a presença do jogo da bola no cenário urbano do Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX;
b) entender sua dinâmica de funcionamento;
c) analisar suas representações, ou melhor, o trânsito de representações em função das mudanças contextuais.
Faltava ainda definir as fontes que iria utilizar para a realização da investigação. Isso era, de fato, um elemento dificultador por alguns motivos. Para o século XIX, podia contar com periódicos e farta documentação, mas no que tange ao século XVIII:
a) não há periódicos;
b) a documentação é restrita já que a Câmara do Rio de Janeiro pegou fogo em 1790;
c) essa documentação existente é pouco explícita no que tange ao cotidiano da cidade;
d) a documentação não é de fácil acesso e está manuscrita num português distinto do atual na forma e conteúdo.
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A saída que encontrei foi:
a) no que tange ao mapeamento, utilizar a documentação fundiária, cruzando escrituras e mapas do período;
b) no que tange à dinâmica e representações, utilizar dois tipos de documentação – testamentos ou inventário e documentos policiais.
Foi possível identificar que a prática era mais antiga do que sugeriram os historiadores.
Já em 1674, encontramos referência a um estabelecimento de jogo da bola. Cruzando vários documentos, descobrimos que se encontrava nas redondezas da atual Rua Miguel Couto, próximo do Morro da Conceição. Ao invés de três espaços, encontramos oito estabelecimentos espalhados pela região central. Na Rua do Hospício e no Beco dos Cachorros, havia mesmo mais de um estabelecimento. O primeiro logradouro se conformou como um dos primeiros da cidade vocacionados ao entretenimento. No segundo, o jogo tinha relação com a igreja católica, com o Mosteiro de São Bento. Os estabelecimentos pertenciam a comerciantes que precocemente se envolveram com a gestação de um mercado ao redor dos entretenimentos.
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Os estabelecimentos sempre tinham alguma estrutura de bebidas e alimentação, sendo em muitos casos, na verdade, mais uma atração oferecida por botequins, tabernas e armazéns. Eram espaços frequentados por gente dos setores médios e populares, interessados nas performances, no clima de festa, mas também nas apostas que existiam entre os jogadores. Eram espaços muito turbulentos, marcados pela agitação e barulho. Foi mesmo um dos principais divertimentos do século XVIII.
Com isso atraíram a atenção de autoridades governamentais. Nos anos 1790, passou a se exigir licença da Câmara. Os estabelecimentos foram constantemente fiscalizados pela polícia, em função dos distúrbios que ocorriam nas partidas, boa parte ocasionados por polêmicas com as apostas. Além disso, a comum oferta de bebidas alcoólicas contribuía para que os Jogos da Bola se tornassem suspeitos.
Esses conflitos incomodavam uma parte da população, e ainda mais os dirigentes da cidade, não só porque transtornavam a ordem pública como também porque maculavam a ideia de valorização de práticas civilizadas que começou a melhor se delinear na transição de séculos. O crescimento dos entretenimentos, notadamente os mais populares, desencadeou esse tipo de apreensões e o aumento de iniciativas de controle, também manifestas em espaços de dança e casas de jogos.
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Para ler o trabalho completo:
MELO, Victor Andrade de. MUDANÇAS NOS PADRÕES DE SOCIABILIDADE E DIVERSÃO: O jogo da bola no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). História [online]. 2016, vol.35, e105. Epub Dec 19, 2016. ISSN 1980-4369. http://dx.doi.org/10.1590/1980-436920160000000105.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0101-90742016000100514&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
Fonte: https://historiadoesporte.wordpress.com/
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