12/04/2015
Por Jorge Knijnik
Para Airton e Daniel
Airton foi uma das figuras mais notáveis que conheci ao longo da minha infância, e que me marcou por toda a vida. Um pouco mais velho que eu, Airton bem cedo já apresentava as suas credenciais físicas de adolescente: lembro que ao redor dos seus 13 ou 14 anos ele já tinha uma barba espessa e muitos pelos ao longo do corpo. Entretanto, o que o fez inesquecível foi ser um garoto com necessidades especiais, que frequentava o mesmo acampamento de verão no qual eu passava os meus meses de janeiro. Neste acampamento de férias, próximo a Campos do Jordao, uma região montanhosa no Estado de São Paulo, fazíamos milhares de atividades: muitos esportes, artes, escaladas, passeios de barco, excursões a cavalo, passeios em cachoeiras e montanhas… Também aprendíamos a colaborar com a coletividade, limpando nossos dormitórios, servindo as refeições, arrumando as mesas depois que todos comiam, cuidando dos menores… Tempos de muita diversão e aprendizado.
Acredito que Airton jamais saiu da memoria de ninguém que acampou naqueles anos: seu sorriso maroto, sua espontaneidade, sua gentileza e ingenuidade, o transformaram em um líder em meio aos 200 garotos que lá veraneavam. A singularidade de Airton fez com que ele virasse um exemplo admirado por todos nos. Independentemente de suas aparentes dificuldades, Airton era incluído, ou se incluía, em todas as atividades: fazia teatro, pescava, andava a cavalo, acampava, jogava bola e se divertia conosco, aprendia e ensinava. Era aplaudido por todo mundo. Às vezes, no refeitório, pegava o microfone e fazia uma fala sobre seus sentimentos – ou apenas cantava. Era carregado nos ombros em virtude de sua suavidade. Sua voz desafinada de adolescente ainda hoje ecoa em meus ouvidos. Quando a ultima noite do acampamento chegava, nos reuníamos em volta da fogueira, cantando e chorando de saudades; ele chorava conosco, nos abraçávamos e prometíamos que nos veríamos de novo no próximo ano.
Airton voltou a minha mente assim que eu conheci o Sutherland Titans Football Club, um clube de futebol amador da região de Sutherland Shire, ao sul de Sydney, no estado de New South Wales, na Australia. O clube foi criado em 2006, após uma primeira temporada-teste em 2005, na qual o embrião daquilo que viria a se tornar o Titans FC competiu sob o nome de Sutherland Shire Special Division, com quatro times chamados de Pandas, Polars, Koalas and Grizzlies (urso-pardo). O sucesso destes times foi tamanho, que no ano seguinte, com o apoio de outro clube local (Gymea FC) o Titans FC foi fundado, tornando-se o 26º clube da Sutherland Shire Football Association (SSFA), a associação que congrega todos os clubes de futebol da região – e que se autodenomina a ‘maior associação de futebol amador da Australia’ – slogan muito bem afinado com o típico ideário australiano de ser o ‘maior do mundo’ em alguma coisa o tempo todo.
Entretanto, o trabalho do Sutherland Titans Football Club (STFC) é digno da ‘maior solidariedade do mundo’. O clube tem por objetivo incluir crianças e jovens com necessidades especiais na sociedade através do futebol. Como eles fazem isso? Participando das variadas competições, dos diversos grupos etários que disputam as competições da SSFA. Exatamente, eles participam das competições ‘normais’[i]; a cada final de semana, as equipes que estão no ‘chapéu’ naquele dia, vão ao campo dos Titans e jogam contra um grupo deles. Todos se divertem e aprendem. As crianças adversarias ajudam os jogadores titânicos, mas ao mesmo tempo aprendem lições de humanidade e humildade. Juntos, todos e todas buscam o mesmo objetivo: criar condições para que aqueles jogadores e jogadoras tenham um momento apenas para si mesmo, corram, brinquem e aprendam paulatinamente a se tornarem independentes de seus pais ou cuidadores, em um ambiente lúdico e de total respeito.
