Integra
A meditação filosófica recomenda-se em todas as épocas e em todos os setores como maneira de gerir lucidamente a vida. Não há outra via para alcançar esta meta. Aquela assume carácter de urgência numa conjuntura tão conturbada como a presente. No entanto e paradoxalmente, a filosofia vê-se hoje combatida e perseguida como um vírus, sendo forçada a fugir das instâncias que comandam o nosso destino individual e coletivo. Porém não resta alternativa à de irmos atrás dela e do seu incitamento para revisarmos a vida e as circunstâncias que a envolvem, condicionam e determinam.
Filosofar é questionar o que nos rodeia e perturba; é olhar para o alto, para fora e para além de nós, à procura de uma referência e de um ponto de apoio que permitam sobrepujar a realidade. Estamos assim a fazer uso da razão para nos pensarmos a nós mesmos e ao mundo em que vivemos com as suas crenças, manipulações, tradições, costumes e mitos. Quando, na nossa ação, não usamos a inteligência, a lucidez, a sensatez e a força da razão, então caímos nas garras do manicómio ideológico ou de outro matiz.
Filosofar é imaginar algo novo e superior, constituindo um exercício de autonomia e liberdade, próprio de quem não se acomoda e rende aos determinismos e alienações de toda a ordem.
Pensar e filosofar são, portanto, atos corrosivos e subversivos dos poderes vigentes e da doutrina e realidade por eles estabelecidas; desacorrentam e desfazem nós, iluminam o caminho e a porta de saída das armadilhas e labirintos em que nos deixamos aprisionar. Mais ainda, pensamentos são já em si eventos, ao idealizarem, anteciparem e projetarem a realização de ações. Porquê? A um modo de pensar corresponde a adesão a uma maneira de agir.
É óbvio que a filosofia tem subjacentes a apetência, a curiosidade e a vontade de saber. Mas isso requer a percepção e o desconforto do vazio, a noção e a insatisfação da falta. E isto, por sua vez, pressupõe conhecimento, competência crítica e sabedoria para visionar a altura, para romper a rotina e o conformismo, para perceber as novas questões e maneiras de as abordar, para não nos contentarmos com uma configuração pequena das coisas e factos da vida.
Viver é a nossa ocupação fundamental, logo a sabedoria tem como alvo a melhor gestão possível da vida. E para isso não há bula de garantias. Saber viver bem a vida é o conhecimento mais difícil de adquirir; não há nada tão exigente, belo e sublime como desempenhar corretamente a existência e o papel da Pessoa que nela somos chamados a incarnar e representar.
Não obstante este desafio e apesar de fazer parte da nossa natureza intrínseca a possibilidade de nos pensarmos em profundidade e de questionarmos as relações com a crescente complexidade do mundo, a filosofia é encarada como algo estranho e distante, como um diletantismo sem préstimo. Parece que nos damos bem com a sujeição a um fabrico de identidades em série, a um mundo às avessas em que os interesses tomam o lugar dos princípios; reagimos pouco aos cenários traçados e impostos pelos politólogos e economistas e pelos comentadores de serviço.
Em todo o caso a vacuidade e o abismo interiores, o tédio angustiante e a asfixiante ausência de um sentido para a vida não cessam de aumentar. Ou seja, é a conjuntura que pede para trazermos de volta a palavra da filosofia, sabendo que a voz da razão é baixa e débil, mas não descansa enquanto não tiver audiência bastante. Por isso neste tempo de neblina e cerração é preciso filosofar.
Pitágoras (570/571-496/497 a.C.), filósofo e matemático da Antiguidade grega, definiu a vida como uma feira. Uns vêm a ela para vender e outros para comprar, ao passo que outros ainda vêm para ver, para contemplar e observar quem e aquilo que se compra e vende. Vêm para apreciar e refletir sobre o comportamento humano e sobre as regras que a ele presidem. Sobre o modo de concretizar a Humanidade.
