Integra
Após quase 20 anos, revi o Professor Boaventura há poucos meses, mais precisamente no dia 29 de março de 2005, por ocasião da Defesa da Tese de Doutorado do Professor José Roberto Gnecco, que o havia entrevistado com respeito à incorporação da atual Escola de Educação Física e Esporte da
Universidade de São Paulo, ao final da década de 1960. Na oportunidade, eu, estando na Banca e o Professor Boaventura na plateia, com uma justificativa qualquer (perdoem-me os presentes...) narrei o episódio que presenciei por volta de 1982, quando era docente da EEF-USP e ele meu Chefe de Departamento. Estava eu sentado na sala dos professores, em frente à sala da Chefia do então Departamento de Ginástica, quando nela adentrou um oficial do exército, fardado, e pediu ao Professor Boaventura que dispensasse o filho, aluno em algum curso da USP, das aulas de Educação Física (a Educação Física era disciplina obrigatória para todos os Cursos, e o Professor Boaventura a autoridade responsável pela administração dessa obrigatoriedade), pois ele já as havia frequentado em outra Universidade. O Professor Boaventura negou o pedido, alegando que o conteúdo do programa cumprido pelo rapaz (suponho que estava com ele em mãos) não equivalia ao da USP. Diante da negativa, o pai apelou: “Mas eu sou oficial do Exército!”, ao que o Professor Boaventura retrucou: “Padre,militar ou professor, somos todos brasileiros e temos que fazer alguma coisa por esse país, o senhor não concorda?”. Como ele poderia não concordar? Quepe debaixo do braço, o oficial saiu “pisando duro”, como se diz, sem levar o favor que queria. Lembrei então aos presentes, a maioria jovens, que, mesmo já estando o país na fase da “abertura política lenta e gradual”, àquela época ainda era muito arriscado confrontar os militares, mesmo em uma situação tão particular como aquela.
No intervalo da Defesa, ele me procurou, disse que “lembrava um pouco de Mim”, e se vangloriou por estar completando em breve 90 anos. O porte altivo, a pele rosada e com poucas rugas de modo algum denunciariam sua idade avançada. Conforme nos informou Laércio Elias Pereira, seu amigo de longa data, até pouco tempo atrás o Professor Boaventura ainda ministrava aulas de ginástica em um clube de São Paulo.
Não conto aqui estas histórias para favorecer qualquer espécie de apologia a personalidades. Pelo contrário, quando docente da EEF-USP, tive atritos com o Professor Boaventura, e ouvi outras histórias que o desabonavam gravemente. Na verdade eu, assim como a maioria dos docentes iniciantes na carreira universitária e os doutores recém-titulados no exterior, que buscavam direções renovadoras para a Educação Física, não gostávamos muito dele. De fato, não seria difícil, à época, qualificá-lo como “conservador”, “autoritário”, “de direita”. Mas, depois daquele episódio que presenciei na EEFUSP, relativizei minha opinião. Hoje, com distanciamento suficiente, ouso uma interpretação. O Professor Boaventura, assim como outros de sua geração, era um homem de fé na Educação Física. Ele acreditava na Educação Física que praticava, envolvia-se profundamente com ela, porque a vivia. Mas essa fusão teve um custo: fez dos princípios valorativos que elegeu para a Educação Física também os princípios da sua vida pública. Talvez por isso, em nome desses princípios, tenha tanto acertado como errado. Provavelmente cometeu injustiças com muitas pessoas, porque não se pode sempre assimilar o outro aos nossos próprios valores, nem exigir que o outro nos compreenda plenamente, pois nossas intencionalidades não são totalmente transparentes nem para nós próprios. Talvez por isso não se possa assumir um “meio-termo” quando se fala do Prof. Boaventura.
