Integra

Construir uma base curricular nacional em um país tão grande e diversificado como o nosso é certamente um desafio, mas é uma tarefa necessária. Contudo, a dificuldade do documento recém apresentado pelo MEC (abril/2017) começa por aí, já que a Base Nacional Comum Curricular não é, a rigor, um currículo (currículo não é listagem de conteúdos e objetivos), mas “curricular” está em seu título. Mas ela será lida como se fosse um currículo. Não seria problema se indicasse parâmetros e princípios mais gerais, todavia ela detalha minuciosamente as “habilidades” (ou “objetivos de aprendizagem” ou “competências”, afinal pouca gente sabe mesmo qual a diferença entre essas denominações/concepções). Com isso, ficaram definidos pontos de chegada, mas nada se fala sobre os caminhos que podem ser trilhados até eles (o “como”).

Mas não me proponho aqui a fazer uma análise crítica da BNCC com um todo, Quanto a isso, concordo com (quase) todas as considerações apresentadas pelo Prof. Luiz Carlos de Freitas, em seu blog https://avaliacaoeducacional.com/2017/04/07/bncc-uma-base-para-o-gerencialismo-populista/ . Não tenho dúvida que a principal finalidade política da BNCC, nos termos em que foi configurada, é definir uma “métrica” para a avaliação (quantitativa) em larga escala que facilite a terceirização das escolas públicas e alimente o mercado de assessoria pedagógica, cujos interessados já estão a postos, sem dúvida (será que na Educação Física também?).

Focarei na BNCC da Educação Física do ensino fundamental (BNCC-EF), componente curricular cujas especificidades (corpo, movimento etc.) dificultam, quase impedem tal avaliação quantificada (exceto se a restringirmos aos parâmetros da aptidão física). Tal fato não é uma vantagem ou desvantagem, é uma característica própria deste componente curricular, que lida com emoções, desejos, sentimentos, com a indissociação “sentir-pensar-agir”. Esta diferença fica bem clara quando comparamos as “Habilidades” propostas pela BNCC-EF com os demais componentes, em especial Língua Portuguesa, Matemática e Ciências (afinal, os componentes que interessam de fato ao atual projeto educacional-escolar do MEC.).

Falei antes dos “pontos de chegada” (as “Habilidades”). Mas há um ponto de partida, os “porquês”? Certamente, mas nesta 3ª versão ficou pouco visível. Foram excluídas a maior parte das frases que na 1 e 2ª versão faziam uma abordagem histórico-política da EF escolar, e que poderiam dar pistas de qual foi o ponto de partida mais geral (concepções de ser humano, sociedade, educação, escola). De qualquer modo, percebe-se inequivocamente a abordagem “culturalista” da EF escolar, inaugurada nos documentos oficiais do governo federal pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental em 1997 e 1998. O número de “Habilidades” propostas também foi diminuído, o que torna a BNCC-EF mais factível, mais “realista”. Nossa impressão inicial é de que a BNCC-EF ficou mais linear, mais direta, mais “seca”, e por conta disso perdeu um certo “charme” da formatação anterior.

Fala-se um pouco mais nesta 3ª versão sobre Linguagem, mas continuam ausentes boas e fundamentadas justificativas para explicar por que EF é “Linguagem”. É compreensível, pois exigiria buscar fundamentos na semiótica, área de estudos pouco explorada na EF. Contudo, há um entendimento de linguagem “embutido” quando a BNCC-EF deixa-se influenciar pela praxiologia motriz de Pierre Parlebas, com sua clara inspiração no estruturalismo de Saussure, fundado em categorias dicotômicas (significado x significante; sincrônico x diacrônico etc.) e na supremacia da língua, “sistema de signos ideal”. Não me parece a melhor opção se se quer valorizar a linguagem corporal, a qual não se permite submeter à estrutura da língua.

Vamos tentar então deduzir os pontos de partida (ao menos parcialmente) a partir dos pontos de chegada. Para isso, fiz uma contagem dos verbos utilizados nas “Habilidades” previstas para o 1º a 5º ano (alguém poderia fazer do 6º ao 9º ...). Os três mais frequentes, com larga vantagem sobre os demais, são:

Experimentar (n=10), Identificar (n=10) e Fruir (n=9).

