Só podia ter parte com o diabo! Um “cavalo de ferro” no Rio Grande do Sul do século XIX

24/05/2015


Cleber Eduardo Karls

cleber_hist@yahoo.com.br

A bicicleta foi uma das marcas da prosperidade tecnológica do século XIX. Esta novidade que foi apresentada ao mundo pela primeira vez em Paris no ano de 1861, tanto causava admiração quanto espanto nas suas primeiras aparições. Ferramenta do homem para superar os seus limites, máquina que substituíra o animal nos desafios do seu extremo. O desempenho que o velocípede proporcionava estava baseado tanto na capacidade de engenhar, quanto na técnica e na força física do ser humano. O tempo agora era o mais ferrenho adversário, o homem deveria enfrentá-lo cada vez com mais pujança e superar os seus próprios limites. A ciência, a disciplina, as ideias modernas, faziam das bicicletas e suas competições a própria tradução de um tempo. Novos materiais, medidas, conceitos, conhecimentos, nomeavam as máquinas de duas rodas como um símbolo do progresso em um palco privilegiado, a cidade.

Acontece que o contato inicial com estas “engenhocas” no Rio Grande do Sul parece não ter sido assim tão tranquilo. A primeira bicicleta de que temos notícia foi descrita pelo mecânico Adolfho Pompílio Mabilde. Este estava estabelecido com sua oficina na então Colônia de Santa Cruz, e ao final do ano de 1869 teve de ir a São Leopoldo a negócios. Chegando àquela cidade de colonização alemã, próxima a Porto Alegre, se deparou com o Sr. Alfredo Dillon, filho de comerciante porto-alegrense que lá estava divulgando uma nova máquina importada, americana: um velocípede que foi chamado de “cavalo de ferro”.

A demonstração do comerciante causava furor, espanto, indignação! Havia os que diziam que o ciclista tinha parte com o diabo, pois corria numa máquina em que não se via ninguém puxar a frente ou empurrar atrás. Corria ligeiro feito um raio, e o pior de tudo era ter somente duas rodas, uma atrás da outra!

O mecânico Mabilde, vendo que o Sr. Dillon embarcara no vapor rumo a Porto Alegre, origem do velocípede, fez o mesmo para que pudesse, curiosamente, especular sobre todos os detalhes daquela curiosa máquina. Logo, o hábil braçal percebeu que não era necessário nenhum pacto com o diabo para que se “domasse” aquela engenhoca. Era uma verdadeira máquina infernal! Todas as notas foram tomadas para que em sua oficina em Santa Cruz um equipamento daqueles fosse montado.

O velocípede consistia em uma estrutura com uma roda dianteira de 90 cm e uma traseira de 80 cm de diâmetro. Eram feitas em madeira com arco de ferro, para aperto das cambotas, bem feitas e leves em relação à resistência. A viga curva, em que havia a sela comprida, era uma mola de aço chato maciça, de ferro forjado. Assim era o resto da ferragem, excetuando a bucha que girava a guia, que era de ferro maleável.

Nas manivelas, que eram fixadas diretamente sobre os extremos do eixo da roda grande, tinha os pedais de madeira torneados em forma de carretéis como os de linha, girando sob espigas de ferro. A pintura era toda de vermelhão, com listras brancas e envernizadas. O senhor Adolfho Mabilde se gabava de ter em Santa Cruz produzido a segunda e a terceira bicicleta do Rio Grande do Sul, juntamente com seu irmão e sócio. Com as devidas adaptações na construção, a máquina circulou pelas ruas da pequena colônia causando tanta admiração quanto o fez em São Leopoldo.

Mesmo sendo um equipamento um tanto tosco para os dias atuais, com um funcionamento grosseiro e simples, o mecanismo causou espanto e deslumbramento dos gaúchos à época. A tecnologia, a engenharia, a possibilidade de locomoção rápida sem a ajuda de animais era uma novidade bem-vinda. Podemos perceber que esta motivação foi ampliada constantemente com o desenrolar do século XIX e a chegada do XX. O “cavalo de ferro” passou a fazer parte do cotidiano dos gaúchos, tanto para o seu lazer, funcionalidade, trabalho, quanto para as disputadas esportivas.

O Sr. Adolfho passou a morar em Porto Alegre no ano de 1873 onde adquiriu o velocípede da loja do Sr. Dillon, do qual havia assistido a demonstração em 1869. Este o serviu por muito tempo, assim como outras bicicletas (melhoradas) construídas pelo próprio, até o ano de 1886. Novos modelos vindos da Europa, mais leves e resistentes tornaram aquelas antigas máquinas obsoletas.

Em janeiro de 1886, a imprensa porto-alegrense declarou uma novidade para a cidade, as corridas a velocípedes, que deveriam se realizar no Jockey-Club Porto-Alegrense. Esta nova modalidade que estava estreando na capital do Rio Grande do Sul, e que conquistaria apaixonados desportistas, trazia consigo uma série de significados. Era uma representante de reconhecidos valores modernos, como a tecnologia e a velocidade, que tão fortemente estariam presentes no cotidiano das cidades nos séculos XIX e XX. O “cavalo de ferro” já não espantava, pelo contrário, cada vez mais atraía a atenção dos porto-alegrenses para as suas disputas.

 

 

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