Ele será “anjo” ou “demônio”, mas não se pode negar que junto com o Prof. Boaventura morreu um pouco da Educação Física, ou melhor, morreu um estilo de Educação Física, morreu um aspecto da sua tradição. Quem quisesse entender o que era uma aula de Educação Física alimentada pela tradição pedagógica da “ginástica geral” (hoje temos apenas ginásticas especializadas) e pelo esporte, este ainda sob o controle pedagógico da Educação Física (este é o legado de Auguste Listello) que assistisse as aulas do velho Boa para grupos de homens adultos e idosos, como as que eu assisti na EEF-USP em meados da década de 1980. Estava ali, em ato, a formação integral do indivíduo (bio-psico-social), que agora buscamos exasperadamente apreender por meio das representações linguísticas dos discursos científico e filosófico.
Lembro agora de outro episódio envolvendo o Professor Boaventura, também em meados da década de 1980. Um docente da EEF-USP, recém-doutorado nos EUA, expôs sua participação em um importante evento científico internacional da área, no qual, segundo ele, a questão crucial foi “O que a Educação Física ensina?”. O Professor Boaventura esboçou um comentário, iniciado por um “mas...”; não prosseguiu, calou-se e esboçou um sorriso para mim enigmático à ocasião. Hoje percebo que sorriu porque a “questão crucial” lhe era inútil, pois ele sabia o que a Educação Física ensinava, porque a vivia, só talvez não o conseguisse exprimir em palavras científica e filosoficamente fundadas. Por outro lado, não me consta que tivesse se oposto à criação do Curso de Mestrado em Educação Física da USP, o primeiro do país, criado em 1977.
Nada há de novo ou surpreendente no que expus até aqui, não fosse o fato da renovação dessa tradição, da qual o Professor Boaventura foi um legítimo representante, estar bloqueada pela própria Educação Física. É o que passo a (tentar) explicar.
Em várias universidades brasileiras constituímos uma massa crítica (de cuja ausência muito se falava na década de 1980) com formação em Educação Física, de alta qualidade acadêmica. São nelas que se poderá gestar algo novo, desde que, engajados em um projeto (do latim “projectus”, ação de lançar à frente) de Educação Física e para a Educação Física. Podemos agora ter a nosso favor um instrumental poderoso, de que não dispunha o Professor Boaventura: o método científico. Mas desde que a Ciência moderna pôs-se em marcha, não cessa de a tudo ob-jetivar (do latim ob- diante de; jact- lançar, colocar à frente), quer dizer, distanciar-se dos fenômenos, colocá-los diante de si, para analisá-los e explicá-los.
Para nosso desespero, começamos a perceber que as chamadas Ciências Humanas também o fazem, e ao fazê-lo, os historiadores, sociólogos e antropólogos da Educação Física retiram-se do interior do seu próprio projeto e limitam-se a examiná-lo com as lentes dos modelos teóricos gestados em outras áreas. A tal ponto chegou esta retirada que alguns jovens doutores, embora docentes em curso de graduação em Educação Física, gabam-se por publicar e participar de sociedades científicas de outras áreas, para as quais o esporte, o jogo ou a ginástica são apenas detalhes, circunstâncias. E, ao abandoná-la, vêem nisso um sinal de avanço da Educação Física, porque reconhecida por áreas academicamente mais legitimadas. Quem se atreve a apontar-lhes essas contradições é imediatamente tachado de “corporativista”. Daí também decorre a sensação de que apenas os biólogos/fisiólogos de fato produzem pesquisas em Educação Física, porque utilizam a categoria do exercício; ledo engano, porque também a objetivaram, e tanto faz que se apresentem nos Congressos de Biologia Experimental ou nos da Educação Física. Daí também entendermos o apelo desesperado dos professores de Educação Física escolar que, maltratados e acuados por todos os lados, não se vêem nos conhecimentos produzidos pelos “doutores”, mas, pressentindo que há algo importante neles, nos pedem ajuda.