Pois bem, “experimentar” e “fruir” não são verbos compatíveis com a exigência de Habilidades mensuráveis, assim como é também o caso da maioria das cerca de duas dúzias delas presentes na BNCC-EF (“assegurar”, “divulgar”, “discutir”, “prezar”, “propor”, “recriar”, dentre outros).

“E isso não é bom?” – poderia se perguntar o leitor que teve a paciência de me acompanhar até aqui. De certo modo sim, pois indica que a Educação Física não se rendeu totalmente à lógica gerencialista (ou “empresarial”) da BNCC, o que talvez nem fosse possível, dado sua especificidade, como já comentamos.

Mas também neste caso os fundamentos são frágeis. Embora as oito “dimensões do conhecimento” (ver pág. 178 a 180) marquem o principal avanço da BNCC-EF, pouco ajudam a elucidar as noções de “experiência” e “fruição” (e também “vivência”), exatamente porque não há um marco teórico que as sustentem. Ora parecem sobrepostas, ora se tenta diferenciá-las. Está confuso. Reconheço todavia o mérito de trazer à cena o tema da “experiência” (este é o conceito-chave), também pouco estudado na EF, como o da linguagem.

Novamente a influência da praxiologia motriz de Pierre Parlebas, de matriz estruturalista - em que interessa mais o jogo que o jogador, a “lógica interna” da atividade que a experiência do sujeito – nos ajuda a entender a fragilidade das noções de experiência e fruição que permeiam a BNCC-EF. Especificar exatamente o que o sujeito aprende não é tão importante nesta perspectiva, a qual pressupõe que “experimentar” ou “fruir” (o que *s professor*s de EF costumam chamar de “vivenciar”) é bastante. Assim, por exemplo, vivenciar um jogo de cooperação já seria suficiente para aprender a cooperar, porque a cooperação seria inerente à lógica interna da atividade. Ou seja, interessam as propriedades intrínsecas do jogo, luta, esporte etc., não a experiência concreta dos sujeitos (alun*s) que jogam, lutam etc. E isso se reflete no modo como foram redigidos muitas das “Habilidades” propostas na BNCC-EF do ensino fundamental.

Quer dizer, a estrutura dos “objetos de conhecimento” (termo utilizado pela BNCC-EF), suas lógicas internas, impuseram-se às subjetividades, exatamente onde a EF mais poderia preservar-se da abordagem “gerencialista-empresarial” da BNCC em geral. A emoção, o desejo, o sentimento, a tríade sentir-pensar-agir que permeiam os processos de aprendizagem nas aulas de EF não estão ausentes na BNCC-EF, mas ficaram à sombra.

Felizmente, a BNCC-EF não é mesmo um currículo, pois se tentasse indicar os caminhos didático-metodológicos (o “como”) com seus frágeis pontos de partida, mais atrapalharia que ajudaria as escolas e professor*s.

Contabilizei também os substantivos e “expressões substantivadas” presentes nas “Habilidades” 1º ao 5º ano.  Eles tende a indicar os “conteúdos” (é o “o que”). Mas falarei disso em outra oportunidade.

As duras e consistentes críticas formuladas por várias associações educacionais, bem como por eminentes pesquisadores da área pedagógica, me fazem concluir em relação à BNCC em geral que “ruim sem ela, pior com ela”. Mas em relação à BNCC da Educação Física, diria que “ruim com ela, pior sem ela”, apenas das fragilidades e omissões. Em primeiro lugar, evidentemente, porque seria um enorme retrocesso se a BNCC não incluísse a Educação Física. Segundo, porque ela apontou algumas boas direções, caminhos que ainda precisam ser trilhados. Em suma, a BNCC-EF ainda precisa ser construída. Só temos um esboço.

Espero que seus autores e autoras (especialistas convocados, dentre os quais encontram-se alguns que muito prezo e respeito) sejam suficientemente humildes para reconhecer isso, muito embora esta 3ª versão tenha sido conduzida por outra equipe, agora sob o governo Temer, o que por si só já deve nos deixar (mais ainda) alertas.

(Bauru, 01/05/2017)

Link da BNCC-EF: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/pdf/4.1.3_BNCC-Final_LGG-EF.pdf

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Post-scritptum: se você vai imprimir a BNCC, prepare para “forçar a vista”, e esteja com os óculos em dia, se for o caso! A fonte de cor cinza médio dificulta a leitura. A versão anterior era mais generosa com os olhos do leitor.