Integra

Hoje é um daqueles dias ideais para reflexão: é segunda-feira de uma semana que tem um feriado na terça, chove a cântaros, estou em Campos de Jordão com a lareira acesa desde que acordei porque também está frio, não há sinais de vida há muitos metros de distância e tenho em mãos ótimos livros, boa comida e boa companhia. Vim para cá nesse feriado disposta a fazer apenas o que meu corpo precisasse e minha alma mandasse, ou seja, nada daquilo que vem com o prólogo: você tem que…

E curiosamente em uma de minhas leituras – O graal: Arthur e seus cavaleiros – me deparei com as três tentações sofridas por Buda. Para quem não sabe, a primeira foi a luxuria, da qual ele se safou facilmente. A segunda foi o medo, condição prontamente superada. A terceira, e mais difícil de todas foi o dever. Isso porque o demônio chegou até Buda e disse que seu país estava sendo invadido e ele “tinha que” defender seu povo, sua família, seu país. E então, contrariando as expectativas geradas em torno de si, Buda superou o mais terrível de todos os momentos e não se submeteu a imposição, rompendo um de tantos condicionantes ao qual todos estamos submetidos desde que nascemos.

Já faz um tempo que me atormenta esses afazeres determinados pelas condições externas. Eles nos levam a fazer aquilo que não gostamos e não queremos, tornando-nos obrigados porque um ente maior mobilizado pela assertiva “você tem que” nos move em direção a uma sentença, que nos amarra todos os dias pela vida afora. E o mais curioso é que poucas vezes nos damos conta que esse “você tem que” não guarda nenhuma relação com o “eu quero que”.

Muito bem. Há mais de 10 anos me debruço sobre a relação entre o atleta e o mito do herói. Essa temática ficou evidente em minha tese de doutorado e depois ela foi se diluindo em alguns textos, ganhando novos contornos, alcançando novos limites, mas observo que, como um chamado ela volta ao meu temário como que dizendo que é hora de re-significar alguns temas em função do acúmulo de informações dos últimos anos. Cedi a esse “você tem que” porque me pareceu justo retomar algo que me mobilizou e me mobiliza, que é meu ponto de partida e de chegada para o entendimento da busca do limite, da superação. Nesse sentido, a leitura dos livros de Mariza Zélia Alvarenga foi uma sincronicidade das mais felizes, ela que é uma junguiana de mão cheia e tem uma predileção pelos mitos heroicos.

Estamos às portas de mais uma edição dos Jogos Olímpicos e os discursos produzidos para a narrativa dos feitos dos atletas parecem sair de baús empoeirados, abertos de quatro em quatro anos, como se pudessem ser esquecidos durante esse período por todos aqueles que se dizem interessar por esse fenômeno. Já não me incomodo mais com eles, afinal também desenvolvemos a arte da dessensibilização como forma de sobrevivência à boçalidade, à banalidade e a falta de conteúdo. O que de fato me aflige nesse momento é que nem todos entraram na fila da vacina contra esse mal, principalmente os atletas, protagonistas do espetáculo esportivo, estes sim sujeitos ao vaticínio do dever, do “você tem que”. Vejo o quanto de energia é gasto na busca da manutenção de suas identidades, às vezes tão frágeis, tão suscetíveis, contrastando com a atitude heróica desejada na jornada esportiva.

O herói, frequentemente honrado pela sua comunidade em virtude de seus feitos, é lembrado através de contos populares, representado sob o ponto de vista moral ou físico, dependendo do objetivo. É, segundo Campbell (1990), alguém que encontrou ou realizou algo excepcional, que ultrapassou as esferas de sua própria realidade.

Dessa forma, ele se preserva, muitas vezes associado a um sentimento de sagrado, se opondo ao racional e melhor se expressando através do afetivo. A ligação com o herói pode se dar no relacionamento de valores, na identificação do “eu” interior com o mundo exterior, fazendo com que o indivíduo, longe do campo de batalha ou do ambiente esportivo, sinta-se unido àquele que lhe é admirado, satisfazendo a necessidade condicionada de evitar o isolamento e a solidão moral (Fromm, 1977).

É por isso que Alvarenga (2009) afirma que o herói se define “pela façanha executada. Herói e façanha, façanha e herói se fundem, gerando um nome próprio. Em seu nome reside sua força e seu esplendor. O herói é o personagem primordial que faz o que somente ele pode fazer. É a possibilidade de o ser humano tornar-se pessoa singular, fazer-se como indivíduo, traduzir-se como imparidade”.

Na prática esportiva essa representação se amplifica por viabilizar a representação da possibilidade do vir a ser. Rubio (2001) afirma que atletas já consagrados tiveram que, inevitavelmente, percorrer um caminho comum e, assim como os heróis da Antiguidade, realizaram feitos em um determinado momento que os elevaram em um nível diferenciado de seus semelhantes, tornando-se exemplo para os mais jovens e objeto de admiração para os mais velhos, alcançando muitas vezes a posição de ídolos nacionais ou internacionais.

