20/04/2015
Olá,
Sabem aqueles guardados que todo historiador tem, para um dia, quem sabe, acessar novamente e produzir algum texto sobre o assunto? Pois é, durante as pesquisas de doutorado, “guardei para depois” uma questão que nunca saiu da minha cabeça. Talvez seja a hora de rascunhar algo sobre o assunto.
Certo dia, pesquisando fontes sobre a história do turismo no Brasil na Era Vargas, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, me deparei com um periódico chamado Travel in Brazil, talvez o mais importante veículo de divulgação turística do país no exterior na década de 1940. Trata-se de uma publicação em língua inglesa, produzida durante o Estado Novo pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), para circular junto ao público estrangeiro com interesse no Brasil.
As edições, com uma tiragem de 25.000 exemplares, eram distribuídas nos Estados Unidos e nos luxuosos navios de cruzeiro que aportavam na Praça Mauá, nos idos dos anos 1940, trazendo os gringos da terra do Bom Vizinho para conhecer as belezas da capital federal e dela partirem para outros destinos também já famosos no exterior, como Ouro Preto.
Folheando as edições semestrais existentes na BN, publicadas entre 1941 e 1942, é possível notar a percepção da principal agência do regime varguista quanto ao papel estratégico do turismo para a promoção da nação junto aos Estados Unidos, país com quem o Brasil manteve uma estreita relação diplomática durante o período.
Um time de nossos mais ilustres artistas e intelectuais da época, como Mário de Andrade, Cecília Meireles, José Lins do Rego, Manuel Bandeira e Raquel de Queiroz foi escalado para divulgar em longas e belas páginas, ilustradas com fotografias exuberantes em preto e branco, os brasileiros, o patrimônio histórico, a cultura popular e a diversidade regional do país como nossos potenciais recursos para o turismo. O material de em média 33 páginas é de fato muito caprichado, feito para encher os olhos dos nossos visitantes preferenciais.
De repente, no volume, 2, número 4, de 1941, apareceu algo incomum ao conjunto do material visto em todos os exemplares da revista disponíveis na Biblioteca. Em vez das longas matérias sobre a cultura popular, cidades interessantes para se conhecer no país ou a oferta comercial de destinos, com apresentação dos serviços, da infraestrutura turística, dicas de passeio e outros, eis que a Escola Nacional de Educação Física e Desportos surge como uma das principais estrelas da publicação.
A Escola Nacional de Educação Física e Desportos, criada por Decreto-Lei em 1939, foi assunto de 7 páginas, assinadas por J. M. de Souza e ilustrada com belíssimas imagens de alunos exercitando-se ao ar livre, tendo como cenário a Praia de Copacabana e seu calçadão, que àquela altura já eram mundialmente conhecidos.
A associação entre a primeira instituição superior de ensino de Educação Física no país e tais ícones turísticos tem um sentido lógico numa revista de turismo, mas logo a matéria vai assumindo um outro tom. Detalhes sobre os conteúdos curriculares, a formação do corpo docente, a procedência dos alunos matriculados, o perfil desejado dos estudantes, as habilitações oferecidas pela Escola e outras informações acadêmicas foram bastante enfatizados. Olhando mais atentamente, percebe-se que o tom propagandístico, repleto de adjetivos que exaltavam as qualidades nacionais, pendia mais para o lado da propaganda do ideário estadonovista e da apresentação de uma das mais novas instituições que compunham o projeto de reconstrução nacional de Vargas, do que propriamente para o turismo.
A tônica do texto era a importância da ENEFD, incorporada à Universidade oficial do país, a Universidade do Brasil, para o projeto de construção de uma “nova ordem moral, higiênica e patriótica”, que conduziria o país à modernização. A matéria vincula diretamente a ENEFD ao Estado Novo e a apresenta como uma das mais importantes ferramentas para se alcançar os objetivos do regime. Tinha, portanto, um papel particularmente importante na disciplinarização dos corpos e mentes visando à construção do homem novo[1], o que não por acaso foi tantas vezes ressaltado no texto.
O leitor estrangeiro ficaria sabendo pelas páginas da revista Travel in Brazil que os profissionais formados na ENEFD seriam, então, multiplicadores dos valores difundidos na instituição e no país, levando para as suas regiões de origem, de todos os cantos do Brasil, um conhecimento capaz de auxiliar na preparação de nosso povo para construir um futuro de progresso da moderna nação.
Selecionei abaixo alguns extratos do texto publicado na revista, em livre tradução. A Escola Nacional de Educação Física e Desportos:
- “Cria uma consciência moral e cívica que marca um elemento ativo e eficiente de cooperação para a unidade nacional”;
- “É prova clarividente das realizações da administração do atual governo do Brasil”;
- “A ENEFD é boa referência da política inteligente de reconstrução nacional, em operação no Brasil.”
- [Tem o papel de] “inculcar hábitos higiênicos e construir o espírito de cooperação e solidariedade cívica em todas as classes, e acima de tudo dando-lhes um senso de esforço e organização para a melhoria do padrão de vida de todos.”
- “(…) emerge de um completo programa político de governo empenhado em dar à sua população uma vida feliz e à nação uma ampla e sólida soberania”.
- [Tem o papel de] “Formar profissionais que colaborem com o governo para o progresso e civilização da nação”.
Tudo leva a crer que a divulgação da ENEFD nesse periódico de turismo tinha menos a ver com as práticas turísticas da época e com os atrativos visitados na capital federal e mais com a formação de uma opinião do público externo sobre o país. A revista Travel in Brazil mostrava-se, assim, um interessante espaço para a divulgação da jovem nação em construção que sintetizava por meio de suas novas instituições, como a ENEFD, o sentido da modernização que o regime do Estado Novo procurava construir.
[1] Recomendo a leitura da dissertação de Mestrado de nosso Victor Melo, que investiga com profundidade a história dessa instituição considerada patrimônio da Educação Física no Brasil. Ver: MELO, Victor. Escola Nacional de Educação Física e Desportos: uma possível história. Campinas-SP: UNICAMP: Programa de Pós-Graduação em Educação Física, 1996.
Fonte: www.historiadoesporte.wordpress.com
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