Independência para os titânicos é a palavra-chave. Muitas crianças com necessidades especiais precisam que, no inicio de sua jornada esportiva, seus pais joguem junto com elas dentro do campo. Pouco a pouco, eles vão se libertando desta necessidade e ficando mais independentes. Não é um trabalho fácil. Muitas vezes, porem, os jogadores e as jogadoras titânicos requerem pessoas que os ajude, que fique dentro do campo dando apoio e segurança, mostrando o caminho, segurando as mãos ou simplesmente sorrindo e mostrando que estão lá para o que der e vier. Este trabalho é feito por voluntários, adolescentes ou jovens adultos que se dirigem ao campo dos Titans aos finais de semana com o intuito de ajudar a organização da rodada: arrumar os campos no inicio e ao final do dia, fazer a demarcação das linhas, colocar e tirar as traves e redes, fazer o churrasco, trabalhar na cantina, apoiar os jogadores, brincar com eles, dar e receber. As relações ali estabelecidas são duradouras e muito satisfatórias.
Voluntarismo também é outra palavra de ordem para o STFC. Todos os que organizam e dirigem o clube são voluntários. Um trabalho árduo e recompensador. A cada ano, o clube cresce e atinge mais pessoas, agregando mais jogadores. Com isso, ao longo desta década de existência, eles já mudaram três vezes de ‘casa’; se nos seus primeiros anos de vida os Titans jogaram em campos administrados por outros clubes, em 2011 eles finalmente conseguiram um campo próprio, onde podem treinar, sediar jogos, realizar suas atividades sociais e guardar seus equipamentos esportivos. Ao mesmo tempo, contudo, ter uma casa própria trouxe novos desafios e responsabilidades, os quais os voluntários titânicos encaram com a sua mais que conhecida e destemida coragem titânica.
Amizade e solidariedade são mais duas palavras-chave para os Titans FC. Os voluntários do clube estão sempre organizando campanhas para levantar fundos a fim de realizar as diversas atividades do clube, tais como cuidar dos gramados, comprar materiais esportivos, limpar os vestiários e banheiros, pagar as contas de luz, entre tantas outras necessidades materiais. Noites de Zumba, tardes de fitness, churrascos, doações de empresas e amigos… Graças a comunidade local, os Titans vem enfrentando com afinco as suas dificuldades, e a cada ano crescem e incluem mais jogadores em seu plantel.
O Titans FC pretende promover um ambiente inclusivo com os mais altos padrões éticos possíveis. Todos os seus membros, jogadores, familiares e voluntários devem aderir e assinar o seu código de conduta, o qual inclui, entre outras clausulas: o respeito aos direitos e a dignidade alheia; comprometer-se a prestar um serviço do mais alto nível; jamais usar a própria ligação com o Titans FC para autopromoção, tampouco para promover valores pessoais, políticos ou religiosos; evitar qualquer tipo de assedio ou discriminação contra os participantes; entre outros 12 pontos que pretendem assegurar um divertimento sadio, livre e positivo para todos os participantes do clube.
Todas as crianças e jovens que jogam contra os times do Titans FC saem desta experiência gratificados, com vontade de ajudar mais. Eles são unanimes ao afirmarem a beleza daqueles momentos e ao salientarem o prazer de praticar esporte com outros objetivos que não exclusivamente a competição e a vitória.
O Airton iria adorar jogar pelo Titans. Talvez ele virasse um diretor, ou um técnico do clube. Talvez um goleador! Tenho certeza, entretanto, que o espirito dele vive aqui em meio ao STFC. Airton sempre foi um cara demasiadamente forte, um Titã de verdade, com o qual eu passei alguns verões no inicio da minha adolescência, e com quem tive a honra de brincar junto, de abraçar e de carregar nos braços – e no coração. Para ele, e para o Daniel, dedico esta humilde crônica. Go Titans! Continuem nos enchendo de luz.
Fonte: www.historiadoesporte.wordpress.com
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