Pitágoras não tinha dúvida alguma de que os melhores são os que vêm à vida para reparar nos outros, para se preocuparem com eles, para se lembrarem deles, para serem solidários. E por isso classificou-os como seres quase perfeitos, quase felizes, quase divinos.
Sófocles (497/496-406/405 a.C.), uma outra figura insigne, autor de obras-primas da tragédia grega, tais como Antígona, Electra e O Rei Édipo, quando perguntado por um discípulo acerca do castigo reservado àqueles que não filosofam, foi peremptório na resposta: É a vida que levam! É serem o que são e não serem a pessoa que deviam e poderiam ser.
O mundo que temos e vemos revelam o que somos, isto é, a filosofia e a sabedoria de vida que nos faltam. A ‘filosofia’ dominante é a da ausência de uma clara orientação filosófica; no lugar desta crescem o improviso e o deserto de causas, ideais e valores. Alguns dizem gostar; mas não são eles quem fala, são a estultícia, a ignorância e pasmaceira que os habitam.
Ora o âmbito do labor desportivo não dispensa o dever da auto-reflexão, a obrigação de cada um tornar imanente a si mesmo, às suas convicções, ações e respetivas consequências uma teoria da transcendência. Uma teoria com um alcance e pensamento normativos alargados, que estipule o que deve ser, combata a arrogância, a sobranceria e o autoritarismo da estupidez; e convide a questionar os meios e os fins, a sacralizar o Outro, a divinizar o Humano, a tornar mais Humanas as coisas, a dar-se ao esforço de perseguir a beleza, a graça, a perfectibilidade e a liberdade, a sair e a distanciar-se de si, a adicionar às caraterísticas originais, particulares e situacionais excertos, noções e valores universais e a incorporar, assim, na individualidade e singularidade a condição da universalidade, dada por uma perspetiva mais ampla, por uma experiência e vivência com selo e identificação de Humanidade.
Esta obrigação afigura-se óbvia para todos, nomeadamente para aqueles que laboram no desporto e se interrogam acerca dos caminhos e tortuosidades que ele está adoptar. Não é necessário ser filósofo por formação e profissão para assumir a obrigação de indagar; ela impõe-se e é imanente e transversal a todos. A reflexão crítica é um imperativo moral de todo o ser humano digno desse nome, que não suspenda o interesse pelo mundo e queira estar à altura das circunstâncias, circundações e exigências da vida.
Logo um professor ou treinador desportivo não pode deixar de plasmar e exercitar essa qualidade indispensável à separação do trigo do joio, de exibir em subido e apurado grau a capacidade de espírito crítico em relação a si mesmo, ao seu perfil, papel e labor; nem pode ficar neutro e indiferente ao modelo que hoje se quer impor a todo o custo, qual seja o de colocar a vida, a sociedade, a cultura e o desporto sob os ditames exclusivos do mercado e das suas ambições curtas, míopes, pequenas e comezinhas, rasteiras e torpes.
Ademais um genuíno Ser Humano deve tender para se afastar da ignorância e incultura e abeirar da abedoria; e esta, como dizia Hegel (1770-1831), “tem início com as ideias e termina com a imundície” e com a pequenez e estreiteza das noções, visões e perspetivas.
Ou será que a um Professor de Educação Física e a um treinador desportivo basta uma especialização em miudezas, em coisas minúsculas, vazia de alcance e compreensão do todo, uma confrangedora penúria de inquietação em relação ao cru e gélido modelo neoliberal em que, pouco a pouco, mergulhamos? Não tem necessidade de alargar os horizontes da sua especialidade e de enxergar, para além deles, valores abrangentes, fundadores e mais promissores? Não carece de uma teoria que o habilite e impulsione a ver e a aspirar chegar ao Citius, Altius, Fortius, ao mais elevado e longe, ao superior e divino?
[1] Professor Catedrático Jubilado da Universidade do Porto