Sobre a Copa do Mundo e o turismo sul-americano

27/07/2014


Por Valeria Guimarães

 

Não é de hoje que sabemos que turismo e esporte estão intimamente ligados. Na sua forma moderna, são duas práticas sociais gestadas simultaneamente, com as transformações sócio-culturais e econômicas decorrentes da modernidade, inclusive o desejo de se praticar o lazer ao ar livre. Já comentamos aqui que o turismo, nos primórdios do século XX era considerado uma modalidade esportiva. Viajar por esporte ou viajar para ver ou praticar algum esporte sempre fez parte da cultura do turismo moderno.

Neste post atenho-me à chamada invasão argentina, a chegada em massa dos hermanos amantes do futebol às cidades-sede dos jogos de sua seleção na Copa do Mundo do Brasil, quer dizer, da FIFA, no Brasil. Voltando ao post do nosso amigo André Alexandre Guimarães Couto referente à retórica da imprensa esportiva sobre o Maracanazo e o agora “Mineirazo” (http://historiadoesporte.wordpress.com/2014/07/13/por-que-nao-esquecemos-de-1950/), é possível fazer o mesmo exercício e perceber os discursos construídos por setores expressivos da imprensa e também por alguns profissionais do turismo sobre a presença dos “durangos” (e esse termo tomo de empréstimo da imprensa) argentinos entre nós, fala sempre recorrente e depreciativa.

Nos estudos acadêmicos em turismo muito se propala a importância da relação turismo e inclusão social em nossos dias. O turismo não mais como um privilégio, mas como um instrumento de democratização que está diretamente ligado ao direito ao lazer. Na prática, o que vimos na cobertura dos jornais, salvo raras exceções, e nos depoimentos de alguns especialistas do turismo foi um total ataque ao que parecia-lhes ser uma invasão bárbara: sujeitos taxados de despossuídos e mal educados que não queriam ou não podiam pagar pelos caríssimos serviços necessários à sobrevivência no país da Copa e causavam constrangimentos aos residentes, não deixando nada de positivo por aqui. Choveram comentários intolerantes e xenófobos dos leitores ao final das matérias publicadas nos sites da imprensa e nas redes sociais. Essa motivação, sem dúvida, veio da repetição explícita ou velada no discurso dos formadores de opinião de que o argentino é um povo desordeiro e indesejável, apimentada, é claro, pela rivalidade futebolística.

Uma apresentadora de televisão assim se referiu à fan fest na final da Copa: “Vamos ver como está o tumulto na fan fest lá na Praia de Copacabana”, em alusão à presença massiva dos argentinos. Não se viu na matéria nenhum tumulto e ela não se referiu assim a nenhuma outra fan fest. A repórter, que fez sua participação ao vivo do local, relatou com entusiasmo uma grande festa e entrevistou alguns dos animados participantes, contrariando as expectativas da apresentadora.

Por outro lado, muito se endeusou o comportamento dos alemães durante a Copa e de outros povos vindos do hemisfério norte. Ao mesmo tempo, já é frequente entre nós em fontes diversas, como os jornais e os blogs de viagem, a publicação de dicas de como gastar pouco viajando pela Europa, recado destinado a todos os públicos, especialmente aos intercambistas e mochileiros, e visto como uma atitude “cult”, moderninha e descolada.

Nosso maior emissor de turistas, em qualquer época e não só durante os megaeventos ou alta temporada, entretanto, sofreu com uma avalanche de matérias depreciativas e com as críticas do setor turístico sobre os seus gastos muito contidos. E reforçaram-se as desigualdades e estereótipos pelo turismo. Li as opiniões de alguns profissionais em turismo conceituadíssimos no mercado e influentes formadores de opinião a respeito de o turismo não ser para qualquer um, que esse não era o público pretendido por não deixar nenhum legado financeiro e sujar a cidade, envergonhando a todos.

Antes de culpar o visitante e taxá-lo de indesejável, cabe refletir muito seriamente sobre o assunto e questionar por que não planejamos e não criamos condições para receber os vizinhos amantes do futebol e turistas costumazes e apenas fizemos propaganda turística em seus países, aguçando ainda mais o seu desejo de nos visitar. Isso incluiria reconhecer que seria preciso garantir que esse público também pudesse se instalar e gastar na cidade, com serviços e preços mais acessíveis a esses visitantes e também aos moradores, que sofreram com o alto custo de vida provocado pela Copa do Mundo. Da mesma forma, por que não instruímos os visitantes sobre as leis em nosso país e não fomos tão atuantes nos casos de comportamentos indevidos de alguns, como nos episódios de racismo?

Em resposta, o que se viu e tanto incomodou foram o improviso, a sobrevivência precária, mas também o direito conquistado de estar aqui e desfrutar, cada um à sua maneira, desse evento caríssimo do qual muito poucos de fato saíram lucrando.

Na contramão desse discurso corrente, autoridades municipais e estaduais têm dado declarações sobre a importância de se criar para 2016 uma infraestrutura na cidade-sede das Olimpíadas para acolher os viajantes sul-americanos que chegarem em seus veículos particulares, acomodando-os em campings em áreas públicas. Uma posição sensata que vem tardiamente com o aprendizado da experiência da Copa.

Fato é que as Olimpíadas estão quase aí e o Rio de Janeiro precisa melhor se preparar para receber os turistas sul-americanos que praticam viagens em moto-homes, carros particulares, motocicletas e até bicicletas, de forma digna. Conforme foi possível constatar nos estudos desenvolvidos para o doutorado no SPORT, sob a orientação de Victor Melo, a cultura do turismo argentino é o rodoviarismo, desde os tempos em que o país era um dos mais ricos do mundo e construiu uma belíssima malha rodoviária, das mais modernas do planeta. Foi um dos pioneiros nesse tipo de turismo, que está entranhado na alma do viajante platino. Do mesmo modo, o esporte está intrinsecamente ligado à cultura do argentino moderno, fato que se vê historicamente com as intensas influências, adaptações e inovações feitas a partir das correntes imigratórias européias para a Argentina na virada do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Para encurtar a história: amei a farofa argentina porque foi possível ensinar a uma cidade caríssima que pretendeu ser vendida unicamente aos viajantes mais abastados que um megaevento esportivo que mobiliza a paixão de pessoas de todas as classes pode e deve ser acessível e que a mesma precisa se planejar para acolher de forma hospitaleira todos que a visitam.

A lição que fica é que o turismo brasileiro poderia ter saído ganhando muito mais se o público-alvo idealizado como o turista desejável na Copa do Mundo não fosse unicamente aquele que utiliza os serviços mais requintados e gasta muito em pouco tempo de permanência no destino. E quanto às queixas de desordens provocadas pelos visitantes “durangos” argentinos e de outras nacionalidades sul-americanas, que estes que criarem algum tipo de constrangimento em nossa casa sejam punidos na forma da nossa lei, mas que não generalizemos nem sejamos xenófobos com o nosso principal visitante o ano inteiro ou com qualquer outro que queira ter o prazer e o direito de participar dos maiores espetáculos esportivos do mundo, num congraçamento dos povos dentro e fora das caríssimas arenas.

2016 vem aí.

 

Fonte: www.historiadoesporte.wordpress.com

 

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