Conforme aponta Alvarenga (2008: 20) o herói é um personagem que faz o que somente ele é capaz de fazer e por isso desperta no ser humano a possibilidade de ser singular, de fazer-se como indivíduo, de traduzir-se como imparidade. E nesse sentido desperta o processo de projeção e de identificação. “O coletivo, identificado com o seu herói, corre junto nas pistas, desafia as alturas, combate as monstruosidades, atravessa oceanos em busca de terras novas. O coletivo desfila junto com o herói, com bandeiras nas costas, como torcida organizada. E vibra por receber a medalha.”

A espetacularização e a racionalização do espetáculo esportivo têm levado o esporte, e o atleta, a serem vistos apenas como mais um produto de consumo. A consequência dessa exploração é a racionalização daquilo que ele possui de mítico. No mito o herói se dedica a outrem, a causas externas e à salvação da humanidade. Na sua versão racionalizada ele se torna um personagem necessário ao sistema e tem suas realizações voltadas para si próprio denotadas em signos manifestos em uma vida de pseudo fartura. E então chegam os Jogos Olímpicos, momento em que são postos de fato à prova e “têm que” mostrar quem são, o que de fato podem, por um coletivo que pouco sabe e nada conhece da imensidão da humanidade que habita aquela persona heróica.

Mas, como nos lembra Maria Zélia, o herói se define pela façanha executada. Herói e façanha, façanha e herói se fundem, gerando um nome próprio, tradução de sua natureza.

E é por isso que eu continuo a estudar a trajetória dos atletas olímpicos e a encontrar neles os traços que tanto os identificam com o herói. Porque, ao seu tempo, à sua maneira, eles dão sentido à efemeridade da vida de muitos que pouco seriam para seu grupo social, sua cidade ou seu país. Mas, que naquele fazer específico se destacam e têm o brilho que norteia a busca de cada um de nós. Afinal, como apontam Maria Zélia, não há como servir-se do herói do outro pra cumprir nossas próprias missões. Se assim o fizermos, continuaremos sendo filhos do pai-herói, amigo do amigo herói etc.

Que os atletas olímpicos nos inspirem na busca da condição heróica que desempenhamos nas nossas atividades, afastando-nos do dever insano que nos dirige apenas para o “tem que”.

ALVARENGA, M. Z. Édipo. Um herói sem proteção divina. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
ALVARENGA, M. Z. O graal: Arthur e seus cavaleiros. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
FROMM, E. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
RUBIO, K. O atleta e o mito do herói. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

Por katiarubio
em 30-04-2012, às 20:20

3 comentários. Deixe o seu.

Comentários

O que me incomoda é que protagonistas e heróis do nosso dia a dia, nos impomos uma rotina hercúlea e que com o passar do tempo nem nos lembramos o porque de tantos “tem que”. Como heróis de nós mesmo devemos ser mais seletivos com nossas rotinas. E quanto aos atletas, que façam as melhores escolhas.
Muito bom texto. Elucidativo.

Por Mª Silvia
em 30-04-2012, às 21:13.

O protagonismo da vida é ditado pelo sentido que se lhe possa dar. Nesse instante já não mais existe a rotina, o vai e vém desesperante dos sem-norte. Ao construirmos nossa própria história pelo livre arbítrio damos testemunho da força que pulsa em nossa mente. E, então a rotina deixa de ser lamento e torna-se serviço. Estes sim, os verdadeiros heróis, em que não há busca pelos holofotes, fama, ou dinheiro, mas a capacidade de realização de uma vida produtiva a serviço do próximo. Chama-se AMOR.
Imagino que será difícil encontrar essa espécie viva no ambiente olímpico.

Por Roberto Pimentel
em 1-05-2012, às 19:06.

Ai ao passear pelo seu blog e como disse em outra mensagem tenho particular interesse pelo “arroz com feijão” Aquele não atinge o Olimpo mas está no dia a dia a trabalhar em algo que é de sua paixão. O atleta cotidiano… não sei ainda explicar (totalmente) o interesse que tive pelo filme de Ken Loach, que ainda não vi, mas lendo várias resenhas achei genial. Na representação de um cidadão comum a proporção que ganha um jogador de futebol e a relação entre ambos. Vou ver o filme e quero voltar ao seu blog.

Ana
Como diz a Maria Zélia “todos precisamos de heróis”, não no sentido da idolatria, mas para constituirmos nossa própria identidade.
Obrigada pela colaboração

Por ana maria pimenta carvalho
em 6-05-2012, às 11:27.

Acessar