Já disse um importante filósofo que estar vivo é empenhar-se continuamente em projetos no mundo, é confundir-se com eles - e temos que admitir que o Professor Boaventura tinha um projeto de Educação Física, empenhou-se nele, con-fundiu-se com ele. Podemos, à luz do que sabemos hoje, exercitar nossa capacidade de reflexão crítica e apontar-lhe as limitações, pois, afinal, toda experiência humana singular é e histórica. Mas de que serve o que sabemos se não o retornamos à Educação Física viva? Incomodados, em crise e cheios de dúvidas, fomos às diversas disciplinas científicas e à filosofia, em um primeiro movimento, para melhor compreender a Educação Física, e depois, realimentar o nosso projeto de Educação Física. Mas a maioria de nós, fascinados pelas respostas encontradas (às vezes de modo muito fácil e rápido), passamos a acreditar demasiadamente nelas, e estamos sendo incapazes de concretizar este segundo movimento, de retorno ao interior da Educação Física viva, para re-interrogar nossas dúvidas e a cada momento nos remetermos ao projeto inicial que nos impulsionou. Só para isso nos poderá servir o método científico (e não “a” Ciência, entidade abstrata): para abalar nossas crenças, para que a tradição não nos imobilize, para que possamos sempre renová-la, mas também admitindo que ciência alguma esgotará completamente a complexidade, ambiguidade e originalidade da vida. Caso contrário, mataremos a Educação Física, ao transformá-la em objeto de análise fragmentária de cada uma das diferentes teorias científicas que elegemos.
Desse modo, se quisermos ser honestos conosco mesmos e com a comunidade da Educação Física, devemos apontar qual é o nosso projeto de Educação Física, e como o vivenciamos e perseguimos no ensino, na pesquisa e na extensão. Mas se continuarmos a negar a possibilidade de renovação do projeto da Educação Física a partir do seu próprio interior, condenamo-nos a realizar os projetos dos outros: publicar artigos em algum “American Journal of alguma coisa” (este é o projeto da Ciência, tal como a Capes a reduziu), descobrir os futuros craques do esporte (o projeto das mídias), compensar as mazelas de uma sociedade violenta e desigual (o projeto dos políticos profissionais).
A Educação Física morreu. Finalmente os historiadores, sociólogos e antropólogos, poderão aliar-se aos biólogos e dissecá-la (quer dizer, objetivá-la) livremente, e a partir disso, em um abuso do saber, arrogarem-se o direito de ditar o que a Educação Física deve ou não fazer, o que pode ou não ser, como outros já fizeram no passado, mas desta vez sem vozes que venham em defesa de outras interpretações. Outros poucos buscarão desesperadamente ressuscitá-la, em acessos de nostalgia. Em ambos os casos fracassarão, porque não é possível existir a vida morta, só a vida que quer viver.
E a vida viva da Educação Física está nas escolas, clubes, academias, quadras, ginásios, piscinas, ruas, favelas, praias, parques públicos, terrenos baldios e onde quer que crianças, jovens, adultos, alunos, professores, atletas, técnicos, clientes ou profissionais - não importa os rótulos - exercitem suas motricidades, relacionem-se e comuniquem-se com o meio e com as pessoas, ensinem e aprendam algo. Cumpre-nos participar dessa vida, e não apenas observá-la com as lentes de teorias pré-fabricadas, sob pena de nos desligarmos da nossa própria origem. É só lá que a Educação Física poderá encontrar problemáticas significativas (porque originais) que re-alimentem a vida da Educação Física, e não a matem em objetivações pseudo-científicas.
Só nos resta então admitir que algo nos liga à vida do Professor Boaventura, e a dos que o antecederam, e a dos que nos sucederão, pois a tradição das gerações mortas não nos oprime como um pesadelo - como disse também outro importante filósofo - mas toma parte do mesmo fluxo incessante da vida que não cessa de produzir-se a si própria, das mais diversas formas. A Educação Física morreu. Que viva a Educação Física!
Florianópolis, 20 de junho de 2005