Integra

Temos no Brasil por volta de 1.200 cursos de Educação Física (presenciais + a distância), cerca de 77% deles em instituições privadas, conforme dados do Censo de Educação Superior [1].

Aí o candidato à vaga docente na Instituição de Educação Superior (IES) privada recentemente absorvida por um grande grupo educacional, perguntou ao coordenador de curso que o entrevistava sobre o salário. E o coordenador explicou: "A nova mantenedora fez uma pesquisa na região e descobriu que o valor da hora/aula aqui era acima da média do mercado". Preciso dizer o que aconteceu?

Vejam a crueldade do raciocínio. Como todo mundo sabe, a média é feita de altos e baixos. Então vamos supor que a maior valor de hora/aula da região fosse R$ 35,00, a menor R$ 18,00, e a média R$ 25,00. Então, se todas as IES acima da média baixarem para R$ 25,00 ou menos, ela cai significativamente, mas, obviamente, sempre algumas IES pagarão acima do média, outras abaixo. Mais à frente, a mesma conta poderá ser feita novamente, mais docentes demitidos, e outros contratados por valor ainda menor. Como o MEC só exige um terço de docentes de mestres e doutores, e o mercado está repleto de especialistas (exigência mínima de titulação), e em algumas regiões também de mestres, há, para usar uma expressão conhecida dos economistas, um enorme "exército de reserva" disponível: sempre alguém aceita trabalhar por menos. Ora, não é isso que tem sido feito já alguns anos na educação superior privada? E é duvidoso que se consigam melhores docentes pagando menos...

Some-se a isso a diminuição das horas/aula presenciais, substituídas por atividades a distância de qualidade questionável, bem como o aumento no número de alunos por turma, e vê-se que o nível acadêmico da educação superior privada desce cada vez mais em direção ao fundo do poço. Exceções as há, mas que confirmam a regra mais geral.

Quando o mercado educacional estava no auge do seu crescimento, as IES privadas instauraram, para usar outra expressão de economista, uma “concorrência predatória”, cada qual baixando seus preços para aumentar sua parcela no mercado.

Mais recentemente, um novo modelo de gestão foi implementado, com a aplicação dos princípios gerais da administração (que pouca considera as especificidades da educação), em prol do chamado “capitalismo do acionista”, que exige diminuição dos custos e maximização dos lucros para remunerar os acionistas. Senão vejamos. Dois grandes grupos educacionais brasileiros, que vou chamar de “A” e “B”, negociam ações na Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA). Contados três anos a partir de março de 2015, as ações de “A” valorizaram 80,3% e de “B” 50,3% [2]. Para que se tenha um termo de comparação, no mesmo período de 36 meses a inflação acumulada, medida pelo IPCA, foi de 19,3 %. Bem, vivemos numa economia capitalista, que a tudo transforma em mercadoria. Por que isso não aconteceria também com a educação superior?

No site de um destes grupos, uma mensagem dirigida aos acionistas fala em "ticket medio", "margem EBTIDA", "receita operacional líquida", e por aí vai. Quando fala em "gestão" e "produtividade" dos docentes é para informar que houve  aumento no número médio de alunos por turma. Nada, por exemplo, sobre a proporção de mestres ou doutores no corpo docente... Já a mensagem dirigida ao "mercado" é de que a instituição obteve melhoria nos resultados dos seus cursos no Enade-2016 em relação à edição anterior. Curioso, pois esta não é a avaliação subjetiva da comunidade acadêmica sobre a qualidade dos cursos nas IES privadas, pelo menos não na parcela da comunidade com a qual convivo!

Minha percepção é que a frouxa regulação e fiscalização por parte do Estado brasileiro tem levado a uma crescente degradação da qualidade acadêmica no campo da educação superior. Se aceitarmos a educação como “mercadoria”, sugiro então a(o) leitor(a) uma comparação com outros setores da economia: automóveis, aviação civil, planos de saúde, por exemplo. Nestes setores, além da vigilância das mídias e das agências de proteção ao consumidor, temos agências reguladoras e legislação crescentemente rigorosa e detalhada.

Desde o início da década de 1990, quando um presidente da república chamou os automóveis brasileiros de “carroças”, a qualidade dos veículos só aumentou; se os automóveis brasileiros não ficaram mais baratos, por outro lado são mais confortáveis, mais seguros, tem melhor desempenho. Nos grandes aeroportos brasileiros há juizados especiais em que “são conciliadas, processadas e julgadas causas relacionadas a violação, furto e extravio de bagagens; atraso e cancelamento de voos; overbooking; dever de informação e direitos do passageiro” conforme informa o site do Conselho Nacional de Justiça [3]. Planos de saúde frequentemente são punidos com severidade pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Podemos dizer que essas providências, melhorias, recursos e facilidades aos consumidores também acontecem no caso dos serviços prestados pela IES privadas?

Temos no Brasil pouco mais de 6 milhões de estudantes matriculados nas IES privadas. No caso da Educação Física, são cerca de 250 mil [1]. Merecem mais atenção e respeito!

(Bauru, 28/03/2018)

NOTAS

[1] MEC, INEP. Sinopse estatística da educação superior-2016 http://portal.inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-superior

[2] https://economia.uol.com.br/cotacoes/bolsas/

[3] http://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/juizados-nos-aeroportos